Introdução
Recentemente, as inquietações, medos, riscos e incertezas da pandemia de COVID-19, a qual tornou-se uma emergência de saúde pública, principalmente em decorrência de seu comportamento errático e de rápida disseminação mundial,1 impactaram diretamente a vida e a saúde ocupacional de profissionais de enfermagem em todo o mundo.²
Desde a notificação do primeiro caso, em dezembro de 2019 até novembro de 2022, foram registrados mais de 629 milhões de casos da doença e mais de 6,5 milhões de óbitos a nível mundial.3 No contexto brasileiro, observou-se altas taxas de mortalidade, chegando o país a ocupar o primeiro lugar em mortes diárias, mundialmente, pela primeira vez em junho de 2020, ocupando essa posição por três vezes até junho de 2021.4
Dados do Ministério da Saúde brasileiro demonstram mais de 34 milhões de casos confirmados, desde fevereiro de 2020 até outubro de 2022, com mais de 688 mil mortes4. Em janeiro de 2021, a nível mundial, o Brasil respondeu por um terço do total de óbitos entre os profissionais de enfermagem.5 Já no cenário brasileiro, até meados de maio de 2021, 775 óbitos correspondiam a profissionais da categoria.6
Deste cenário ímprobo e aflitivo merecem reflexão as fragilidades e desigualdades sociais vivenciadas mundialmente e representativas acerca dos ambientes e ambiências; sujeitos e coletividades; trabalho e cotidiano; saúde; políticas públicas e também suas ausências; vida e morte da equipe de enfermagem. Ademais, tal conformidade pandêmica incita o questionamento acerca dos profissionais de saúde, considerados bens públicos, cujo trabalho tem caráter sensível, fundamental e indispensável.7
A equipe de enfermagem é o sustentáculo das práticas cotidianas em saúde. O seu dia-a-dia contempla conhecimentos e técnicas inerentes ao cuidado individual e coletivo, associados a um saber-fazer científico, circunstanciado, (re) significativo e adaptável.8 Ao desempenhar e promover tais práticas 24 horas por dia, a equipe de enfermagem se assumiu como protagonista e linha de frente na pandemia. Contudo, complexidades e obstáculos perante às condições, financiamento, organizações, relações e segurança do sistema de saúde brasileiro, muitas vezes, expressam-se em riscos, angústias, raiva, frustrações e impotências para a equipe, podendo acarretar vivências de sofrimentos físicos, psíquicos, emocionais e morais.9,10
Neste cenário pandêmico, fica evidente não somente a escassez de equipamentos e insumos; a exposição pessoal-profissional-familiar; a carência de pessoal e a insegurança laboral-emocional, mas também as consequências que vão recair sobre os contextos de saúde e de trabalho destes profissionais.11
Os contextos de saúde e de trabalho da equipe de enfermagem comumente são marcados por jornadas de trabalho extensas; desvalorização profissional; insegurança pessoal-profissional-ambiental; ambiência e ambientes de trabalho tumultuosos e estressantes; violência verbal, psicológica e física; baixa remuneração; escassez de treinamentos e capacitações; acidentes de trabalho e pré-disposição a infecções, adoecimentos físicos e psicológicos.12,13
Em face ao exposto, este estudo teve como objetivo analisar os contextos de saúde e trabalho de profissionais de enfermagem durante a pandemia de COVID-19.
Metodologia
Trata-se de um estudo de método misto, combinando as abordagens quantitativa e qualitativa por meio da estratégia de incorporação concomitante - QUAN (qual),14,15na qual os dados quantitativos e qualitativos foram coletados conjuntamente, no entanto houve predominância de um método (quantitativo) e formação de um banco de dados secundário (qualitativo). Assim, desenvolveu-se um estudo transversal descritivo que possibilitou a integração e complementação das informações, enquanto que, para a parte qualitativa foi desenvolvido um estudo descritivo exploratório. Para elaboração da metodologia foram seguidas as recomendações do Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology e do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research.
O estudo foi realizado em Minas Gerais, Brasil, entre os meses de agosto a dezembro de 2020, por meio da Comissão de Suporte Ético-Emocional (CSEE) do Conselho Regional de Enfermagem de Minas Gerais (COREn-MG).16 Em situação emergencial, o COREn-MG determinou a criação da CSEE, cujo objetivo primordial foi oferta gratuita de atendimento e assistência em saúde mental aos profissionais inscritos no respectivo conselho.16
A CSEE, instituída em detrimento da pandemia de COVID-19, atuou entre os meses de abril e dezembro de 2020, com a colaboração de profissionais da enfermagem inscritos no conselho e especialistas em saúde mental. Dentre as diferentes atividades desempenhadas pela CSEE, destacaram-se a assistência humanizada, gratuita e sigilosa aos profissionais que buscaram pelo serviço via telefone, através de acolhimento às demandas de saúde mental e da escuta de relatos do cotidiano nos serviços.16
Durante toda a atuação da CSEE16 foram atendidos um total de 241 profissionais, dentre os quais enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem. Cabe destacar que, embora a CSEE tenha atuado entre abril e dezembro de 2020, este estudo contempla somente os atendimentos realizados a partir do mês de agosto/2020, data em que o estudo recebeu aprovação pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Foram incluídos os profissionais atendidos pela CSEE, entre agosto e dezembro/2020, e que aceitaram voluntariamente participar da entrevista após o atendimento (n=58). Todos os profissionais atendidos anteriormente a agosto/2020 (n= 134), além daqueles que, dada situação emocional crítica no momento do atendimento, foram excluídos do estudo (n=49).
A coleta de dados obedeceu a logística de atendimento da CSEE:16 que se iniciava pela procura espontânea do profissional inscrito no COREn-MG, através do agendamento prévio via site ou via aplicativo de comunicação (órgãos oficiais do conselho). Vale ressaltar a gratuidade dos atendimentos, a disponibilidade dos serviços (segunda-feira à sexta-feira das 8 às 21 horas) e a permissibilidade dada aos inscritos para agendamentos diários, semanais, quinzenais ou mensais, conforme desejo e demanda clínica.
Os atendimentos possuíram durabilidade de 15 minutos para o menor tempo e de duas horas o maior tempo, com temáticas diversas definidas e conduzidas pelo profissional atendido. Após o acolhimento e escuta inicial, o enfermeiro responsável concedia uma pausa de 5 minutos (para reflexão e contemplação silenciosa do inscrito), posteriormente, os inscritos eram convidados a participarem de uma entrevista. Aos que concordaram participar voluntariamente da pesquisa, o termo de consentimento livre e esclarecido lhes era lido e apresentado e, após seu(s) aceite(s) enviado por e-mail.
As entrevistas foram gravadas em formato digital e transcritas literalmente, preservando-se a fidedignidade das informações. O anonimato dos inscritos foi garantido por meio da identificação alfanumérica juntamente a categoria profissional (ex: enfermeiro = ENF1, técnico de enfermagem = TEC1).
Para sistematização da entrevista elaborou-se um roteiro como instrumento de coleta de dados, estruturado em perguntas abertas e fechadas e que teve por base questões de instrumentos prévios como os do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; da pesquisa “Perfil de Enfermagem no Brasil”17 e do DASS-21.18 O instrumento continha questões sociodemográficas; questões ligadas aos contextos e condições de saúde; trabalho; COVID-19. Ademais, o roteiro de perguntas considerou, de forma transversal, questões raciais, de gênero e de orientação sexual.
Os dados quantitativos e qualitativos foram analisados e mixados pela estratégia de incorporação concomitante visando à integração das informações, conforme determina a literatura.15
Para a análise quantitativa foi realizada análise descritiva das variáveis, mediante cálculo de frequências absolutas e relativas, por meio do software Statistical Package for the Social Sciences (versão 21). A análise qualitativa foi fundamentada na Análise de Conteúdo Temática.19
O estudo recebeu aprovação pela CONEP sob o parecer no 4.169.027.
Resultados
Tendo em vista que a maioria da amostra desse estudo são mulheres e que tal informação impacta nos dados analisados, a inflexão no feminino será considerada de forma englobante.
Participaram do estudo 58 profissionais. Destes 93,1% eram mulheres cis; 62,1% negras (resultado da soma entre pessoas que se auto declaram como pretas e pardas); 69% técnicas de enfermagem e 31% enfermeiros; com média de idade de 36,2 anos (dp = 9,4). A grande maioria tinha de 1 a 2 filhos (88,2%); eram casadas (44,8%) e com renda mensal de 1 a 2 salários mínimos (53,4%). Grande parte apresentou ensino superior completo (41,3%), e desses, 17 (70,8%) possuíam pós-graduação a nível de especialização e uma (4,2%), mestrado. As demais pessoas, com escolaridade de nível superior (25%), possuíam a graduação como nível máximo de titulação. Sobre a renda familiar, destacou-se que 37,9% contribuíam com até 50% para a renda familiar, seguidos de 31% cuja contribuição chegava a 100%. Metade das profissionais relatou gastar de 2 a 10 horas semanais com serviços domésticos, enquanto 15,5% não realizava este tipo de trabalho (Tabela 1).
Cabe ressaltar que, 53,4% possuíam casa própria em financiamento corrente; 22,4% moravam de aluguel; 20,7% possuíam casa própria quitada e 3,4% moravam de favor. Embora em uma proporção menor, destacaram-se condições sanitárias críticas, onde 8,6% relataram moradias sem água; sem tratamento de esgoto (10,3%) e sem a coleta de lixo urbano (8,6%) (Tabela 1)
Quanto à atuação profissional, a maioria possuía jornadas semanais de 37 a 48 horas (53,5%); 39,7% trabalhavam em regime de plantão noturno, e destas, 34,8% desfrutava de apenas uma hora para descanso e 8,7% não dispunham de tal descanso, ainda, 39,1% caracterizaram o local para descanso como inadequado e 13% relataram não haver um local destinado para este fim. 48,3% consideraram o dimensionamento das equipes como insuficiente: para o momento da pandemia (25,9%) e para antes de tal circunstância (22,4%) (Tabela 2).
Em contraposto, o fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPI) foi considerado suficiente para a maioria (65,5%). 58,6% das pessoas relataram terem sofrido violências em seus locais de trabalho e 27,6% relataram terem sofrido violência decorrente de seus gêneros e/ou orientações sexuais, sendo o ambiente doméstico o local de maior ocorrência de tais violência (31,2%). Em relação às condições de saúde, a maioria relatou não realizar qualquer prática de atividade física (51,7%) e grande parte relatou (48,3%) terem recebido diagnósticos de transtornos mentais, sendo os transtornos de ansiedade (15,5%) e depressão (12,1%) como os mais prevalentes (Tabela 2).
Variáveis | n (%) | Variáveis | n (%) | |
---|---|---|---|---|
Categoria profissional | Identidade de gênero | |||
Técnico(a) de enfermagem | 40 (69,0) | Mulher cis | 54 (93,1) | |
Enfermeiro(a) | 18 (31,0) | Homem cis | 4 (6,9) | |
Faixa etária, anos | Situação conjugal | |||
20 a 30 | 19 (32,8) | Casado (a) | 26 (44,8) | |
31 a 40 | 23 (39,7) | Solteiro (a) | 20 (34,5) | |
41 a 50 | 10 (17,2) | Divorciado (a) | 11 (19,0) | |
≥ 51 | 6 (10,3) | Viúvo (a) | 1 (1,7) | |
Cor | Escolaridade | |||
Parda | 29 (50,0) | Médio completo | 23 (39,7) | |
Branca | 22 (37,9) | Superior incompleto | 11 (19) | |
Preta | 7 (12,1) | Superior completo | 24 (41,3) | |
Filhos | Número de filhos | |||
Sim | 34 (58,6) | 1 a 2 | 30 (88,2) | |
Não | 24 (41,4) | 3 ou mais | 4 (11,8) | |
Renda, salário mínimo* | Contribuição na renda familiar | |||
1 a 2 | 31 (53,4) | Até 25% | 13 (22,4) | |
2 a 3 | 9 (15,5) | Até 50% | 22 (37,9) | |
3 a 4 | 12 (20,7) | Até 75% | 5 (8,6) | |
4 a 5 | 5 (8,6) | 100% | 18 (31,0) | |
≥ 5 | 1 (1,7) | |||
Tipo de moradia | Tempo/serviço doméstico, horas semanais | |||
Própria/financiada | 31 (53,4) | Não realiza | 9 (15,5) | |
Própria/quitada | 12 (20,7) | 2 a 10 | 29 (50,0) | |
Alugada | 13 (22,4) | 10 a 20 | 16 (27,6) | |
Mora de favor | 2 (3,4) | ≥ 20 | 4 (6,9) | |
Água tratada no domicílio | Esgoto encanado no domicílio | |||
Não | 5 (8,6) | Não | 6 (10,3) | |
Instável | 2 (3,4) | Instável | 1 (1,7) | |
Estável | 51 (87,9) | Estável | 51 (87,9) | |
Coleta de lixo urbano | Internet no domicílio | |||
Não | 5 (8,6) | Não | 3 (5,2) | |
Instável | 1 (1,7) | Instável | 4 (6,9) | |
Estável | 52 (89,7) | Estável | 51 (87,9) |
Fonte: Elaborada pelos autores, 2021
Variáveis | n (%) | Variáveis | n (%) | ||
---|---|---|---|---|---|
Jornada de trabalho semanal, horas | Dimensionamento, enfermagem | ||||
12 a 24 | 3 (5,2) | Suficiente | 27 (46,6) | ||
25 a 36 | 13 (22,4) | Atualmente insuficiente | 15 (25,9) | ||
37 a 48 | 31 (53,5) | Insuficiente | 13 (22,4) | ||
49 a 60 | 4 (6,9) | Afastada | 1 (1,7) | ||
61 a 72 | 2 (3,4) | Desempregada | 2 (3,4) | ||
> 72 | 3 (5,2) | Fornecimento de EPI | |||
Desempregada | 2 (3,4) | Suficiente | 38 (65,5) | ||
Regime de plantão noturno | Insuficiente | 17 (29,3) | |||
Sim | 23 (39,7) | Afastada | 1 (1,7) | ||
Não | 33 (56,9) | Desempregada | 2 (3,4) | ||
Desempregada | 2 (3,4) | Violência, gênero/orientação sexual | |||
Tempo de descanso, horas | Sim | 16 (27,6) | |||
1 | 8 (34,8) | Não | 42 (72,4) | ||
2 | 4 (17,4) | Violência no trabalho | |||
3 | 8 (34,8) | Sim | 34 (58,6) | ||
Não consegue descansar | 2 (8,7) | Não | 24 (41,4) | ||
Afastada | 1 (4,3) | Agente da violência no trabalho | |||
Local de descanso | Usuários dos serviços | 7 (20,6) | |||
Inadequado | 9 (39,1) | Coordenação do serviço | 7 (20,6) | ||
Pouco adequado | 5 (21,8) | Colegas de trabalho | 5 (14,7) | ||
Adequado | 5 (21,8) | Clientes/pacientes+ coordenação | 3 (8,8) | ||
Não há local | 3 (13,0) | Familiares/acompanhantes | 2 (5,9) | ||
Afastada | 1 (4,3) | Todos os agentes | 10 (29,4) | ||
Prática de atividade física | Diagnóstico de transtornos mentais | ||||
Sim | 28 (48,3) | Não | 30 (51,7) | ||
Não | 30 (51,7) | Transtorno de Ansiedade | 9 (15,5) | ||
Frequência/atividade física, semana | Transtorno depressivo | 7 (12,1) | |||
1 vez | 4 (14,3) | Síndrome de Burnout | 4 (6,9) | ||
2 vezes | 4 (14,3) | Enxaqueca | 3 (5,2) | ||
3 vezes | 14 (50,0) | Transtorno de pânico | 2 (3,5) | ||
≥ 4 vezes | 6 (21,4) | Estresse pós-traumático | 1 (1,7) | ||
Transtorno bipolar | 1 (1,7) | ||||
TDAH | 1 (1,7) |
Fonte: Elaborada pelos autores, 2021
Emergiram-se duas categorias temáticas: Contextos de trabalho dos profissionais de Enfermagem no enfrentamento a COVID-19 e Contextos de saúde dos profissionais de Enfermagem no enfrentamento a COVID-19.
Contextos de trabalho dos profissionais de Enfermagem no enfrentamento a COVID-19
Segundo os 58 profissionais atendidos pela CSEE, a pandemia de COVID-19 aduziu e esbraseou contextos de trabalho que há anos fazem parte do cotidiano, da luta e do deblaterar da Enfermagem: 30 horas semanais de jornada trabalho (aspiração pela regulamentação da carga horária a nível nacional); melhoria salarial/piso salarial/insalubridade; valorização profissional; melhoramento do dimensionamento das equipes; trabalho com mais segurança/maior disponibilidade de EPI; ouvir mais o profissional (promoção de melhor comunicação e parcimônia entre a gestão e a linha de frente); estímulo de trabalho em união e humanização, sem diferenciação profissional; melhores condições ambientais para descanso/melhorias no local de descanso e maior tempo de descanso; suporte emocional; formação ética; distribuição equânime da vacina contra COVID-19; voz ativa ao funcionário e não somente ao paciente; poupar colegas que são grupo de risco e menos assédio moral.
Segundo os profissionais, os contextos de trabalho na pandemia evidenciaram necessidade de estímulos e valorização profissional e relações com fatores institucionais, a dinâmica e organização do trabalho, as condições adequadas de trabalho e ao favorável relacionamento interpessoal:
“Valorização do profissional de enfermagem tanto financeira quanto intelectualmente pela instituição, pois a cobrança vem de forma a fazer o profissional sentir como se fosse preguiçoso quando na verdade está organizando o serviço e fazendo o serviço funcionar” (ENF 01)
"Se eu fosse mais reconhecida, mais considerada! Não quero palmas, quero que me considere mais. Menos assédio moral " (ENF 16)
“Mais profissionais no turno, menos pressão psicológica da liderança, mais valorização da enfermagem (...) preocupar mais com a saúde mental do trabalhador (...)” (TEC 30)
“Para melhorar deveria ter uma escala de trabalho melhor, redução da carga horária, mais humanização entre a equipe (...) ter mais direito de resposta, dar voz ao funcionário e não só ao paciente (...)” (TEC 39)
“Maior valorização do enfermeiro, mais respeito ao meu posicionamento” (ENF 49)
Contextos de saúde dos profissionais de Enfermagem no enfrentamento da COVID-19
Segundo os profissionais atendidos pela CSEE, o cenário pandêmico atrelou-se intimamente para além do ethos profissional recaindo expressivamente sobre as relações sociofamiliares e saúde psicoemocional. Assim, os contextos de saúde dos entrevistados foram marcados especialmente por primordialidades tais como: melhores salários e aumento da renda familiar; mais tempo disponível para a família; fim da pandemia e a volta à rotina normal; maior tempo para lazer/viagens; ter uma funcionária para auxiliar nas tarefas do lar; prática de atividade física; morar em lugar calmo e próximo a natureza; tempo de ser mãe; ter um quintal; diminuição dos custos com luz, alimentação; diminuição do conflito com filhos jovens; maior independência; melhor saúde para os filhos; internet melhor; trabalhar somente em um emprego e encontrar apoio em casa ou na casa de parentes (pais, irmãos, filhos).
Destaca-se que, segundo os profissionais, os contextos de saúde evidenciaram relação com interesses, oportunidades, rotina, normalidade, esperança e tenacidade que seriam trazidos pelo fim da COVID-19:
"Voltar a rotina normal. Sair, receber visitas, compartilhar momentos" (TEC 05)
“Trabalhar em apenas um trabalho para poder curtir a casa e a família” (TEC 19)
“Queria ter mais tempo para cuidar da minha família, ganhar um salário melhor e ter mais oportunidade de lazer” (TEC 28)
“Fim da pandemia! Pois eu poderia sair mais e esquecer do meu trabalho” (TEC 30)
Discussão
Este estudo traz reflexões e impressões acerca dos contextos de saúde e trabalho de profissionais de enfermagem que buscaram pelo serviço de Suporte Ético-Emocional do COREn-MG e incentiva discussões impostergáveis em torno da profissão, discorrendo sobre o cotidiano pandêmico refletido à indispensabilidade desses trabalhadores. O cotidiano pandêmico destes, descrito neste estudo, vem sendo abalizado por vivências de adoecimentos, sofrimentos e morte, associados aos contextos de jornadas de trabalho extensas, baixa remuneração, biossegurança precária, relações humanas sensibilizadas e falta de suporte emocional.
Apesar dos holofotes, das homenagens e das palmas, ações efetivas que primam pela segurança e condições dignas de trabalho ainda são exíguas.20Tal conformação, é exposta pelos dados referentes às jornadas de trabalho extensas; às condições de descanso insalubres; dimensionamento e fornecimento incipiente de EPI e situações de insegurança e violência ocupacional que acarretam vivências de sofrimentos que sensibilizam a saúde e o trabalho.11,12,13
Destaca-se que, embora o fornecimento de EPI tenha sido considerado adequado, para a maioria das trabalhadoras, este dado se contrapõe na etapa qualitativa, emergindo assim, como essencial para segurança no trabalho. Esses achados, corroboram com estudos sobre condições de saúde e trabalho durante a pandemia, onde a disponibilidade suficiente de materiais, a adequada estrutura física e o trabalho colaborativo, tornam-se itens essenciais, vistos também como sinônimo de eficiência e qualidade da assistência.11,12,13
Os achados deste estudo demonstram que o dimensionamento de equipe insuficiente atrelado às jornadas de trabalho extensas e sem local de descanso ou com local de descanso inadequado fazem parte do cotidiano de profissionais de enfermagem, mesmo antes da pandemia. De forma atroz, a COVID-19 expôs as vulnerabilidades, as constantes e os dilemas éticos e bioéticos do trabalho, assim, como expôs a saúde, a desproteção e o compadecimento aos trabalhadores. Assim, superar este cenário, significa também, transpor os elementos de execução insalubres e inseguros ao profissional e ao exercício da Enfermagem.21
Foram mencionadas vivências de esgotamento físico, moral e psicológico, além de situações de violência laboral. Tais situações são capazes de interferir na manutenção e estabelecimento de um ambiente ético, reflexivo e saudável.22 As técnicas de enfermagem, de maior representatividade amostral neste estudo, estão entre os mais acometidos a processos potencializadores de desgastes, uma vez que estão ligadas diretamente aos cuidados aos pacientes. Contudo, profissionais enfermeiras também são vulneráveis configurando, entre os que menos se afastam das atividades laborais.23
Durante o contexto pandêmico a intensidade e as consequências das mudanças na nova realidade social, na rotina e nos modos de viver e se relacionar entre as pessoas; as desigualdades sociais e tecnológicas; as dimensões mentais, espirituais e financeiras; o acesso e a veracidade das informações acerca da COVID-19 e os medos e receios em relação ao vírus ou à infecção, são fatores que puderam influenciar os contextos de trabalho.24,25,26Elementos estes, que destacam mormente às necessidades de estímulos e de valorização pessoal-profissional.
Melhorias laborais, quer sejam na prestação de assistência ou nas condições trabalhistas, aperfeiçoamentos na infraestrutura, ofertas de treinamentos e o estabelecimento de protocolos de atendimento podem ser traduzidos em elementos de valorização, humanização, segurança e proteção pessoal-familiar-coletiva, tão suplicados pelos profissionais de enfermagem.10,26,27,28
Ademais, é notório que os contextos de trabalho influenciam as relações sociofamiliares. Um exemplo disso são as jornadas extensas de trabalho e a sobrecarga profissional que impactaram consideravelmente a saúde física e mental dessas profissionais, visto que estas relataram não dispor de tempo para a prática de atividades físicas, assim como grande parte relatou apresentar algum diagnóstico de transtorno mental. Assim, entender a relação entre saúde, trabalho e família, é essencial para satisfação domiciliar.29
Em suma, a vida, a identidade e a essência dos seres humanos se compõem da família e do trabalho, influenciados simultaneamente, no contexto do modo de produção capitalista onde cabe, em sua maioria, a reprodução do viver à vida privada e ao trabalho gratuito das mulheres, para devolver esse indivíduo ao espaço considerado produtivo, o espaço público do trabalho. Assim, se um deles se desequilibra, o outro vivencia as consequências. Portanto, é preciso investir na compreensão e em ações que envolvam por exemplo, aspectos familiares ou acolhimento aos familiares.30,31,32
Neste estudo merecem destaque as condições sanitárias e de moradia. Nesse sentido, no domínio do ambiente/ambiência as condições de moradia tornam-se um determinante importante sobre as situações de doença e saúde dos indivíduos.26,33,34
Enfatiza-se que este estudo é majoritariamente formado por mulheres, que exercem duplas ou triplas jornadas de trabalho e que são mães. As profissionais de enfermagem estão na chamada linha de frente e, por conseguinte, inseguras, apreensivas e temerosas em relação aos filhos e a família.34,35Segundo estudo realizado em 17 países, as mulheres são a maioria (70%) de trabalhadores que atuam nos setores essenciais durante a pandemia e, no entanto, são apenas 20% daqueles que compõem os espaços de tomada de decisões, como o comitê de emergência da Organização Mundial de Saúde, por exemplo.36 Portanto, chamamos a atenção para a necessidade de reforço das medidas de segurança no trabalho e de implementação de políticas públicas reparadoras de desigualdades entre os gêneros, que viabilizem a melhoria dessa população.
É sabido que condições desfavoráveis de vida, saúde e trabalho na Enfermagem, geram vivências de degastes e de sofrimentos, que comprometem a prática e a excelência do cuidar.23,34Assim, reflexões e ações efetivas sobre o processo de trabalho e vida destas profissionais se faz necessário no fomento de estratégias para mitigação dos efeitos negativos, sejam relacionados ao trabalho ou aos aspectos materiais-subjetivos, impostos sobre tais diante da pandemia.
As limitações deste estudo incluem o recrutamento amostral e as dificuldades operacionais ocorridas durante os atendimentos e coleta de dados tais como: números telefônicos bloqueados ou inexistentes, instabilidades de sinal e a dificuldade para realização do suporte emocional em decorrência da sobrecarga de trabalho vivenciadas, pois, mesmo com agendamento prévio e obediência à rotina e disponibilidade do profissional, adiamentos ou desistências ocorreram, ora, porque o profissional encerrava sua jornada de trabalho muito além do horário estabelecido/previsto, ora, porque em dias de folga o profissional era chamado de última hora para cobrir ausências de colegas em adoecimento. Em contrapartida, para além da integração das abordagens quantitativas e qualitativas, o estudo possibilita discussões acerca de estratégias de melhorias que repercutam positivamente no fenômeno saúde-trabalho.
Conclusão
O estudo evidencia que a pandemia de COVID-19 fortaleceu um contexto de saúde e de trabalho crítico, amedrontado e inseguro da equipe de Enfermagem brasileira.
Por algum tempo, a força, a indispensabilidade e a humanidade dos profissionais de enfermagem foram enfatizadas até que as questões antigas e históricas tais como: regulamentação da carga horária; melhoria salarial; valorização profissional; melhoramento dos contextos e vínculos laborais, entre outras, reveladas por este estudo, exacerba a necessidade de providências, ações e políticas que considerem a Saúde do Trabalhador como estruturantes para a organização dos serviços, discursos e reflexões em torno da profissão, da prática e do profissional, que consequentemente, incidirão em melhorias dos contextos de saúde e trabalho destes profissionais.
Conflitos de interesse
Não há conflitos de interesse.