Introdução
A Atenção Domiciliar (AD) é uma alternativa assistencial inovadora à continuidade do cuidado em contrapartida ao modelo hospitalar, predominante em muitos sistemas de saúde ao redor do mundo.1 Ela inclui assistência multiprofissional, mediada por cuidadores, a partir das necessidades e demandas de saúde, atuando na prevenção de internações hospitalares, na desospitalização, evitando reinternações e diminuindo custos.2,3
A depender do arranjo adotado, o domicílio torna-se espaço potente, substitutivo, possibilitando a produção de autonomia e de alternativas criativas do cuidado, com criação de vínculo e projetos terapêuticos compartilhados com usuário e sua familia,4,5 com potencial para ofertar cuidados paliativos (CP) na concepção da integralidade e humanização.6 O CP não se destina apenas às pessoas com prognóstico limitado de vida, mas, também, às que apresentam dependências, secundárias a condições crônicas avançadas e aos seus familiares.6
O CP domiciliar sobressai-se em substituição ao hospitalar, aliado ao trabalho multiprofissional e à presença de um cuidador familiar (CF), deslocando-se o processo de morrer e morte para domicilio.7 O CF pode ou não ter vínculo familiar com o paciente, deve estar apto a auxiliá-lo nas necessidades e atividades da vida diária,2tornando-se elo entre este, a família e a equipe, com potencial de direcionar as ações de saúde.5,8
Explorar os aspectos envoltos pela função do CF tem sido fundamental para as definições de planos terapêuticos, ações de suporte, haja vista os inúmeros desafios aos que assumem o cuidado de um familiar em CP. O tornar-se CF nestas condições, compartilhando ações com o serviço de AD exige uma postura e tomada de consciência sobre o processo de morrer e morte do familiar.9
Os profissionais de saúde, destacando-se a enfermagem, auxiliam a família na identificação daquele que assumirá a liderança no CP domiciliar, entretanto não está claro como este papel se institui nesta mediação, se há ocorrência de sobrecarga ao CF e se esta se atenua com as intervenções práticas. Essa interação parece exercer influências para ambos os lados, potencializa a sensibilidade humana e transcende as questões burocráticas do cuidado, mobilizando questões culturais, religiosas e sociais.4,10
Usuários e CF devem estar envolvidos na abordagem interdisciplinar do CP pela AD, justificando-se estudos que compreendam os desafios desta interlocução, que fundamentem ações de gestores, trabalhadores e usuários de diferentes setores e criação de política pública11.
Um pressuposto prévio foi que o processo de tornar-se cuidador familiar poderia ser um fardo e gerar sobrecarga física e emocional quando o foco da assistência domiciliar fosse cuidados paliativos. Poderia, todavia, vir a ser suave ao entendimento deste processo pelos profissionais de saúde, possibilitando desenvolvimento planos de cuidados integrados ao cuidador familiar. Neste artigo buscamos compreender as condições relacionadas ao tornar-se cuidador familiar principal de um membro da família que recebe cuidados paliativos por serviço de AD, com vistas a desenvolver uma explicação teórica sobre este fenômeno. Para tanto, nosso ponto de partida foi a perspectiva de pessoas da família que assumem os cuidados paliativos do familiar em casa em interlocução com profissionais de serviço de AD. Consideramos, previamente, a ótica dos profissionais sobre o tornar-se cuidador familiar, sobretudo os da enfermagem, cuja atuação na AD, dentre outras competências de cuidado, prevê apoio e educação junto à família. Isto pela relevância de se fornecer elementos que contribuam para a melhor definição de papéis da família e, principalmente, de enfermeiros que atuam em interlocução com ela no cuidado paliativo domiciliar.
Metodología
Pesquisa qualitativa, desenvolvida com a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), método explicativo, dedutivo-indutivo,12 realizada em 2018, em três etapas, num Serviço de Atenção Domiciliar (SAD) público de Minas Gerais, Brasil.
Na primeira, investigamos o perfil sociodemográfico e de saúde de 18 usuários admitidos em 2018 para CP adotando um instrumento que elaboramos para este fim. Organizamos estas informações em planilha Excel, MicrosoftOffice para posterior análise descritiva. Esta etapa, além da descrição do cenário, contribuiu para selecionar os participantes.
Na segunda etapa, foram entrevistados 18 participantes que estavam envolvidos com CP domiciliar acima de três meses, sendo nove CF e nove profissionais de enfermagem: cinco enfermeiros e quatro técnicos de enfermagem. A inclusão foi gradual e intencional durante a coleta e análise dos dados, ocorridas simultaneamente até a saturação teórica.12
Cuidados Paliativos tem sido tema significativo à atuação da enfermagem na AD e a visão desta área profissional, sobre como é percebido o processo de um familiar tornar-se cuidador, considerando o conjunto de pacientes cadastrados no serviço levou-definir como primeiro grupo amostral, os profissionais de enfermagem (enfermeiros e técnicos de enfermagem) em atuação no SAD sede da pesquisa.
O segundo grupo amostral foi composto por CF. Incluímos os cuidadores usuários do SAD, existentes no município de Juiz de Fora (Minas Gerais, Brasil), maiores de 18 anos, devendo ser o cuidador principal, responsável pelo usuário que depende de cuidados domiciliares e que estivessem sendo acompanhados pelo SAD há menos de três meses no momento da coleta de dados.
As entrevistas em profundidade foram realizadas por uma pesquisadora em estágio pós-doutoral experiente em entrevistas para TFD, em locais privativos no domicílio dos CF e na sede do SAD com os profissionais. Foram gravadas em Smartphone, modo off-line, transcritas, pré-analisadas antes da entrevista seguinte e organizadas no OpenLogos, softwarelivre para apoio à edição textual de pesquisas qualitativas13 e tiveram média de duração de 13 minutos (profissionais) e 28 minutos (CF).
Na terceira etapa, para a validação do modelo teórico, um terceiro grupo amostral foi composto por nove profissionais da equipe multidisciplinar (oito integrantes do SAD e um da Atenção Primária à Saúde) e 15 cuidadores familiares. A coleta de dados se deu adotando a estratégia de roda de conversa, conduzida por uma doutora em estágio pós-doutoral, apoiada por uma estudante de graduação da área da enfermagem.
A análise foi processual, ocorrida ao longo das entrevistas pelas codificações: aberta, axial e seletiva. Envolveu a leitura linha a linha da transcrição, para captação e definição preliminar de códigos, que confrontamos, comparamos e reunimos por semelhanças e diferenças. Agrupamos e reagrupamos os códigos conceituais que permitiam explicar e compreender a questão (codificação axial). O processo analítico envolveu captar as relações e proceder ao afunilamento com codificação seletiva, em que subcategorias encontradas foram contrastadas, analisadas, integradas e refinadas em torno da categoria central que se mostrou como condição causal do fenômeno gestão familiar do processo de morrer e morte de paciente em CP quando ofertado pela AD. Esta etapa foi realizada por duas pesquisadoras.
Cabe ressaltar que as etapas de análise dos dados e o processo de validação utilizados na TFD conferem rigor e confiabilidade à teoria substantiva produzida. Houve análise e comparação constante dos dados e conceitos e suas relações, visando explicar o fenômeno e apontar seu contexto de ocorrência, suas causas, consequências, condições intervenientes e estratégias de ação/interação.12
O estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Obedeceu aos preceitos éticos da Resolução Nº 466/2012 do CNS.14 Substituímos os nomes dos participantes por códigos, sendo: CF para cuidadores familiares e PE para profissionais da enfermagem, seguidos do número de ordem da entrevista.
Resultados
Dos 18 usuários admitidos para CP domiciliar, 15 tinham como referência um CF do gênero feminino. Consonante à complexidade do cuidado, seis classificavam-se para Atenção Domiciliar 1, de atribuição da Rede Básica; nove para Atenção Domiciliar 2 e três para Atenção Domiciliar 3, demandando intervenções de maior densidade tecnológica pela equipe do SAD. Cabe informar que, no Brasil, a definição da modalidade assistencial relaciona-se às necessidades de saúde, a periodicidade das visitas, à intensidade do cuidado multiprofissional e o uso de equipamentos, classificando-se e, AD 1 a 3, conforme aumenta a complexidade do cuidado.
Para a admissão no SAD, 15 usuários procediam de desospitalização e três da Atenção Primária; com média de idade de 76,61 anos (de 40 a 99 anos). O tempo médio no SAD foi de 17,4 meses e em CP domiciliar de 55,56 meses (de 7 a 180 meses).
Dos nove CF entrevistados, sete eram filhas, uma era cônjuge e outra, companheira em união estável, com média de idade de 49,56 anos (de 35 anos a 59 anos). Cinco possuíam renda menor do que um salário mínimo oficial no país. Uma tinha vínculo formal de trabalho; quatro eram aposentadas e quatro trabalhadoras informais. Cinco concluíram o ensino médio e quatro o ensino fundamental. Dos profissionais, sete eram mulheres com média de idade de 43 anos e tempo médio de atuação no SAD de 37,11 meses.
A vivência do processo de tornar-se cuidador de um familiar em CP domiciliar pode ser compreendida em três momentos, sequenciais e interligados conforme as três subcategorias inter-relacionadas apresentadas a seguir e na Figura 1 apresentada mais abaixo.
Assumindo o cuidado domiciliar do familiar em cuidados paliativos
Mudanças ocorreram na vida dos CF ao assumir o cuidado, como a abdicação do trabalho remunerado. ''Parar a vida''foi uma expressão recorrente por priorizar-se o cuidado do familiar em detrimento das próprias necessidades. Ter conhecimentos sobre cuidados de saúde foi considerado essencial para assumir o cuidado de um familiar em CP.
Porque tem coisas que não tem como e mudou, que eu tive que parar a minha vida, né. ''Deixei de trabalhar, de fazer as coisas que eu gostava para eu poder olhar ela''. (CF1)
E, às vezes, as pessoas me perguntam: mas você tem condições? (...) Você é enfermeira, sabe de alguma coisa? Não, eu não tenho estudo pra isso... (CF 2).
Ao assumir este papel, recai sobre o CF o ''dever moral''de cuidar dos pais, as memórias de sofrimento que o familiar possa ter lhe causado e a responsabilidade pelo cuidado, ao invés de recorrer a pessoas externas:
Eu acho que como ela me cuidou, eu tenho que cuidar dela, e faço por um dever, não como se fosse obrigada, é uma coisa certa que eu tenho que fazer... que ela faria comigo e eu estou fazendo com ela. Não é uma obrigação. É uma coisa certa! (CF 3)
Porque os meus irmãos têm uma mágoa muito grande do meu pai, porque o meu pai foi uma pessoa muito difícil, muito rígido. Ele não foi fácil! Então, eles têm muita mágoa por conta disso. Eles preferem se afastar. (CF 6)
É um cuidado que a gente tem que ter, porque só a gente mesmo que pode cuidar, é pessoa de casa. Você põe outra pessoa pra cuidar também, vai cuidar de qualquer jeito. Hoje vai tratar bem, amanhã vai tratar mal, aí a gente nunca sabe ao certo o que está acontecendo. (CF 7)
(Des) conhecendo a condição de saúde do familiar e o significado de cuidados paliativos.
Cuidados Paliativos é uma expressão que não está plenamente difundida no vocabulário e na compreensão dos CF. Profissionais evitam falar sobre morte ou CP, trazendo à tona a dificuldade de comunicação e questões éticas relacionada às consequências da desinformação sobre o processo de morrer e morte dos familiares.
Cuidado paliativo? Não sei. O que seria? (CF 5)
Aos poucos que a gente vê, assim, que têm consciência também, eles não comentam e você percebe que ele não sabe, podem até ter noção, mas não foi dito diretamente pra eles que os cuidados deles são paliativos. De morte com eles não é falado, não é conversado. (PE 9)
Desconhecimento gera sofrimento e solicitações de intervenções que não contribuem para a melhora do familiar. Alguns CF souberam que o seu familiar tinha a indicação de CP quando estavam hospitalizados, outros por meio de experiências prévias, leituras e acesso à internet. O apoio dos profissionais ampliou a possibilidade dos CF de participarem das decisões ao longo do tratamento.
Nem todo cuidador sabe diretamente o que significam os cuidados paliativos (...) e, às vezes, fica ali naquele desespero cuidando, (...) não tem essa consciência de que os cuidados paliativos são somente esses de não deixar o paciente ter a dor, de dar o conforto mesmo, aguardando o momento que irá acontecer (a norte). (PE 9)
Eu tenho um pouco de informação sobre isso, porque trabalhei, temporariamente, como cuidadora. (CF 11)
Eu sei, porque eu vejo muito na internet, eu leio muito sobre isso, frequento grupos sobre o estado da minha mãe. (CF 1)
Eu soube nessa última internação dele, né, quando ele veio pra casa, a equipe médica do hospital falou. (CF 6)
Orienta muito a gente né. Tanto é que eu tenho agora a sensação de poder tirar a químio (quimioterapia), tirar tudo dele, que eu sei que ele tá bem cuidado, na hora que ligar, eles vêm. Essa sonda eles trocam todo mês (mostra o cateter vesical de demora), não fica velha, nada, nada, nada mesmo. (CF8)
Vivenciando os cuidados paliativos e lidando com a possibilidade de morte.
Vivenciar possibilidade da morte do familiar em casa e contribuir com os CP mostrou ser uma condição complexa, desencadeando adoecimentos, reações e sentimento de derrota no CF por não verem melhora do familiar, apesar do cuidado despendido. Rememorar a vida do familiar antes do avanço da doença contribuía para tomar consciência sobre a atual condição.
(...) a minha mãe ficou bem debilitada, eu entrei num processo de depressão. Eu chamei meu irmão e falei ''ó, eu não quero cuidar mais... (...)não quero mais essa responsabilidade'', porque eu não cuido só, eu também sou a curadora legal, eu sou responsável por medicação, pelas coisas que faltam, então, quando eu entrei naquele processo, eu (...) cheguei a perder peso, eu não dormia. Eu não dormia porque eu tinha que aspirar e ela tossia muito, principalmente à noite. (CF 2)
Eu me sinto impotente e triste porque é, igual eu tinha te mostrado (...) a foto dela e tudo... Lembro como algum tempo atrás ela era e como que ela tá hoje. (CF 7)
Os profissionais consideram que o processo de um familiar tornar-se cuidador de um ente querido em CP é permeado por conflitos no seio familiar, seja por divergência de opiniões e/ou pela sobrecarga.
(...) A gente acaba, no decorrer da conversa, descobrindo que a família está tendo desentendimento. (...) Você vê que a pessoa está sobrecarregada e, às vezes, ela começa a chorar. Às vezes, ela não consegue dar conta do serviço mesmo, do que tem que ser feito. E tem a parte emocional dela, também, que não suporta aquela situação e acaba que vem tendo um quadro de depressão também. (PE 10)
A aceitação pelos CF ocorre por acompanharem e constatarem a progressiva ação da doença ameaçando a continuidade da vida. Quando tomam conhecimento do diagnóstico e prognóstico, consideram-no um momento difícil. Com o tempo, observa-se um processo de acomodação e adaptação, minimizando-se os momentos de sofrimento ao pensar na morte do familiar. Os CF reconhecem que os profissionais têm papel importante para lidarem com o processo de finitude do familiar.
É, no início, foi difícil, hoje a gente já, já está acostumada... Assim, né?! A gente não sabe até quando vai durar (risos), né?! (...) Deus me livre e guarde, se ele partir, eu não vou sofrer, porque eu, eu vejo que tudo que tá sendo feito para o bem dele está sendo feito. (CF 6)
Ah, a gente já vem assimilando isso com o tempo, né, a gente já, reagiu normal. (...) eu acho que a gente já tá lidando com isso já, acostumando. (...) Porque o que a gente escuta é o seguinte: tá acabando! (CF 8)
Alguns CF negavam a condição de saúde e a proximidade da morte do familiar. Outros conviviam com a expectativa da descoberta de avanços no tratamento e possibilidade de cura, decepcionando-se. Receber apoio/esclarecimento e possuir religião contribuiu para a aceitação desse processo.
Ela quer operar a garganta pra voltar a falar. No fundo, ela e meu filho sabem, eles sabem que não tem jeito, pois ela tem ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica).(CF 7)
(...) geralmente quando fala assim ''tem uma reunião'', eu fico doido pra ir pra poder ficar sabendo, de repente tem alguma coisa diferente lá, que vai mudar tudo. Chego lá o negócio voltou à mesma coisa. (CF 7)
Importante explicar, para a gente ir sabendo que vai chegar aquele momento, vai chegar, né, aquela hora ali e se preparar. (CF 5)
Eu falo assim ''Meu Deus, como que vai ser na hora que ele for embora?'', né?! (...) porque você tem que estar prevenida pra tudo. (CF 8)
Na Figura 1 visualiza-se a relação que se explicita entre as subcategorias analíticas do processo de tornar-se CF de um familiar em CP mediado pela AD:
Discussão
A condição de um membro da família assumir o CP domiciliar, mediada pelo serviço de AD, faz surgir um novo papel, concebido como CF responsável. Nosso estudo identificou a partir das entrevistas realizadas que este processo pode ocorrer a partir de três momentos, conforme apresentado nas subcategorias discutidas.
O primeiro se inicia quando o CF assume o cuidado do familiar, buscando a compreensão sobre a condição de saúde e prognóstico. A situação lhe impõe exigências, expondo algumas premissas: autonomia em optar pelo cuidado do familiar e escolhas referentes aos cuidados requeridos em sua condição de saúde; possuir treinamento/formação específica; lidar com as mudanças radicais na vida com perdas de relações sociais, de trabalho remunerado e lazer. Identificou-se, nas entrevistas realizadas, que surgem diferentes sentimentos e reações como: tristeza, choro constante, a impotência/inutilidade, derrota, apreensão e ansiedade.
Muitos familiares tornaram-se CF pela imperiosa necessidade de terem que assumir em casa o cuidado do familiar em CP. Assume-se este novo papel sem preparação, conhecimento ou suporte adequado, acarretando prejuízos em sua qualidade de vida e na qualidade do cuidado dispensado ao familiar.15 Importante parcela dos CF não têm formação específica para a atividade que realizam e não são remunerados.16
A sobrecarga do CF esteve proporcionalmente relacionada ao grau de dependência do familiar, tornando-se, na maioria das vezes, pessoas que se esquecem das suas necessidades e podem perder a satisfação em viver. É frequente a ambivalência de sentimentos, com consequente adoecimento físico.16,17, 18
No cuidado domiciliar há situações cujos vínculos entre CF e usuário são extremamente frágeis e/ou conflituosos e o olhar atento dos profissionais torna-se esencial.16,18 A equipe da AD compõe a rede de apoio e suporte, desenvolvendo estratégias com outras equipes, serviços intra e intersetorial para gestão do cuidado.4,8,19,20,21
Em um segundo momento, a decisão ao assumir o CP domiciliar traz à tona a consciência sobre o (des)conhecimento sobre a condição de saúde do familiar e o significado de CP.22,23,24A experiência prévia, a ausência de conhecimento sobre CP e a condição de saúde, os conflitos éticos e a proximidade da morte do familiar são fatores que influenciam na compreensão deste processo pelo CF. A comunicação com os profissionais de saúde é a principal referência e, por vezes, mostra-se frágil e pouco esclarecedora sobre o real significado do CP domiciliar.10
A dificuldade de profissionais e familiares conversarem sobre os CP é um importante achado, que pode estar relacionado ao tabu que a sociedade contemporânea lida com a morte. Segundo Foucault, a morte na sociedade disciplinar evidenciaria a falha nos mecanismos de controle do corpo social por meio das tecnologias biopolíticas e do biopoder.25 Para o profissional estabelecer estratégias assistenciais, deve buscar conhecer o significado que tem o cuidado para os envolvidos, com respeito às dimensões religiosas, espirituais e culturais e suas formas de enfrentamento.18,26
A comunicação é uma habilidade essencial para compreensão dos significados atribuídos pelo CF ao longo de todo o processo de cuidado.22Inclui-se entre as tecnologias leves, estruturantes para a efetividade da AD ou ''levíssimas'', ao se tratar de CP, pois requer o manejo e porosidade frente às necessidades dos CF e usuários para lidar com o processo da morte e perda, bem como o uso de tecnologias duras, por meio de procedimentos invasivos e medicamentos para alívio e controle da dor.27
Um passo adiante, ao se tornarem CF, foi o investimento na aprendizagem e estratégia de enfrentamento, buscando-se informações na internet e redes sociais. Um processo de descoberta sobre como lidar com a finitude e os pensamentos/sentimentos que podem aflorar. Por vezes, frente à sobrecarga, emergem sentimentos de culpa por se pegarem desejando a antecipação da morte do familiar.28,29Apoiam-se em uma religião ou em experiências prévias, utilizando-se das vivências no cuidado em situação semelhante. Nutrem-se com lembranças passadas, recorrendo-se a fotografías.10,18
Os CF recorreram a distintas fontes de apoio para vivenciarem este processo, corroborando com outros estudos.18,29,30A religião foi, frequentemente, citada para fortalecimento, alívio e consolo diante da condição de proximidade da morte do familiar e das demandas de cuidado,18 ampliando a compreensão sobre a experiência vivida. Entretanto, a vivência continuada com os CP e a possibilidade da morte do familiar pode expor-lhe a um esgotamento físico e mental.22
Deve-se estar atento a estas alterações considerando a sobrecarga emocional e as privações de necessidades básicas como sono e boa alimentação. Muitos enfrentam o isolamento social por ficarem em casa cuidando do familiar adoecido e longe de suas atividades ocupacionais e de lazer.28,29É relevante a implementação de políticas públicas que deem suporte aos CF, bem como a criação de estratégias para fortalecimento da rede de apoio, possibilitando pausas periódicas no cuidado, evitando o seu adoecimento e promovendo o autocuidado.16,18
O processo vivido, desde o momento em que assumem os cuidados do familiar em casa, sofre efeito temporal, contribuindo para a formação de uma consciência crítica. Observa-se a internalização da condição vivenciada, demonstrando comportamentos de acomodação ou resignação frente a ela e vazão a novas reações e sentimentos. Passa-se a demandar, de modo mais proativo, o apoio de outras pessoas ou de serviços para tomadas de decisões, por exemplo, sobre manter ou retirar medicações, aceitando a ideia da morte do familiar.31
A decisão sobre o local da morte do familiar é permeada por valores pessoais como autonomia, privacidade e proximidade da familia.18,31As equipes de AD são fundamentais no apoio, acolhimento e suporte à família quando há o desejo e intenção de realizá-lo no domicílio, com porosidade frente às suas necessidades, expectativas e desejos ao longo deste proceso.8,10É possível que familiares considerem o hospital como o lugar mais conveniente, por proporcionar alívio do sofrimento, o acesso aos recursos tecnológicos, além de preservar que a morte ocorra fora de casa, mantendo as boas lembranças.18
A equipe de saúde constitui-se como fonte de apoio aos CF, prestando orientações e esclarecimentos acerca do cuidado, amenizando o sofrimento - físico, social, financeiro e emocional -, além de sentimentos de abandono, tristeza, solidão, dentre otros.29,30Os profissionais se empenham em proporcionar conforto aos pacientes e familiares assistidos, transcendendo a questão técnica do cuidado, oferecendo atenção, carinho, orientações e palavras de conforto.
A AD tem como lócus do cuidado o domicílio, revelando situações familiares e necessidades não evidenciadas no tradicional espaço institucional de atenção à saúde.5,32O CF tem papel fundamental como responsável pelo paciente, cuidando, apoiando e mediando a assistência entre o familiar e a equipe.30Deve ser reconhecido pela mesma como um sujeito produtor do cuidado, que formula, tensiona, identifica necessidades e requer uma rede de apoio e suporte, e não como mero executor de procedimentos. A porosidade das equipes de AD no manejo das disputas de projeto terapêutico, podem interferir em maior ou menor grau nas relações de cuidado.4,5,8,19,22
Isso posto, o estudo verificou as múltiplas conexões estabelecidas para o cuidado domiciliar ao ente querido em CP. Os cuidadores familiares relataram que aprenderam no dia-a-dia a cuidar do ente querido adoecido, não tendo formação adequada para isso e que deixaram suas vontades e necessidades para assumir o cuidado domiciliar. Ainda, identificou-se que muitos cuidadores e profissionais têm dificuldade em conversar sobre o processo de morrer e morte de pacientes e que as experiências de vida, religião/crença e o esclarecimento/apoio recebido são fatores contribuintes para a aceitação do processo de morrer e morte.
Verificou-se que as dificuldades nesse processo podem ser amenizadas por meio de estratégias adotadas pelos profissionais para ampliar a comunicação e o apoio frente às singularidades das famílias e, também, através da implementação de políticas públicas que favoreçam o cuidador.
Com a expansão dos CP pela AD, novas competências têm sido requeridas da enfermagem e de profissionais de saúde que atuam neste cenário, expondo a relevância da inclusão deste tema nos currículos da formação em saúde. No processo de cuidar pela AD, torna-se explícita a necessidade de um olhar atento aos CF, eminentemente do gênero feminino. Mostra-se essencial a criação de uma política pública específica de apoio, suporte instrumental aos CF, possibilitando-lhes qualidade de vida e dignidade ao processo de morte e morrer, amparado pela família, no cuidado domiciliar.
Aponta-se como limites desse estudo o fato de ter sido realizado em apenas um local, em momento e cenário historicamente datados, em um contexto cultural particular, contudo esse alcance confere probabilidade para futuras análises em diferentes cenários.
Conclusões
Esta pesquisa possibilitou compreender o processo de tornar-se cuidador de um familiar em CP domiciliar, contribuindo para inovações no que tange às práticas de cuidado diante do processo de morte/morrer. É preciso vislumbrar novos enfoques ao cuidado, incluindo suporte aos CF que são o elo com o SAD e vivenciam junto ao seu familiar o processo da morte, ou mesmo reforçar práticas já aplicadas.
Em função de este estudo ter sido realizado em um contexto com características específicas, constitui-se em uma limitação para a generalização dos achados, contudo seu alcance confere probabilidade para futuras análises em diferentes cenários.
DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSE
Os autores declaram não haver conflito de interesses.