1. Introdução
Pensar a mídia, nos dias de hoje, implica em entender que ela não é mais - e nunca foi - apenas um instrumento para narrar ou registrar a realidade. A mídia, seja ela no formato que for, tem tomado proporções tão grandes no cotidiano dos sujeitos, que vem sendo discutida como Quarto Poder, já que a democracia e a manutenção dela são atravessadas duramente pelos discursos midiáticos. Dessa forma, nos ancoramos no pensamento de que a mídia constrói a realidade, e pensar nela exige problematizar eticamente a respeito de direitos individuais e sociais frente a avanços tecnológicos e formas de relações que surgiram, devido a esses artefatos, na contemporaneidade (Guareschi, 2006).
Partindo dessa ideia, pensamos a cibercultura como movimento que, modificando o conceito de cultura - já que o acesso à informação em massa desmantela a ideia conservadora daquilo que é de posse popular e o que é de posse erudita - modifica também a forma como os sujeitos se relacionam consigo e com o mundo. Essa vasta cadeia de informação e cultura disponível produz diferentes subjetividades, a depender de como o sujeito dá sentido a isso, e a depender também de sua inserção social (Santaella, 2003).
Pensando nisso, escrevemos esse artigo, que é um recorte da dissertação de mestrado da primeira autora, executada junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus Frederico Westphanlen/Brasil, defendida em 2021, com o intuito de discutir uma das várias facetas da mídia. Partindo do arcabouço teórico do movimento construcionista social, entendemos que os objetivos da pesquisa e a forma como eles foram desenvolvidos e narrados também fazem parte da inserção e contexto das pesquisadoras.
O objetivo deste artigo é discutir, a partir da perspectiva do construcionismo social, e dos estudos de gênero, como são veiculados na mídia, mais especificadamente no youtube, por intermédio da publicidade de brinquedos e jogos, sentidos sobre a maternidade e a infância. É importante destacar que, para se chegar a este estudo empírico, que será esmiuçado adiante, foram feitas outras pesquisas que o antecederam. No estado do conhecimento do estudo maior, destacamos que existem pesquisas que discorrem sobre esses objetos nas bases de dados pesquisadas, entretanto, cada uma com atravessamentos diferentes e perspectivas teóricas que se diferem. Ainda, foi realizada uma revisão narrativa de literatura, a fim de entender as bases epistemológicas que fundamentam o trabalho, e uma revisão bibliográfica de literatura, com o intuito de entender o que a ciência vem discorrendo sobre o tema de pesquisa.
Baseadas em todo esse material e nos achados dessas investigações, entendemos que estudar a mídia na área da educação também se constitui na tarefa de entender como os discursos e conceitos a respeito da infância são veiculados na TV, jornais, revistas e, em nosso caso, no Youtube. Esses discursos pedagógicos transmitem ao público, seja ele famílias, crianças, docentes, uma ideia de infância “correta”, que ao ser vista e reproduzida cada vez mais, torna-se real (Fischer, 2002).
Cabe destacar que este estudo contou com o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Brasil, por meio de bolsa de estudos.
2. Referencial Teórico
Discutimos a mídia como parte dos artefatos utilizados junto à educação não escolar, pois hoje, junto com a escola e a família, ela também passou a ser um espaço de formação moral, cultural e social. Fischer (2002) discute o conceito de “dispositivos pedagógicos da mídia”, no sentido de que, pelos discursos e narrativas, a mídia opera na construção da subjetividade, pois ensina a forma “mais adequada” de ser e estar no mundo. Ela tem atravessamento direto na forma como são representados e como devem ser vistos grupos como, por exemplo, mulheres, pessoas negras, religiosos e religiosas.
Por isso, podemos dizer que a mídia está totalmente ligada ao conceito de democracia. Algumas autoras e autores discutem que, depois da escrita, a internet seria a ferramenta mais democratizante que já existiu. Pensando nas antigas veiculações midiáticas, como a TV e os jornais, as pessoas ficam passivam em meio à recepção da informação, porém, hoje em dia, é possível que elas mesmas criem seu conteúdo e deixem sua mensagem na rede, participando ativamente do processo.
Nesse contexto, grupos que antes não tinham possibilidade de opinar ou de aparecer na mídia, por conta própria ganharam visibilidade. A criança, antigamente vista apenas como consumidora, e um público de grande apelo publicitário, sai da frente da TV e com apenas uma câmera ou um celular, vira “protagonista” de seu próprio conteúdo na internet. A própria ideia já nos chama atenção para os limites éticos que essa prática possa ter, e até que ponto as crianças estão realmente sendo protagonistas de sua realidade ou se, na realidade, estão apenas sendo inseridas como produto de grandes empresas.
Youtubers mirins são um novo fenômeno na área da infância, ainda pouco discutido. Trata-se de crianças que, com a ajuda ou não de pessoas adultas, falam sobre os mais diversos assuntos. Contam histórias, brincam, cantam, desenham, e no meio disso tudo, fazem propaganda, seja ela direta para patrocinadores, ou indireta, apenas mostrando seus pertences e os avaliando para o público.
Em uma pesquisa da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Correa (2016) apontou que, dos 100 canais mais vistos no youtube Brasil, 48 eram direcionados para o público infantil. O fato das crianças estarem produzindo e consumindo mais conteúdos midiáticos significa necessariamente que esse público atingiu finalmente o protagonismo, no que diz respeito à veiculação de seus discursos dentro do próprio grupo? (Canela, 2009).
É necessário deixar registrado que a resolução nº 163, de 2014, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) no Brasil, proíbe a publicidade abusiva infantil, definindo o que seria essa abusividade. Contudo, basta uma breve pesquisa no youtube para observarmos que, nos canais infantis, ainda circulam muita publicidade voltada para as crianças, usando esse próprio grupo para alcançar e conquistar cada vez mais o público.
De fato, não é possível criarmos um sistema, com base no conhecimento científico, que vá definir um conteúdo como de boa ou má qualidade. Essa discussão perpassa pelo viés da ética, da discussão das liberdades e proteções, ainda mais quando falamos em infância e da possibilidade de se criar políticas públicas que, levando tudo isso em consideração, consigam regular esse espaço.
Para discutirmos essas questões, nos inspiramos em Foucault (1996), Gergen e Gergen (2010), Ibañez (2004), Iñiguez (2004; 2008), Rasera e Japur (2005) e Spink (2010; 2013). Não pretendemos apontar, no material analisado, conteúdo de boa ou má qualidade, mas entender quais produções discursivas são evidenciadas. Os Estudos de Gênero, pautados em Butler (2003), Cadoná e Strey (2014), Del Priore (1989), Louro (2003) e Scott (1995) também são uma escolha teórica que auxiliou na leitura, interpretação e discussão dos dados da pesquisa.
Com base nessas autoras e nesses autores, reconhecemos o conhecimento como construído historicamente e socialmente, dentro de um contexto específico. Desse modo, nossa forma de investigação perpassa o conhecimento epistemológico, para então entender o contexto histórico onde os conceitos estudados foram se produzindo e se modificando, sempre deixando claro que os resultados e a forma como eles são narrados perpassam as vivências das pesquisadoras.
3. Metodologia
3.1 Abordagem
Este estudo trata de uma pesquisa qualitativa, descritiva e documental, e Spink (2013), Iñiguez (2004) e Ibáñez (2004) foram inspirações para sua construção metodológica. Tais autores e autora procuram estudar a produção de sentidos no cotidiano, e encorajam analistas de discurso a uma leitura metodológica que se configura também como uma maneira de ver o sujeito e o mundo.
A semiótica, (Joly, 1994; Santaella, 1983), “Ciência de toda e qualquer linguagem”, também deu base para a análise do corpus da pesquisa. Existe uma ideia, resquício da Ciência Moderna, que entende a linguagem como o estudo da língua escrita, e que defende que apenas essa será capaz de trazer à luz a verdade a respeito da natureza e da realidade. Essa ideia, muito ancorada na perspectiva de que a linguagem apenas registra as coisas do mundo, vai de encontro com a semiótica, na medida em que esta estuda tanto a linguagem verbal, como não-verbal (Santaella, 1983), entendendo que imagens, palavras, gestos e demais artefatos comunicam e produzem realidade.
Perpassando nosso entendimento sobre a função da mídia, a semiótica também entende a linguagem como a produção de sentidos, ou a forma como ela suscita significados, entendendo que essa também produz a realidade. Esta ideia está ligada a um conceito importante para a análise do corpus: o conceito de imagem (Joly, 1994).
3.2 Unidades de análise
A escolha do youtube enquanto local de coleta do corpus deste estudo aconteceu pelo fato de ele ser uma ferramenta de vasto e fácil acesso, que inclusive tem sido um dos fatores que ajudaram no fenômeno da veiculação de informações em massa. Segundo números de 2020 do próprio youtube, diariamente, no mundo, eram assistidos a mais de um bilhão de horas de vídeos na plataforma, e ela está disponível em mais de cem países e oitenta idiomas.
Para a seleção do corpus do estudo aqui apresentado, primeiramente separamos cinco youtubers infantis, e como forma de primeira delimitação, usamos a ferramenta do Google para indicar quem eram as pessoas mais influentes, no que se refere à criação de conteúdo infantil naquele momento, no Brasil. Os conteúdos sugeridos por essa ferramenta sugeriram listas muito parecidas e, por isso, dali foram retirados onze canais. Nossos critérios de exclusão foram: canais que estavam desativados há mais de um ano, que produziam conteúdo também para o público adolescente e adulto, com menos de um milhão de inscritos, que não fossem brasileiros e que fossem apresentados por personagens.
A segunda pesquisa foi feita na própria plataforma do youtube. Utilizamos o filtro “canais”, com o descritor “youtubers infantis”. De dezoito canais que foram resgatados nessa busca, apenas três foram acrescentados à primeira lista. Foram usados os mesmos critérios de exclusão da primeira pesquisa.
A partir dessa lista de quatorze canais, usamos como critério de redução do corpus o número de pessoas inscritas. Como nossa pesquisa versava sobre a veiculação de discursos midiáticos como um dispositivo pedagógico, demos prioridade aos canais com mais inscrições, que produziam conteúdo massivamente. São eles: Luccas Neto, Valentina Pontes, Maria Clara e JP, Bela Bagunça e Clubinho da Laura (pesquisa feita no dia 26/03/2020).
A primeira ideia do projeto era analisar esses cinco canais, mas com o desenvolvimento dele, percebemos que o tempo não seria suficiente e elencamos apenas um para esmiuçar e se debruçar atentamente. Dessa forma, para escolher, demos prioridade ao canal com maior número de pessoas inscritas, e que era apresentado e “protagonizado” por uma criança, já que um dos objetivos era justamente trazer à tona a discussão sobre o protagonismo infantil diante da publicidade.
Assim sendo, foi escolhido o canal de Valentina Pontes, que na época tinha 18,6 mi de inscritos. Foram analisados dois meses, escolhidos estrategicamente por serem os meses do dia da criança e natal, e entendermos existir a possibilidade de haver mais apelo publicitário. Portanto, analisamos os meses de outubro e dezembro de 2020, e apenas os vídeos em que havia publicidade, ou seja, o ato de tornar público (Guareschi et al., 2008), de brinquedos e jogos. Como fator de inclusão, foram selecionados aqueles vídeos em que a criança interagia com esses artefatos. Dessa maneira, restaram dezesseis vídeos para análise.
3.3 Técnica de coleta de dados
A coleta dos dados desta pesquisa se deu por intermédio do resgate dos vídeos da família Pontes junto ao youtube. O material escolhido para ser analisado foi baixado e armazenado em pastas, em dispositivo do tipo pen drive. Para melhor apreensão dos textos dos vídeos, utilizamos a ferramenta de transcrição de áudio da própria plataforma, com fins de realizar uma leitura criteriosa de cada fala.
Não houve necessidade de passagem da pesquisa por comitê de ética, tampouco utilização de termo de consentimento livre e esclarecido, haja a característica do material do estudo, que é de domínio público.
3.4 Procedimentos para análise dos dados
No procedimento de análise, inspiramo-nos em estudos realizados por Mary Jane Spink e, dessa forma, resgatamos de seus escritos conceitos como práticas discursivas, produção de sentidos no cotidiano e linguagem em ação, dando atenção, durante as análises, para quem falava, como falava, para quem falava e de onde falava (Cadoná et al., 2017, Spink, 2013, Spink, 2010).
Como alicerçamos nosso método na análise de discurso e na semiótica, tivemos alguns cuidados específicos na análise dos vídeos baseados nessas bases teóricas. Primeiramente, foi elaborado um diário de campo próprio para o registro e o estudo de todo o material. Nele, constava o resumo de cada história e o registro dos e das personagens no contexto de cada vídeo, sem nunca deixar de levar em consideração a perspectiva e percepção das pesquisadoras. Também foram incluídos os itens: “Contexto da história”, “Como se narra a história”, “Edição (efeitos)” e, por último, a análise propriamente dita - “Mensagem (produção de subjetividade na infância)”.
A análise resultou na construção de dois eixos temáticos: “A representação da maternidade na mídia: da mãe infantilizada à menina/mãe” e “Publicidade, fantasia e gênero: infâncias (re)produzidas e comercializadas”. Nestes escritos, traremos as problematizações em cima do primeiro eixo.
4. Resultados: a representação da maternidade na mídia: da mãe infantilizada à menina/mãe
Como qualquer outro conceito, quando falamos em maternidade, é importante que a situemos ao contexto em que foi construída e à forma como se relaciona com a vida dos sujeitos, principalmente das mulheres e crianças, e também como as transforma. Assim, para Badinter (1980), uma das grandes pesquisadoras da área, quando falamos sobre o contexto ocidental e moderno, precisamos considerar a mãe como mulher e como alguém que está na relação com um homem/pai e seus filhos e filhas. Por isso, apesar de obviamente essa pessoa ter e expressar desejos e aspirações próprias, ela precisa ser entendida dentro dessa relação que se criou e se sustenta até hoje, por meio de diversos mecanismos de poder e discursos veiculados que, por sua vez, incidem sobre a produção de subjetividade.
Se nos atentarmos à história, nos períodos em que a sociedade exige a proteção e o cuidado do homem, a mulher passa a ter as mesmas condições e direitos da criança. Entretanto, quando a infância passa a ser valorizada e encarada como o futuro, para ser educada e cuidada, exigindo alguém que zele por ela e até abra mão de sua subjetividade em troca dessa tarefa, a mãe começa a ter papel central na organização familiar (Badinter, 1980).
Assim, segundo Moura e Araújo (2004), estudar a maternidade é estudar as transformações que aconteceram na história da família, exigidas por um contexto que precisou dar conta de questões tanto econômicas, quanto sociais. A partir do século XVII, aparecem as sociedades disciplinares, que incidem sobre a produção de subjetividade e manifestam o controle do exercício da maternidade, bem como de outras formas de existência.
Um exemplo de transformação na organização familiar é a ausência de amor verificada nas relações antes do século XVIII. Assim como a infância, o amor também é um conceito que foi construído e não sempre entendido da forma como o vemos hoje em dia. O casamento muito mais tinha a ver com uma burocracia relacionada a questões religiosas e financeiras, do que com um sentimento de afeto que hoje reconhecemos. Assim, também podemos dizer da infância, pois no cenário em questão, a relação para com ela não era estabelecida com base em um afeto que hoje chamamos de amor (Ariès, 1981; Badinter, 1980).
Seguindo essa lógica, segundo Zanello (2016), era comum e aceito que as mães entregassem suas crianças para o cuidado de amas de leite, já que a amamentação não era, como hoje, um momento valorizado e considerado como de extrema importância para a vinculação entre mãe e bebê, até porque tal vínculo não era reconhecido socialmente. No Brasil colonial, em uma iniciativa publico-privada, surgiram as rodas dos expostos, um dispositivo em que a mãe poderia abandonar anonimamente seus filhos e suas filhas para os cuidados das casas de misericórdia (Cruz et al., 2005).
Ainda antes da “invenção” da infância de forma mais semelhante a como conhecemos hoje, no século XVII, ela era ainda associada ao pecado original e, para salvar a alma dessa pequena pessoa, eram prescritos às famílias castigos físicos a serem aplicados às crianças, pois já teriam vindo ao mundo corrompidas pelo mal. Além disso, alguns autores dessa época chegaram a condenar as mães que tratavam seus filhos e suas filhas com amor. O ato de sentir prazer na amamentação, por exemplo, era visto como frouxidão e pecado (Badinter, 1980).
Portanto, destacamos novamente que a relação mãe e bebê também se modificou intensamente ao longo dos séculos. Essas transformações aconteceram por conta de agenciamentos discursivos não apenas vindos do cotidiano, mas da ciência, da religião, da arte, e mais recentemente, da mídia. Todas essas instituições investem na maternidade e a atravessam, influenciando na maneira como essa irá entender os sistemas de valores em vigência. A produção de subjetividade em cima desse conceito e desses sujeitos sempre aconteceu e vai se transformando conforme a sociedade vai angariando novas ferramentas e mecanismos de poder (Moura e Araújo, 2004).
No século XIII, conforme se muda a visão sobre a infância e esta passa a ser vista como algo bonito, puro, a ser protegido e cuidado, a maternidade vai se tornando um objeto de desejo para as mulheres, e os discursos da época vão direcionando elas para isso, na medida em que, nesse contexto, as mesmas não têm direitos políticos ou reconhecimentos sociais como os homens. Dessa forma, a ideia de cuidar do futuro do Estado se torna tentadora, já que existia uma grande mortalidade infantil causada pelas guerras e doenças (Zanello, 2016), e passar a cuidar do futuro da nação dava um lugar à mulher de grande importância, embora restrito ao contexto privado, ao lar.
Para Badinter (1980, p. 146) houve então um entrelaço entre as palavras “amor” e “materno”, que além de expressar um sentimento, fala sobre a mulher enquanto mãe. Ao fazer esse trabalho, inconscientemente, algumas mulheres perceberam-se adquirindo um papel de importância semelhante ao dos homens, que nenhuma jamais tivera. Assim, a mulher possuía uma função: ser mãe. Finalmente, ela teria uma função nobre, que o homem não podia exercer, e que devia ser a fonte de sua felicidade e realização.
À ciência, por sua vez, incumbiu-se a tarefa de naturalizar e associar o papel de mãe e dos cuidados com as crianças às mulheres. Diversas áreas - medicina, psicologia, e administração - atestavam com convicção que as mulheres eram “predestinadas” a essa tarefa, que era instintivo esse processo, já que apenas elas podiam gerar e parir. Assim, instituiu-se um discurso determinista que amarrava as mulheres à maternidade (Moura e Araújo, 2004).
Já no Brasil colonial, mulheres casadas, abandonadas, solteiras, negras, lutavam para criar as crianças e dar conta desse discurso da maternidade instintiva, atrelada a um contexto materialmente pobre. A entrega, o amor, a submissão aos filhos e às filhas era adaptada ao contexto, assim como o destino dessas crianças (Del Priore, 1989).
Segundo Badinter (1980), a própria psicanálise também contribui enquanto ciência para colar a maternidade à responsabilidade pela felicidade da prole e do lar. Nesse momento, essa posição não era mais passível de recusa pelas mulheres, sob pena de fortes condenações morais, religiosas e sociais de uma sociedade que vigiava não só a qualidade do cuidado, mas também a mãe que não tinha, ou não desejava ter filhos e/ou filhas.
Partindo para as análises dos vídeos, no canal de Valentina Pontes, Erlânia, a mãe da família, parece disponibilizar todo o seu tempo para o cuidado da família e da casa. Mesmo sendo uma personagem secundária, ela aparece em quase todas as produções, e exerce papel fundamental na educação de Valentina e do irmão, pois é ela quem aponta os erros e lições de cada vídeo.
No vídeo “Valentina em uma história engraçada de uma nova irmã”, uma clássica cena de configuração familiar, tida como “padrão”, universal em nossa sociedade ocidental, é evidenciada. O pai de Valentina aparece, no vídeo, com uma bebê reborn. Mãe e filha estão, no momento, assistindo TV. O pai diz: “Filha, a Daniele pediu para tu cuidar um pouquinho da bebê” (Sic). Na sequência, Erlânea levanta e toma a boneca nos braços no lugar da filha, momento em que o pai sai de cena, dizendo que precisa trabalhar.
Vemos, então, a mãe cuidando zelosamente do bebê, que acaba assumindo um papel imaginário de bebê de verdade. A filha, Valentina, criança, que ainda não desenvolveu as atribuições maternas, é mantida longe, pois supostamente não saberia cuidá-lo, e desperta ciúmes que a faz ter várias atitudes para chamar atenção de sua mãe, como ligar o volume alto da música e bater forte a porta do quarto. Em um rompante, Erlânia se irrita e xinga a filha, dizendo-lhe que ela não é mais a bebê da casa, mas sim a boneca.
Entretanto, em uma atitude de reflexão, comum nos vídeos do canal, a mãe volta atrás, revê as suas atitudes e pede desculpas à filha, veiculando em seu discurso uma ideia de maternidade que erra, reflete, e é imperfeita. “A mamãe errou, mas você também errou” (Sic), diz Erlânia, que, na mesma medida em que assume seu erro, ainda educa a filha pela lógica do cuidado e do afeto, que se percebe na linguagem não verbal.
Ainda sobre a construção da maternidade e da família, relacionam-se essas também aos papéis de gênero que se originaram de uma dicotomia entre o público e o privado. Visíveis nesse primeiro vídeo, a esfera privada é de responsabilidade da mulher, e esta se destina aos cuidados das crianças, da casa, e a felicidade da família. Na pública, que é exercida pelos homens, e que é explicitada pela fala do pai de Valentina, estão as atividades sociais e o trabalho. Esse modelo se pauta na assimetria de gênero até hoje reproduzida, onde os homens sempre exercem dominância sobre as mulheres (Marcondes, 2012), como podemos ver nas análises, sendo que não foi possível nem mesmo descobrir o nome do pai de Valentina, já que ele não aparece nas produções, ou é referenciado como estando no trabalho, no momento em que as atividades de Valentina são filmadas.
Cadoná e Strey (2014) também apontam essas desigualdades de gênero na hora de narrar e viver a maternidade, que começam já quando se transmite a ideia de que essa é uma condição natural, por se ser mulher, de cuidar e educar as crianças. Esses discursos sobre ser mãe são carregados de sentidos e são veiculados das mais diversas formas, hoje em dia, seja na mídia impressa, na TV, e até mesmo nas políticas públicas. Podemos pensar nos vídeos de Valentina Pontes como mecanismos de produção de subjetividade e veiculação de sentidos, já que esses também ajudam na manutenção das lógicas vigentes sobre infância e maternidade.
Pensando nesse processo, na ótica do movimento construcionista social, Moreira e Raseira (2010) entendem que o conhecimento sobre maternidade não é algo que é produzido individualmente, e sim na relação, nas práticas sociais. Por isso, é tão necessário estudar a linguagem em ação, pois ela é um recurso para que possamos entender quais e como são veiculados esses sentidos em espaços como a mídia e direcionados, no nosso caso, principalmente para a infância.
Em “Mãe de Valentina Pontes vira babá de dois bebezinhos de verdade”, Erlânia inicia a cena afirmando ter saudades de um bebê para cuidar. Por conta disso, quando seu marido chega do trabalho (esfera a qual está ligado o tempo todo nos vídeos, ao contrário da esposa, que restringe sua vida e afazeres ao espaço doméstico), propõe o planejamento de uma nova gestação. A partir da decisão da mãe, Valentina e seu irmão passam a se comportar como bebês, na ideia de fazê-la desistir da ideia, ao relembrarem que cuidar de uma criança pequena é trabalhoso.
“Mas a senhora não se lembra? O bebê faz muito trabalho” (Sic), diz Valentina. A mãe responde: “Não, mas é muito bom, eles ficam brincando assim no chão, dependem da gente pra tudo” (Sic). Nesse vídeo, reforçamos a tese de que a maternidade ainda é encarada como uma tarefa em que as mulheres precisam dedicar 100% do seu tempo, e mais do que isso, apenas reconhecem a sua própria identidade por intermédio da dependência que as crianças têm delas que, por sua vez, abdicam de muita coisa em prol do bem-estar da família. Mais uma vez, analisamos a linguagem não verbal, e ela denuncia esse processo de apagamento da mãe, pois Valentina e Erlânia vestem a mesma roupa, e esta é bastante infantil (camiseta de unicórnio e fita cor de rosa no cabelo). No fim, o desejo individual da mãe, de ter outra criança, é esquecido graças ao discurso de convencimento de Valentina e do irmão.
Ainda está enraizado no pensamento coletivo que a maternidade é um dos, senão o único caminho para todas as mulheres, sendo esse seu maior objetivo. Para a realização completa desse desejo, dentro do que é esperado pela sociedade, inicia-se um processo de anulação pessoal, devotamento e sacrifício. Não é demais dizer que esse seria um sofrimento que a mulher escolhe e que é necessário na vida de todas (Trindade e Enumo, 2002). O ditado popular diz que “ser mãe é padecer do paraíso”.
Segundo Zanello, existe um “dispositivo materno” (2016, p.16) que é justamente encarregado por manter a produção de subjetividade que coloca as mulheres como cuidadoras predestinadas. Essa culpa, esse sacrifício voluntário, que é tão presente no relato de tantas mães, é a denúncia de que ele vem cumprindo sua função. Existe culpa nas mais diversas maneiras de ser ou não mãe: na falta de cuidado, no excesso de cuidado, no não poder ou não querer ser mãe, etc.
Em uma pesquisa a respeito de repertórios interpretativos acerca da maternidade e como as mulheres os usam para descrever essa experiência, Moreira e Raseira (2010) destacam que ainda se predomina a ideia de “maternidade romântica”. Mulheres, ao narrar tal processo, ainda atribuem a felicidade a ele, e o atrelam a algo divino, que causa plenitude, que é majestoso. Mantem-se assim a ideia essencialista de maternidade como atributo natural da mulher.
No vídeo “A menina que não tinha amigas aprendeu uma lição”, Erlânea é substituída por outra atriz. A mãe de Valentina, neste episódio, assume uma postura de repulsa frente a outras crianças que estão no parquinho, espaço onde acontece a cena. Tal postura se dá por compreender que as outras crianças não podem brincar com sua filha, pois não estão no mesmo nível socioeconômico que ela. Ao final da produção, a mãe de Valentina volta atrás em sua atitude, entendendo que, acima de tudo, a filha precisa dessas amizades, e que o dinheiro nem tudo compra.
A troca de atriz nesse vídeo parece cumprir a função de não associar Erlânia à imagem de uma mãe que não compreende, uma mãe má, não conectada com as reais necessidades da filha. A real mãe de Valentina aparece sempre ancorada quase que a uma noção de mãe/amiga, disposta a escutar e a acolher. No fim do vídeo, após se explicar a moral e mensagem “por trás” da produção, Erlânia aparece reivindicando novamente a maternidade: “Eu que sou a mãe de minha filha” (Sic).
Existe um discurso, com base em outro ditado popular, que diz que “mãe é tudo igual, só muda o endereço”. Moreira e Nardi (2009) procuram entender os fenômenos que levam a tantas semelhanças na forma de ser e de narrar a maternidade por diferentes mães, em tão diferentes contextos do Brasil. Os autores então sustentam a ideia de que os diferentes mecanismos de produção de subjetividade atuam no corpo das mulheres antes mesmo de se tornarem efetivamente mães. “A biologia torna-se alvo da política. O poder centrado na vida tem como efeito uma sociedade normalizadora que constrói parâmetros de conduta e julgamento que investem o corpo” (Moreira e Nardi, 2009, p. 572).
Assim, entendemos que Erlânia não é a única representação de mãe veiculada pelos vídeos do canal. A própria Valentina Pontes reivindica esse papel no cuidado com suas bonecas, quando exerce junto a elas a maternagem. Um exemplo disso está no vídeo “Ficamos escondidos e a Valentina é médica e salva a bebê”, em que Valentina, Erlânia e Vitor estão brincando de esconde-esconde quando a menina encontra sua boneca Baby Alive e começa a brincar com ela. Valentina refere-se à boneca como sua “filhinha”, mesmo que o título do vídeo tenha sugerido que ela seria médica e cuidaria da boneca.
Percebemos que mesmo a boneca fazendo referências à profissão da medicina, pois traz consigo estetoscópio e otoscópio, Valentina refere-se a ela na posição de sua mãe. É possível entender a confusão da menina, já que junto aos itens citados anteriormente, a Baby Alive, também possui fraldas e uma mamadeira de água, objetos ligeiramente associados à maternidade. Aqui cabe a problematização dos brinquedos e da publicidade na produção de subjetividade infantil e da menina, na medida em que a maior parte dos artigos oferecidos a esse público condizem com objetos para o cuidado de crianças ou tarefas domésticas.
A ideia essencialista e determinista de que a maternidade é instintiva nas mulheres é instaurada desde cedo nas meninas, seja por brinquedos, brincadeiras, e pela publicidade, todos afinados a essa lógica aqui criticada. Valentina Pontes, mostrando ao público infantil a forma “correta” de se brincar com esses brinquedos, não flexiona ou tensiona essas normas, mas as propaga ainda mais, intencionalmente ou não.
Em um vídeo muito semelhante ao descrito antes, “Brincando de pique-pega com minha boneca”, Valentina, Vítor e Erlânia combinam de brincar de pique-pega quando, de repente, a menina encontra uma Baby Alive no caminho e vai interagir com a boneca. Seguindo a mesma lógica da discussão sobre o que é ofertado à criança, é interessante notar que essa boneca possui roupas de adolescente/jovem. Entretanto, novamente, entre seus acessórios estão a fralda e a mamadeira de água. Mais do que isso, a boneca verbaliza “eu te amo, mamãe”, fazendo um apelo à maternidade, que Valentina responde com “filhinha” (Sic).
Essa forma de se enxergar gênero, infância e maternidade, é também uma forma de controle social e dominação. Entretanto, não podemos demarcar esses discursos como as únicas causas que mantêm a desigualdade e a violência de gênero. É ilusória a ideia de que toda a produção de sentido que marca o corpo das mulheres é inocente e coincidência, já que podemos enxergar claramente que parte dela provém da própria ciência (Dias, 2016).
Podemos ver que a educação que oferecemos enquanto sociedade, desde as brincadeiras, para meninos e meninas, difere. A boneca, o carrinho, a miniatura de cozinha, a bola de futebol demarcam exatamente a expectativa que recai sobre cada um dos gêneros, apontando para a dominação masculina e a ocupação desse gênero do setor público (Silva, 2013).
O vídeo “Valentina brincando com o bebê reborn completo” traz o pai da personagem principal representando um personagem estranho, cheio de trejeitos, que fica observando a brincadeira da filha, que consiste em empurrar um carrinho com sua boneca pelo jardim. No momento em que Valentina se afasta do brinquedo para buscar comida para sua bebê, o pai sai de seu esconderijo e rouba a boneca. A história é finalizada com a menina se dando conta que a boneca não estava mais no carrinho.
Novamente, nesse vídeo, as mulheres da família são associadas ao lugar de cuidado e carinho, mas a questão se agrava: dessa vez, o pai, homem, é colocado na posição de perigo para a criança. É reforçado, assim, que, ao contrário da mãe, o pai não possui habilidades, muito menos instinto ou algo natural que lhe direcione ao exercício da paternidade.
Para Costa (1995), diferente da maternidade, que é investida e impressa no corpo da mulher desde o nascimento, aos homens, a paternidade aparece apenas em um determinado momento de suas vidas: o casamento. Em sua pesquisa, a autora não encontrou discursos que ligassem esse fenômeno a algo natural na vida dos homens. Estudando a infertilidade, enquanto para mulheres esta interferiria no cumprimento de uma “vocação”, para o homem estaria muito mais ligada à virilidade e à sexualidade.
O ideal de paternidade também é reforçado pela veiculação de discursos, dessa vez físicos e morais. A exigência pela capacidade de poder “fazer” filhos e filhas e também conseguir educar e sustentar financeiramente são atributos que estabelecem a paternidade hoje como um projeto de vida para os homens (Costa, 1995).
5. Conclusão
Seguindo a lógica de nossas bases epistemológicas, afirmamos novamente que o rumo que tomou a pesquisa, os objetivos que foram estabelecidos, e a forma como os resultados foram narrados relacionam-se com as vivências e inserções sociais das autoras. Por isso, não acreditamos na possibilidade de que esse tema seja esgotado, na medida em que o conhecimento é produzido e transformado na relação continuamente.
Por isso também não foi nossa pretensão produzir nenhuma resposta ou verdade absoluta acerca do assunto estudado. Santaella (1983, p. 9) nos ajuda a pensar nesse processo, quando diz que “toda definição acabada é uma espécie de morte, porque, sendo fechada, mata justo a inquietação e curiosidade que nos impulsionam para as coisas, que, vivas, palpitam e pulsam”. Fechar as possibilidades de reflexão e contribuições seria ir contra as ideias que originaram a pesquisa.
Nossas problematizações, neste estudo, iniciam com uma contextualização da maternidade junto à cultura ocidental, que culmina na lógica atual representada junto aos vídeos analisados. Trata-se de séculos de exercícios constantes, que incutem na mulher uma noção de maternagem, de lugar social e de representação do sujeito materno que certamente foi internalizado com sucesso, já que muitas mulheres se reconhecem em meio a esse papel muito bem representado em meio ao material em análise.
Erlânia, mãe da personagem principal aparece, em meio às produções, enquanto representação da abdicação de qualquer outro papel em prol do exercício integral da maternidade. Esse movimento é tão forte nos materiais analisados que a figura da mulher Erlânia em nenhum momento aparece descolado do lugar de mãe. Em muitas situações, a personagem mostra-se, inclusive, infantilizada, ocupando um status similar ao da filha. Ao pai, por sua vez, é reservado o espaço público, do trabalho e, por conta disso, autoriza-se a ele a ausência no espaço doméstico e na criação do filho e da filha.
Outra representação de maternidade que aparece em meio às produções midiáticas é assumida por Valentina, educada, desde cedo, a assumir, por intermédio dos brinquedos e das brincadeiras, o exercício da maternidade. De cunho essencialista, tal perspectiva equipara a existência das meninas a um suposto destino biológico, voltado para o ato de procriar, de ser mãe e de cuidar da prole. A publicidade, posta junto ao material analisado, impulsiona e reforça essa divisão sexista de papéis, e direciona o brincar para a manutenção dessa lógica binarista que ainda coloca meninos e meninas em lugares específicos da sociedade, tolhendo seu direito de escolha e de vivenciar a infância de forma livre, sem essas amarras.
Concluímos este estudo entendendo que a família Pontes exerce grande influência na produção da subjetividade infantil e na lógica assumida por muitas famílias brasileiras que, ao darem ao canal analisado no estudo ampla visibilidade, por intermédio de grande acesso, repercute no cotidiano das pessoas. Chama atenção esses vídeos estarem no ranking de mais assistidos do youtube, pelo fato de que os brasileiros e brasileiras estão, possivelmente, se produzindo enquanto sujeitos, crianças e adolescente, a partir dos discursos ali veiculados, e de um modelo de família muito específico e contextualizado, em um território socio/político/econômico diferente da maior parte das famílias brasileiras, que é de baixa renda.
Em um país como o Brasil, onde a misoginia, o sexismo, o patriarcado e a violência contra as mulheres são realidades preocupantes, carece o movimento de estudos como este, que coloquem em análise as lógicas familiares adotadas que, de alguma forma, repercutem em atos constantes, embora muitas vezes silenciosos, de produção de preconceitos e violências ligadas às questões de gênero.
Urge um movimento que, a nosso ver, deve partir em especial das escolas brasileiras e das políticas públicas, em que se questione esses modelos de família e de sociedade, por vezes tão almejados, mas que, em muitas situações, perpetuam lógicas que impedem a produção de outros modos de vida mais equitativos, democráticos e livres.