Introdução
A descoberta da Síndrome Congênita do vírus Zika (SCZ) provocou rupturas abruptas no cotidiano das mães, como abdicação ou reorganização do projeto de vida materno, saída do emprego, abandono do autocuidado e dedicação integral ao cuidado da criança.1 As mães emanam esforços para prover bem-estar à criança e buscam ferramentas que antecipe a independência da criança, por isso percorrem complexos itinerários terapêuticos junto a criança,2 necessitando diminuir as horas de sono e permanecendo fora do ambiente doméstico por longos períodos.3
No Brasil, desde o surgimento da epidemia da SCZ em outubro de 2015, as mães e crianças conviveram e convivem com diferentes necessidades de saúde progressivas, desde o pouco suporte profissional ao receber o diagnóstico,4 desestruturação da rede de atenção à saúde de crianças com deficiência,5,6ineficácia do cuidado multidisciplinar longitudinal à família,3diminuição da renda familiar, escassez de tecnologias assistivas e medicamentos,7 além da preocupação com a etapa de inserção escolar da criança.8
Com tais desafios as mães buscam superá-los acionando o poder judiciário para gozar do seu direito à saúde conforme escrito na Constituição Federal Brasileira (CFB) como direito de todos e dever do Estado, assegurada por meio de ações preventivas dos riscos de doença e seus agravamentos, e de acesso amplo e irrestrito aos tratamentos eficazes.
Por meio desses princípios assegurados constitucionalmente, a busca pela proteção de grupos sociais em vulnerabilidade (crianças, idosos, famílias e deficientes) é norteada pela gratuidade da prestação na assistência social e disponibilização de benefícios permanentes e/ou eventuais.9 Nesse sentido, os cidadãos podem/devem recorrer à prestação jurisdicional de maneira individual ou coletiva, demandando do Estado o cumprimento do preceito constitucional.10 Nesse estudo entende-se SCZ como alterações neurais, identificadas por neuroimagem, provocadas pelo vírus Zika presente na gestante, transmitidas para o feto e causador de anomalias craniofacial e espasticidade nas crianças.11
Desde 2015 a SCZ foi registrada em mais de 20 países da região das Américas,12 com elevada prevalência no Brasil somando 3.577 casos confirmados entre 2015 e 2020, dos quais 35 foram notificados no último ano.13 Novos surtos de infecções por vírus Zika alcançaram regiões do sudeste asiático entre 2017 e 2018 com continuidade da circulação viral.14 Entre julho e novembro de 2021 a atenção das autoridades sanitárias mundiais estava direcionada para a Índia, onde surtos do adoecimento foram confirmados em diferentes localidades do país com maior incidência nos estados do Kerala e Kanpur.15
Este estudo se faz relevante por revelar as necessidades de saúde das crianças com SCZ que não são atendidas no campo da saúde e por isso justifica o pleito ao direito assegurado por meio de demanda judicial, conjuntura que pode se repetir em diferentes países ao redor do mundo. Nesta conjuntura o profissional de saúde atuante no cuidado direto ao paciente, gestão pública e assessoramento do poder judiciário, acessa evidências científicas que podem transformar suas condutas em prol das famílias de crianças com SCZ.
Assim, a questão norteadora desse estudo busca investigar quais as motivações e desfechos das impetrações judiciais requeridas por familiares de crianças com SCZ? A fim de alcançar o objetivo de apreender as principais motivações das impetrações judiciais requeridas por familiares de crianças com SCZ e seus desfechos.
Metodología
Estudo exploratório documental, com abordagem qualitativa, apresentado conforme critérios da ferramenta Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ)16 para assegurar a qualidade do registro dos estudos qualitativos.
O sítio eletrônico JusBrasil foi o lócus do estudo. Trata-se de uma plataforma digital considerada como principal banco de dados de jurisprudência do país, com pesquisa rápida e gratuita (https://www.jusbrasil.com.br/home).17No sítio eletrônico Jusbrasil a consulta Processual dos Tribunais é de acesso público a todo cidadão.17
Foram incluídos no corpus deste estudo processos impetrados por familiares de crianças com SCZ entre janeiro de 2016 e junho de 2019. Os processos julgados em 2015 caracterizam-se por petições que tinham as mães como beneficiárias, não integrando-os ao corpus. Os processos excluídos respeitaram os seguintes critérios: ausência de desfecho; microcefalia não associada ao vírus Zika; petições direcionadas ao período gestacional.
A coleta de dados ocorreu em três etapas desenvolvidas no mês de março de 2020. Na primeira etapa foram coletadas e observadas as informações dos processos judiciais e seus desdobramentos, as palavras que auxiliaram na busca foram: ''microcefalia''e ''zika vírus”. Ao final dessa etapa, ou seja, após a obtenção dos dados, obteve-se o número de processos que estavam aptos a participar do estudo.
Na segunda etapa, foi realizada uma leitura do resumo dos processos, a caracterização e separação dos dados, colhidos na plataforma digital do Jusbrasil, de acordo com as suas demandas. Os dados foram organizados por grupos em pastas de acordo com as suas categorias e armazenados para análise. A terceira etapa consistiu na leitura aprofundada de cada processo e extração dos resultados, mediante a utilização de roteiro para recompilação e análise dos dados previamente organizados na segunda etapa. A síntese do processo metodológico está ilustrada na figura 1.
Para proceder com a análise dos dados estes foram organizados em dois grupos, o primeiro com dados referentes as motivações judiciais, sendo submetidos a análise lexical realizadas pelo Software IRaMuTeQ (Interface de R pourles Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), versão 0.7 alpha 2; enquanto o segundo grupo, destinado a temática dos desfechos judiciais, foi explorado conforme a análise de conteúdo temática reflexiva.18
A análise lexical ocorreu tanto pelo método de Reinert quanto pela análise de similitude. O método de Reinert destaca as palavras mais frequentes, associando-as conforme o valor de p≤0,001 e agrupando-as em classes a partir do teste qui-quadrado, pois o próprio software constrói como resultado a Classificação Hierárquica Descendente (CHD) que ilustra as palavras pertencentes a cada classe. A análise de similitude relaciona as palavras com o uso da lematização, identificando a coocorrência entre elas por meio de um gráfico em forma de árvore, apresentando ''troncos''constituídos por palavras frequentes e ''ramificações''a partir das relações entre elas.19,20
O segundo grupo de dados foi analisado seguindo cinco etapas: leitura minuciosa dos dados; criação e atribuição de códigos para temas centrais (02 códigos); construção de mapa mental relacionando as temáticas centrais; definição de títulos para cada temática; escrita final da análise.18
O corpus textual desse estudo é constituído por informações de acesso público, portanto, desnecessário sua aprovação em Comitê de Ética em pesquisa conforme resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.
Resultados
A caracterização dos processos judiciais pode ser encontrada na tabela 1, com destaque para os processos em curso no estado do Rio de Janeiro e as mães como requerentes em 100% dos processos.
Na Figura 2, pode-se visualizar o dendograma que demonstra as cinco classes encontradas após análise das categorias advindas dos segmentos de texto. A partir do método de Reinert, a análise lexical aproveitou 80,43% dos segmentos de textos do corpus, permitindo a construção da CHD, com as palavras que apresentaram p<0,001.
Os resultados a seguir estão organizados em duas categorias: ''Motivações e características das impetrações judiciais''e ''Desfechos judiciais”. A primeira categoria conta com três subcategorias emergentes da CHD. A associação das classes 3 e 2 por afinidade léxica constituiu a subcategoria intitulada ''Planos de saúde e rede credenciada como réu principal”, as classes 4 e 1 formam a subcategoria ''Necessidades de saúde, tratamentos e terapias requeridas”, enquanto as classes 5 e 6 apresentam a subcategoria ''Classificação e embasamento judicial das impetrações”.
Motivações e características das impetrações judiciais
Planos de saúde e rede credenciada como réu principal
Nessa classe se observa a busca dessas famílias por tratamentos que não possui cobertura nas redes credenciadas aos planos de saúde, demonstrando a busca das famílias por métodos inovadores, profissional habilitado e hospitais da rede que ofertem os serviços necessários para o desenvolvimento da criança.
''(...) diante da negativa do plano de saúde, e da falta de recursos da família para o custeio do tratamento, o agravante ajuizou a ação própria com vista a compelir a operadora de saúde a arcar integralmente com a referida terapia (...)''(PROC 03)
''O requerente, menor de idade, é beneficiário do plano de saúde fornecido pela demandada, e portador da Síndrome Congênita do Zika Vírus
Variáveis | N | % |
---|---|---|
Estado federativo da impetração | ||
Rio de Janeiro | 8 | 53,3 |
Bahia | 4 | 26,6 |
Ceará | 1 | 6,7 |
São Paulo | 1 | 6,7 |
Rio Grande do Sul | 1 | 6,7 |
Requerente | ||
Mãe da criança com SCZ | 15 | 100 |
Motivação do processo | ||
Necessidades de saúde da criança | 2 | 13,3 |
Tratamento e terapias | 12 | 80 |
Acessibilidade | 1 | 6,7 |
Decisão judicial | ||
Deferido | 10 | 66,7 |
Deferido parcialmente | 2 | 13,3 |
Indeferido | 3 | 20 |
Justificativa da decisão | ||
Pelo direito a vida e proteção | 1 | 6,7 |
Pelo direito a saúde | 13 | 86,6 |
Pelo direito de ir e vir | 1 | 6,7 |
Tempo de transcursão do processo | ||
< de um ano | 3 | 20 |
Um ano | 10 | 66,7 |
Dois anos | 1 | 6,7 |
Três anos | 1 | 6,7 |
Prazo para cumprimento da decisão judicial | ||
Entre 30 e 60 dias | 11 | 73,3 |
Entre 61 e 90 dias | 4 | 26,7 |
Fonte: Dados da pesquisa, 2020.
(...) Historiam que foi prescrito para o menor o tratamento fisioterápico, com método especializado. Entretanto, na rede credenciada da requerida não existe profissional habilitado para realização de tratamento fisioterápico.''(PROC 13)
Necessidades de saúde, tratamentos e terapias requeridas
As necessidades das crianças são reconhecidas frente a comprovação do diagnóstico alegado. Assim, os tratamentos especializados, ofertados por equipe multiprofissional e mesmo os tratamentos fisioterápicos aparecem em evidência devido à procura de seus familiares em oferecer uma melhor qualidade de vida às crianças, porém sem possibilidades de custeá-las.
''Pedido de antecipação de tutela, intentada contra o município de Rio Bonito objetivando a parte Autora o fornecimento dos insumos, menor apresenta o quadro de microcefalia por zika vírus e por não ter condições de arcar com as despesas. (...) necessita fazer uso do suplemento Infatrini (3 latas por mês), o laudo médico comprova a patologia''(PROC 07)
Os processos jurídicos estão relacionados também à busca de novos tratamentos e terapias, como forma de oferecer um desenvolvimento neurológico e motor adequado para as crianças que convivem com a SCZ. Considerando a frequência das raízes das palavras, dessa classe e com p-valor < 0,0001, percebe-se semelhanças entre a busca por tratamentos e terapias pelos familiares dessas crianças.
''Paciente menor impúbere com diagnóstico de microcefalia (...) indicação de terapias multidisciplinares - fisioterapia motora realizada por terapeutas especializados.''(PROC 08)
''Menor de idade com microcefalia em decorrência do Zika vírus. Negativa do plano de saúde de fornecer tratamento dos métodos PediaSuit, método bobath e integração sensorial.''(PROC 11)
Classificação e embasamento judicial das impetrações
Nas classes 5 e 6 se destacam as palavras ''ans”, ''determinação”, ''urgência''e ''procedimentos”, que fazem referência à compreensão por parte dos juristas de que frente às garantias asseguradas na CFB e regulamentadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), bem como as recomendações dos protocolos de assistência emitidos pelo Ministério da Saúde, os pleitos dos familiares de crianças com microcefalia associada ao vírus Zika são urgentes e emergentes.
''(...) os protocolos de atendimento para a doença em tela de acordo com diretrizes fixadas pelo Ministério da Saúde, ressalta estar clara a urgência e emergência do caso.''(PROC 15).
''Menor, acometida de grave problema de saúde, pois diagnostica com microcefalia por conta do zika_vírus, necessita de fraldas descartáveis e leite em pó integral, custeado pelo Estado, o que se traduz em medida protetiva à saúde, alicerçada em normas e direitos fundamentais de eficácia imediata, resguardados e assegurados na Constituição Federal Brasileira.''(PROC 02).
A partir da representação gráfica da figura 3, pode-se observar as relações léxicais entre os segmentos de texto. A árvore de similitude é composta por uma categoria central, a partir do qual, surgem algumas ramificações.
A categoria central está representada pela palavra tratamento, principal motivação das impetrações judiciais, do qual surgem ramificações que descendem. Os ramos que apresentam maiores graus de conexidade com essa categoria são: o ramo plano de saúde da rede credenciada, que surge como representação dos principais réus dos processos; o ramo microcefalia, que explica a existência do diagnóstico e as necessidades requeridas; o ramo métodos/terapia, justificando os tratamentos e terapias requeridas pelos familiares; e a urgência das demandas solicitadas.
Desfechos judiciais
De todos os processos analisados, 66,7% (n=10) evidenciaram a decisão favorável do judiciário diante da petição dos familiares e apenas 13,3% (n=2) teve sua reivindicação deferida em parte. Já as apelações dos réus, que são recursos apresentados contra uma decisão anunciada por um juiz de primeiro grau como forma de rever a sentença, foram negadas, 20% (n=3).
''(...) apelação do réu conhecida e não provida. Apelação do autor conhecida e provida em parte (...)(PROC 01).
''(...) determinar que a operadora de saúde agravada forneça, através dos seus profissionais credenciados, na especialidade apontada pelo
segurado, o tratamento fisioterápico pretendido na quantidade de sessões e pelo tempo prescrito
(...) a doença de que é portadora a agravada, caracterizando-se a urgência-emergência, pois que cada dia sem tratamento adequado gera intensificação do grave estado físico-mental da criança, sendo o risco de dano grave evidente (PROC 05, RESPOSTA À APELAÇÃO).
As decisões judiciais buscam assegurar que tanto os planos de saúde ou o Estado, ofertem acesso as tecnologias assistivas para melhor desenvolvimento infantil e consequentemente, bem-estar daquela família. Os referidos deferimentos indicam ainda que a ausência das tecnologias assistivas resultam em atraso no desenvolvimento da criança.
Discussão
O acesso às tecnologias assistivas é a principal motivação para impetrações judiciais, com vistas a assegurar melhora no desenvolvimento da criança e consequente desempenho das atividades de vida diária das mães com mais autonomia. Estudo indica que entre os desejos das mães está o de prover a independência da criança, ainda que não seja integralmente.21 As decisões judiciais beneficiaram as crianças com SCZ e suas famílias, fundamentadas no direito à saúde, direito à vida e proteção, e o direito de ir e vir.
Entretanto, a natureza das motivações judiciais indica que as terapias direcionadas para o progresso do desenvolvimento da criança são as necessidades prioritárias das famílias, mesmo convivendo com sobrecarga de tarefas diárias,22 comentários preconceituosos e discriminatórios,23 desemprego,24 dificuldade de acesso ao BPC25 e condições vulneráveis de moradia e alimentação.7
Ainda que identifiquem seu principal requerimento judicial, as mães resolvem consolidar esta ação com o apoio de pessoas que a incentivem, é por isso que a participação em associação de familiares de crianças com SCZ ou até mesmo estímulos dos profissionais de saúde tornam-se aspectos propulsores da judicialização.3,26A associação de pessoas que convivem em condições de vulnerabilidade assume função de agenciadora de mudanças impossível de alcançar individualmente, transformando as mães de agente passivo para ''expert leigas”,26 pessoas sem formação, mas especializadas em solucionar determinada situação a partir dos seus conhecimentos e experiências.
Entretanto, antes de tornar-se ''expert leigas''as mães convivem com comentários discriminatórios em espaços públicos, narrativas vacilantes e contraditórias por profissionais, fragilidades da Rede de Atenção à Saúde que resultam na ''peregrinação''entre os serviços de saúde,27 além do tempo de espera entre a abertura da impetração judicial e o cumprimento da sentença para aqueles casos de judicialização. Nesse cenário, a partir da escuta empática, alteridade, presença genuína, toque, habilidades de gerenciamento e do agir político, o exercício da Enfermagem e dos demais profissionais de saúde podem contribuir positivamente, importando a integração da equipe multiprofissional dos estabelecimentos de reabilitação à criança, além da valorização dos seus cuidados exercidos na Atenção Primária à Saúde e nos espaços de gestão à saúde.
Como recursos terapêuticos para crianças com SCZ preconiza-se ações que auxiliam no desenvolvimento do bebê, devendo ser realizado na atenção básica, com acompanhamento de diferentes profissionais da saúde e especialistas, devido às complicações motoras, neurológicas e respiratórias que podem surgir.28
As impetrações judiciais requerem a cobertura de novos medicamentos e tratamentos/terapias ainda não disponíveis no sistema de saúde brasileiro ou nas redes credenciadas nos planos de saúde. As crianças necessitam ser tratadas com enfoque na sua deficiência para que sejam incluídas na vida comunitária e exerçam sua cidadania29 a partir da atuação de equipes multiprofissionais.
A intervenção do Poder Judiciário, mediante determinações à administração pública para que forneça gratuitamente medicamentos numa variedade de hipóteses, procura assegurar o direito constitucional de atendimento integral pelos serviços de saúde. O tratamento fisioterápico está entre as principais motivações das impetrações judiciais, reservando relevância significativa para o desenvolvimento funcional e cognitivo da criança. A fisioterapia possui técnicas e métodos para intervir nas disfunções advindas da SCZ, como tratamentos que visam melhorar os distúrbios da função, do movimento e do controle postural.30
A judicialização consiste no movimento crescente de cidadãos que buscam o direito à saúde junto ao poder Judiciário, e se insere em um fenômeno jurídico, político e sociológico31 para garantir a efetivação de direitos sociais não assegurados pelos meios ordinários conduzidos pelo poder Executivo.32
Apesar dos deferimentos judiciais favoráveis às pessoas com doenças raras, a judicialização tem recebido críticas de estudiosos quanto ao aproveitamento da indústria farmacêutica e de suporte diagnóstico, além de grupos de advocacia que lucram com os processos judiciais26. Questiona-se ainda o caráter majoritário das impetrações judiciais que pleiteiam acesso a tratamentos unicamente, valorizando o conceito biomédico da deficiência, pouco contribuindo para o desenvolvimento de políticas públicas que promovam assistência integral.33
O Plano de saúde é um tipo de serviço oferecido com intuito de prestar assistências médica, hospitalar e odontológica, combinadas ou não, podendo-se permitir a livre escolha do prestador de serviço e/ou oferecer acesso a uma rede de profissionais e estabelecimento de saúde credenciados.34
Os planos coletivos são aqueles contratados com a intermediação de uma pessoa jurídica, empresa empregadora, associação ou sindicato relacionado a categorias profissionais, para oferecer assistência médica e/ou odontológica às pessoas vinculadas a essa empresa e aos dependentes dessas pessoas. Pode ser um plano de saúde coletivo empresarial ou coletivo por adesão. Abrigam 38,1 milhões de pessoas, praticamente 80% de todos os usuários de planos de saúde, e foram os que tiveram maior crescimento na última década. De 2006 a 2016, a quantidade de usuários dessa modalidade de contratação identificados pela ANS aumentou de 25,8 milhões para 38,1 milhões. Tal fenômeno de crescimento vertiginoso da contratação de planos coletivos é chamado de ''coletivização”.31,33
Essa ''coletivização''explica como os familiares de algumas crianças com a SCZ são beneficiárias de plano de saúde, o que lhes dão acesso a tratamentos e serviços privados oferecidos ou não pelas redes credenciadas ao plano de saúde. A coletivização dos planos de saúde já emana efeitos na judicialização pois oferecem baixo rol de serviços, com cobertura mínima à exames diagnósticos e terapêuticas de alto custo.26,31
Nos itinerários terapêuticos construídos por familiares de crianças com SCZ a acessibilidade necessita ser pensada para além da remoção de barreiras físicas e organizacionais, buscando prover o bem estar de famílias/crianças a partir do acesso a recursos como nutrição, fraldas, talco, cadeira de rodas, aparelhos ortodônticos, óculos, entre outros, justificados pelo direito à vida e à saúde.32
Os desfechos judiciais favoráveis aos pleitos das famílias colaboram para a independência da criança ao favorecer a assiduidade nas terapias,25 a socialização da criança em espaços públicos,35 diminuir os níveis de fadiga e o risco para desenvolver doenças osteoarticulares,36 além de evitar comportamentos de isolamento social e abdicação do autocuidado das mães.35
O corpus da análise contemplou apenas processos disponíveis no site JusBrasil o que não representa a totalidade das ações judiciais aplicadas no período do estudo, ponderando generalizações do conhecimento a partir dos achados deste estudo. Apesar desta limitação o método empregado permitiu acessar e analisar um volume de processos advindos de vários estados brasileiros, além de compreender o movimento das famílias de crianças com SCZ em busca de direitos a bens e serviços de saúde.
Apesar do acesso a saúde no Brasil ter caráter público e universal garantidos pela Constituição Federal, este estudo evidencia que somente após impetração judicial as famílias de crianças com SCZ garantiram seus direitos, cenário que pode se repetir em países do sudoeste asiático e principalmente na Índia que presenciou surto do vírus Zika no segundo semestre de 2021. Nesta conjuntura, mediante as habilidades de compreender as necessidades singulares das pessoas, construir vínculos, sensibilizar e empoderar, cabe ao profissional de saúde potencializar a autonomia das mães e familiares para percorrer os caminhos viáveis da judicialização, motivando-as para assegurar o acesso ao direito.
A judicialização da saúde é um tema pertinente em países que optaram pelo sistema de bem-estar social em sua Constituição. Em um sistema que pretende assegurar direitos como saúde, educação, segurança, moradia e renda para sua população, fazer saúde afim do modelo biomédico hegemônico parece não ser suficiente. Nesse sentido, países emergentes como o Brasil necessitam de investimentos interministeriais para a prevenção de adoecimentos, principalmente erradicação de doenças infectocontagiosas, em contrapartida cabe ao Estado regular o investimento das empresas de planos de saúde em atividades coletivas de prevenção sob controle das autoridades públicas sanitárias.
Conclusão
As famílias que acessam a justiça a fazem para pleitear acesso a terapias fisioterápicas e tratamentos diversos que foram negados principalmente por planos de saúde privados. Quanto aos desfechos, a maioria dos processos jurídicos analisados obteve decisão favorável à solicitação da mãe/família ao considerar como justificativas o direito à saúde, direito à vida e proteção, e o direito de ir e vir das crianças.
A judicialização da saúde é uma das repercussões do estado epi/pandêmico por doenças infectocontagiosas que alcança todo o mundo. Portanto, este artigo alerta autoridades sanitárias e judiciárias internacionais para estados epi/pandêmicos emergentes que podem ter seus impactos mitigados mediante: melhor vigilância e monitoramento dos fatores de risco e morbidades, rigor nos protocolos sanitários que envolvem migração de pessoas em zonas fronteiriças, oferta de condições ambientais e de moradia dignas, realização de cuidados preventivos com destaque para a eficiência da imunização, além da organização e funcionamento de uma Rede Atenção à Saúde eficaz com abordagem interdisciplinar.
Aos profissionais de saúde que ocupam espaços de gestão pública incumbe agir para a reorientação das políticas públicas, assegurando recursos de tecnologias assistivas e outros que possam tornar mais eficiente o desenvolvimento infantil, repercutindo na melhor autonomia da criança e bem-estar da família.
CONFLITO DE INTERESSES
Não há.