Introdução
O século XXI é marcado pelo aumento significativo da expectativa de vida da população brasileira. Nesse contexto, espera-se que em 2025 existam aproximadamente 32 milhões de idosos. Esse alargamento do topo da pirâmide etária é acompanhado do aumento da incidência de doenças crônicas degenerativas1.
Neste sentido, Weykamp e outros2, no qual apontam que o aumento na expectativa de vida no Brasil tem sido associado ao crescimento de doenças cardiovasculares, como a hipertensão arterial sistêmica (HAS) e metabólicas, como o diabetes melittus (DM). Esses grupos de doenças estão recorrentemente associados a uma série de comorbidades, como a doença renal crônica (DRC).
Segundo Fritsch e outros3 a DRC é a perda lenta, progressiva e de caráter irreversível da função renal através de lesões no glomérulo, túbulos e da região endócrina dos rins, tendo sido estimada em uma prevalência de 6% no mundo.
A insuficiência renal crônica (IRC) é o estágio final da DRC, que compromete a condição de vida do sujeito em todas as suas representações, com destaque negativo nas funções cognitivas, físicas, emocionais e sociais. O aumento nas taxas de IRC foi confirmado pelo Inquérito Brasileiro de Diálise Crônica realizado no ano de 2016. O documento constatou que nos últimos 5 anos houve um aumento de 31,5 mil usuários em tratamento dialítico, com 122.825 brasileiros diagnosticados com IRC em todo o território nacional4.
Segundo o Sistema de Informações Hospitalares (SIH) do Sistema Único de Saúde (SUS), entre o ano de 2015 e maio de 2019 foram registradas 478.163 internações por IRC em todo o Brasil. O estado da Bahia foi responsável por 5,46% (26.101) desses casos, dos quais 55,83% (14.796) ocorreram no sexo masculino e o restante, 44,17% (14.704) no agrupamento feminino5.
As escolhas terapêuticas da DRC dependem da fase clínica da doença, podendo ser pautadas apenas no uso de medicamentos, restrições hídricas e alimentícias nas fases iniciais da enfermidade. Entretanto, diante da IRC, torna-se necessária a terapia que substitua a função renal, tais como: a hemodiálise, diálise peritoneal ou transplante renal12. Para Júnior e outros6 essa categoria terapêutica promove importantes transformações no cotidiano e rotina dos usuários, uma vez que o mesmo passará a conviver com diversas limitações, motivadoras de desequilíbrios que demandarão enfrentamentos durante o tratamento.
As mudanças no estilo de vida exigidas aos hemodializados afetam importantemente em sua qualidade de vida. As dietas restritivas, o translado aos hospitais diversas vezes por semana, a diminuição das atividades de vida diária e a falta de apoio de familiares e dos amigos causam uma série de complicações físicas e/ou psicológicas7.
O consumo irrestrito de alimentos em pacientes renais, particularmente de origem animal, provoca uma sobrecarga renal, acelera o metabolismo protéico e eleva os níveis de ácidos fixos provocando acidose metabólica. Cita-se ainda que o consumo exacerbado de produtos ricos em cloreto de sódio induz ao aumento da HAS, fator de risco para o desenvolvimento de outras complicações graves de cunho cardio e cerebrovascular8,9. Por outro lado, a ingestão de líquido excessivo provoca o aparecimento de edemas, elevação de pressão arterial, insuficiência cardíaca e falência cardiorrespiratória8. Diante disso, nota-se que a doença possui enorme complexidade, uma vez que tanto as manifestações clínicas, quanto o tratamento provocam mudanças profundas na vida do doente.
Nesse sentido, o estudo se justifica pela necessidade de verificar os possíveis incômodos provocados pelas restrições da patologia, uma vez que as limitações podem impactar diretamente na qualidade de vida, na aceitação do tratamento e em possíveis repercussões físicas e psicológicas. Sendo assim, o presente estudo tem como objetivo analisar os fatores associados à percepção de incômodo com as restrições hídricas e alimentares entre pacientes com insuficiência renal crônica.
Acredita-se que a análise dos possíveis incômodos pode auxiliar a equipe multiprofissional que presta assistência ao paciente com IRC, através da compreensão do paciente de forma ampliada, além de auxiliar na construção de intervenções a partir da realidade concreta das pessoas assistidas.
Materiais e método
Trata-se de um estudo epidemiológico do tipo inquérito10. A pesquisa foi desenvolvida em um hospital de referência para o tratamento hemodialítico, localizado em um município do Alto Sertão produtivo da Bahia, Brasil. Além disso, se caracteriza como um recorte de um estudo maior intitulado de “Qualidade de vida de pacientes com Insuficiência Renal Crônica em um município do interior da Bahia”.
O referido serviço de nefrologia é conveniado ao Sistema Único de Saúde (SUS) e planos de saúde privado. O serviço funciona em regime ambulatorial, de segunda-feira a sábado, atendendo pacientes com diagnóstico de IRC e IRA no setor de hemodiálise, além de ofertar acompanhamento conservador para os pacientes com DRC em fase não dialítica. O setor de hemodiálise possui capacidade para atender 240 pacientes, distribuídos em três turnos, manhã, tarde e noite, onde os pacientes são alocados para realização de três sessões de hemodiálise por semana, com uma duração média de quatro horas.
O estudo tem característica censitária, visto que foram entrevistados todos os pacientes que atenderam aos critérios de inclusão e aceitaram fazer parte da pesquisa. Adotou-se como critério de elegibilidade: ter diagnóstico de IRC registrado no prontuário, estar em tratamento hemodialítico no hospital há pelo menos dois meses e possuir idade igual ou superior a 18 anos. Foram excluídos da amostra os pacientes que estavam em trânsito durante o período de coleta, os pacientes com diagnóstico de insuficiência renal aguda e os que possuíam DRC em fase não dialítica que realizavam tratamento conservador. Ao final, foram entrevistados 207 pacientes. Ocorreram 22 recusas de participação e 2 pacientes foram excluídos por estarem em trânsito durante o período de coleta.
Os dados foram coletados entre os meses de setembro a outubro de 2018. Os pacientes foram convidados antes da sessão de hemodiálise, individualmente, de forma privada, onde foi explicado o objetivo do estudo, a metodologia empregada, os riscos e benefícios da participação. Após consentimento, solicitou-se a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e encaminhamento para sala reservada para prosseguimento da pesquisa.
Utilizou-se a entrevista como técnica de coleta de dados, norteada por dois formulários de pesquisa: um construído pelos pesquisadores, contendo informações sociodemográficas e clínicas e um outro instrumento validado.
O instrumento validado é o formulário Kidney Disease Quality of Life (KDQOL-SF) que foi desenvolvido pelo grupo Kidney Disease Quality of Life Working em 1997. O formulário tem como principal objetivo mensurar a qualidade de vida relacionada à saúde do paciente com insuficiência renal no intuito de compreender os impactos da doença e do tratamento . Ele foi traduzido para língua portuguesa, adaptado a cultura brasileira e validado no ano de 2003 (versão 1.3) por Duarte e colaboradores11.
Para análise da percepção de incômodo foi utilizado duas variáveis do domínio “efeitos da doença renal em sua vida diária” presentes no instrumento Kdqol- SF 1.3: 1) diminuição de líquido; 2) diminuição alimentar. Em ambas as variáveis, os pacientes tinham a possibilidade de resposta de forma contínua, segundo seu grau de incômodo, podendo responder: não incomoda nada, incomoda um pouco, incomoda de forma moderada, incomoda muito ou incomoda extremamente.
Para análise, as variáveis foram recategorizadas em variáveis categóricas. Para isso, as possibilidades “incomoda um pouco”, “incomoda de forma moderada”, “incomoda muito” e “incomoda extremamente” foram unificadas em apenas “incomoda”, independente do grau de incômodo, fazendo contraponto com a possibilidade “não incomoda”.
Os dados foram tabulados e analisados através do software IBM SPSS (Statistical Package for the Social Sciences) versão 22.0. Inicialmente foi realizada análise descritiva de frequências (relativa e absoluta). Posteriormente, para verificar os fatores associados à diminuição de líquido e alimentar foi realizado o teste do qui-quadrado (x2) de Person, adotando o valor de p de <0,05 como estatisticamente significantes associações.
As associações foram feitas com as variáveis do instrumento clínico e sociodemográfico construído pelos autores: sexo, raça/cor, faixa etária, escolaridade, Benefício de Prestação Continuada (BPC), doenças crônicas associadas (hipertensão arterial, diabetes mellitus), lista de espera para possível transplante, realização prévia de transplante renal e tempo que faz hemodiálise.
Considerações éticas
Salienta-se que o estudo atendeu a todos os preceitos éticos, baseando-se nas Resoluções nº. 466 de 2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que regulamenta as pesquisas envolvendo seres humanos. O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade do Estado da Bahia através do parecer nº: 2.874.431 e CAAE nº 93922718.0.0000.0057.
Resultados
No que se refere à caracterização sociodemográfica da população, o público foi composto predominantemente por pessoas do sexo masculino (66,67%), com faixa etária de 18 a 59 anos (58,45%), pertencentes à raça/cor negra (73,43%), e alfabetizados (82,61%).
Ademais, 111 (53,62%) pacientes do hospital recebem auxílio financeiro através do BPC, enquanto 96 (46,38%) declaram que não recebem este tipo de beneficio.
A Tabela 1, apresentada abaixo, descreve detalhadamente as frequências das características sociodemográficas.
VARIÁVEIS | Abs. | % |
SEXO Feminino | 69 | 33,33 |
Masculino | 138 | 66,67 |
FAIXA ETÁRIA 18 a 59 anos | 121 | 58,45 |
60 anos ou mais | 86 | 41,55 |
RAÇA/COR Negro | 152 | 73,43 |
Branco | 55 | 26,57 |
ESCOLARIDADE Não alfabetizado | 36 | 17,39 |
Alfabetizado | 171 | 82,61 |
BENÉFICIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA (BPC) | ||
Sim Não | 111 | 53,62 |
96 | 46,38 | |
TOTAL | 207 | 100 |
Fonte: elaboração própria, 2018.
Em relação aos pacientes associado à presença de outras comorbidades. Dos 207 entrevistados que tinham doenças crônicas associadas, 168 (81,2%) eram hipertensos e 44 (21,26%) eram diabéticos; aqueles que não apresentaram essas doenças, 39 (18,84%) eram hipertensos e 163 (78.74%) eram diabéticos.
Ainda acerca das características clínicas, pode-se constatar a partir da Tabela 3 que a maior parte dos pacientes, 122 (58,94%), estava em tratamento hemodialítico há menos de 3 anos, enquanto 85 (41,06%) realizavam tratamento a tempo superior há 3 anos. Dos 207 que responderaram ao questionário, apenas 12 (5,80%) já realizaram transplante renal. Destes 12 transplantados, apenas 1 paciente (0,48%) ficou sem necessidade da hemodiálise por mais de 10 anos, os demais retornaram para as sessões em um tempo inferior, em virtude da falência ou rejeição do órgão transplantado.
Em relação à atual conjuntura, 99 pacientes (47,83%) informaram que estavam cadastrados para receber um novo órgão caso surja um doador compatível, já 108 (52,17%) disseram que não estão mais na lista de espera.
VARIÁVEIS | Abs. | % |
TEMPO QUE FAZ HEMODIÁLISE Até 3 anos | 122 | 58,94 |
Acima de 3 anos | 85 | 41,06 |
TRANSPLANTE RENAL Sim | 12 | 5,80 |
Não | 195 | 94,20 |
TEMPO QUE FICOU TRANSPLANTADO | ||
Menos de 1 ano | 1 | 0,48 |
1-3 anos | 4 | 1,93 |
4-6 anos | 4 | 1,93 |
7-10 anos | 2 | 0,97 |
> de 10 anos | 1 | 0,48 |
Não transplantados | 195 | 94,20 |
LISTA DE ESPERA PARA POSSÍVEL TRANSPLANTE | ||
Sim | 99 | 47,83 |
Não | 108 | 52,17 |
TOTAL | 207 | 100 |
Fonte: elaboração própria, 2018.
Sobre distribuição de frequências dos pacientes de acordo com os efeitos da doença na vida diária de cada indivíduo submetido à hemodiálise, no que tange às variáveis “diminuição de líquido” e “diminuição alimentar”. Assim, 157 (75,85%) relataram que se incomodavam com a restrição hídrica, enquanto não é desconfortável para um 24,15% (50); 117 (56,52%) relataram incômodo com a relação à diminuição alimentar y não é desconfortável para um 43,48% (90).
A tabela 3 apresenta os fatores associados à percepção de incômodo com a restrição alimentar e hídrica enfrentada pelos pacientes. Com relação à percepção de incômodo com a diminuição de líquidos, verificou-se associação com estar em idade produtiva (p = 0,040), receber o benefício de prestação continuada (p = 0,027) e ser hipertenso (p = 0,006). Quanto à percepção de incômodo com a restrição alimentar, constatou-se associação com ser da raça/cor negra (p = 0,047).
Diminuição alimentar | p-valor | Diminuição hídrica | Teste de Q-Quadrado | |||||||||
Incomoda | Não-incomoda | Incomoda | Não-incomoda | |||||||||
Variáveis de avaliação | Abs. | % | Abs. | % | Abs. | % | Abs. | % | Valor do teste | |||
Idade | 0,040* | 0,458 | ||||||||||
não-idosos (18 a 59 anos) | 98 | 62,4 | 23 | 46,0 | 71 | 60,7 | 50 | 55,6 | ||||
Idosos (60 ou mais) | 59 | 37,6 | 27 | 54,0 | 46 | 39,3 | 40 | 44,4 | ||||
Sexo | 0,909 | 0,766 | ||||||||||
Masculino | 105 | 69,9 | 33 | 66,0 | 79 | 67,5 | 59 | 65,6 | ||||
Femenino | 52 | 33,1 | 17 | 34,0 | 38 | 32,5 | 31 | 34,4 | ||||
Escolaridad | 0,324 | 0,385 | ||||||||||
132 | 84,1 | 39 | 78,0 | 99 | 84,6 | 72 | 80,0 | |||||
25 | 15,9 | 11 | 22,0 | 18 | 15,4 | 18 | 20,0 | |||||
Raça/Cor | 0,811 | 0,047* | ||||||||||
115 | 73,7 | 36 | 72,0 | 92 | 78,6 | 59 | 66,3 | |||||
41 | 26,3 | 14 | 28,8 | 25 | 21,4 | 30 | 33,7 | |||||
BPC | 0,027* | 0,078 | ||||||||||
91 | 58,0 | 20 | 40,0 | 69 | 59,0 | 42 | 46,7 | |||||
66 | 42,0 | 30 | 60,0 | 48 | 41,0 | 48 | 53,3 | |||||
Hipertensão arterial | 0,006* | 0,708 | ||||||||||
134 | 85,4 | 34 | 68,0 | 96 | 82,1 | 72 | 80,0 | |||||
23 | 14,6 | 16 | 32,0 | 21 | 17,9 | 18 | 20,0 | |||||
Diabetes mellitus | 0,150 | 0,465* | ||||||||||
37 | 23,6 | 7 | 14,0 | 27 | 23,1 | 17 | 18,9 | |||||
120 | 76,4 | 43 | 86,0 | 90 | 76,9 | 73 | 81,1 | |||||
Tempo que faz hemodiálise | 0,415 | 0,766 | ||||||||||
95 | 60,5 | 27 | 54,0 | 70 | 59,8 | 52 | 57,8 | |||||
62 | 39,5 | 23 | 46,0 | 47 | 40,2 | 38 | 42,2 | |||||
Transplante renal | 0,952 | 0,650 | ||||||||||
9 | 5,8 | 3 | 6,0 | 6 | 5,2 | 6 | 6,7 | |||||
147 | 94,2 | 47 | 94,0 | 110 | 94,8 | 84 | 93,3 | |||||
Lista de espera para possível transplante | 0,203 | 0,393 | ||||||||||
79 | 50,3 | 20 | 40,0 | 59 | 50,4 | 40 | 44,4 | |||||
78 | 49,7 | 30 | 60,0 | 58 | 49,6 | 50 | 55,6 |
* Valor de p com significância estatística no teste qui-quadrado de Pearson.
Fonte: elaboração própria, 2018
Discussão
Dentre os indivíduos pesquisados, verificou-se maior prevalência no sexo masculino, dados que corroboram com os achados de outro estudo.12 Segundo os autores13, a vulnerabilidade masculina ocorre pela menor busca dos serviços de prevenção à saúde por parte desse público, o que faz com que aumente o risco para o acometimento de doenças crônicas não transmissíveis, como a IRC.
Diante desse cenário vê-se a importância da inserção do homem nas políticas de saúde com foco na prevenção e promoção da saúde de forma integral, uma vez que a ausência do público masculino nessas discussões implica em maior vulnerabilidade no acometimento de doenças. Além disso, é necessário discutir os aspectos culturais, de produção e reprodução do machismo que distanciam o homem dos serviços de saúde e dificulta a consolidação da Política Nacional de Saúde do Homem13.
A maior prevalência de pacientes não-idosos com IRC impacta diretamente na capacidade de trabalhar e na condição financeira da família, haja vista que o tratamento é realizado por tempo indeterminado. Para Fukushima e outros14, as pessoas em idade produtiva tem maior prejuízo com relação aos idosos, pois se encontram em fase considerada de grande produtividade e desempenho no mundo do trabalho, algo que torna-se comprometido com a realização de sessões de hemodiálise semanalmente.
O acometimento majoritário da IRC em pacientes negros corrobora com outro estudo realizado com 55 indivíduos no nordeste do Estado do Pará15. A população de raça/cor negra possui fatores genéticos específicos que facilitam o acometimento de algumas doenças crônicas como a IRC16.
Além disso, acredita-se que o racismo institucional também seja um facilitador dessa maior prevalência. O baixo acesso aos serviços públicos de prevenção, a baixa condição financeira somada ao precário acesso à educação e informação faz com que a população negra tenha uma vulnerabilidade ampliada17.
O racismo institucional tem um papel influenciador sobre a saúde da população negra, afetando de maneira difusa através da redução do acesso aos serviços, informações, construção de estereótipos e discriminação racial. Acredita-se que o racismo possa potencializar os efeitos negativos de uma doença, além de ser considerado um determinante social em saúde18.
Quando avaliado o tempo de hemodiálise, observou-se que parcela significativa dos pacientes pesquisados estavam em tratamento dialítico há menos de 3 anos, o que poderia afetar a percepção de incômodo com os efeitos da doença. Segundo Everling et al.19 o tempo de tratamento tem grande influência na degradação da qualidade de vida, uma vez que quanto maior o tempo dependente da terapia de substituição renal maiores as limitações enfrentadas.
No que se refere às comorbidades, a hipertensão arterial teve maior prevalência entre os pesquisados quando comparada com a diabetes mellitus. A presença da HAS é justificada por outros autores20 quando demonstram que o paciente dialítico sofre com a sobrecarga de volume, retenção de sódio e rigidez arterial, o que provocam níveis pressóricos descontrolados.
Cabe salientar ainda que, apesar de apresentar prevalência menor nesse estudo, a diabetes mellitus é a principal causa base para desenvolvimento da IRC. Tanto a HAS, quanto a DM aumentam do risco da mortalidade por complicações cardiovasculares21.
Com relação aos efeitos da doença renal na vida diária do paciente em tratamento de hemodiálise constatou-se que a maior parte dos entrevistados se sentia incomodada com a restrição hídrica e alimentar. Em estudo realizado com 254 sujeitos de quatro clínicas de HD da região de Lisboa concluiu-se que as restrições alimentar e hídrica causavam impactos negativos na vida do paciente renal. Os achados são alarmantes porque é fundamental que os pacientes evitem refeições muito condimentadas e ingestão de volume de líquido maior do que é permitido por dia22.
No que tange os fatores associados à restrição de líquidos, verificou-se associação entre não ser idoso e sentir-se incomodado com a diminuição da ingesta hídrica. Acredita-se que tal associação é justificada pelo fato de que as pessoas mais jovens possuírem atividades de lazer e laborais de forma mais frequente que os idosos e frequentarem espaços onde a ingesta de líquido é alta, como em bares e festas.
Além disso, o metabolismo dos jovens costuma ser mais acelerado do que os idosos, o que faz com que tenham mais demandas hídricas. Para Oller et al.23 os indivíduos mais jovens possuem maiores necessidades fisiológicas e, assim, sentem uma maior dificuldade em relação aos idosos quando se trata de restringir a água no seu cotidiano.
Outra correlação verificada foi de que os pacientes que recebiam o BPC eram associados à presença de incomodo em relação às restrições hídricas. O BPC é uma modalidade de assistência não contributiva destinada ao idoso e pessoas com deficiência que comprovem que não possuem subsídios para a sua sobrevivência ou de sua família24.
Nesse sentido, nota-se que as pessoas que recebiam o BPC eram pessoas com grande vulnerabilidade socioeconômica, o que fazia com que o acesso aos bens de consumo fossem limitados. Assim, ao acrescentar mais uma limitação à sua condição, principalmente por tratar-se de algo de fácil acesso, ampliava-se sua vulnerabilidade, somatizando as já existentes, diferentemente dos pacientes com condição econômica mais privilegiada que podiam adaptar a restrição hídrica através do consumo de outros alimentos.
Outra constatação importante do estudo foi que ser hipertenso estava associado a sentir-se incomodado com a restrição hídrica. O resultado é semelhante ao encontrado em outro estudo25 realizado com 336 pacientes com IRC nos municípios de Sorocaba e Votorantim. Infere-se que isso se deve à multimorbidade por HAS e DM. O paciente com HAS possui restrições impostas pela patologia, como o consumo de medicamentos e restrição alimentar, o que faz com que sinta-se mais incomodado com a restrição de líquidos do que os pacientes não hipertensos.
A HAS descontrolada em pacientes com IRC faz surgir alterações importantes, como distúrbios psicológicos e sociais, além da presença de manifestações clínicas como a fraqueza, anemia, presença de edemas e cansaço persistente. Sendo assim, a restrição hídrica torna-se mais uma perda para o paciente, o que provoca incômodo relacionado à limitação14.
Nesse estudo, não foi constatado associações estatisticamente significantes entre a presença de diabetes mellitus e o incômodo com a diminuição de líquido e de alimentos, o que confronta a literatura que pontua que a diabetes provoca a diminuição capacidade funcional, redução da qualidade de vida dos pacientes e se caracteriza com sinais/sintomas como o aumento da fome e sede excessiva26.
Constatou-se que os pacientes de raça/cor negra possuíam maior incômodo com a restrição alimentar. Fisiologicamente, as pessoas negras são mais propensas ao desenvolvimento da HAS e DM, que tem como manifestação clínica o aumento da fome e sede, o que auxilia na explicação do fato deste grupo sinta-se mais incomodado do que os pacientes não negros15.
É necessário pontuar que a ingesta hídrica recomendada para pacientes em tratamento hemodialítico é de até 5% do peso seco entre as sessões. A ingesta hídrica descontrolada aumenta a incidência de intercorrências durante as sessões de hemodiálise como hipotensão e câimbra, causa aumento da massa cardíaca com hipertrofia de ventrículo esquerdo e pode gerar intercorrências graves no ambiente extra hospitalar como emergência hipertensiva, congestão pulmonar, dispneia e edema agudo de pulmão8.
Por outro lado, a restrição alimentar é um instrumento importante para prevenção e redução das complicações renais, principalmente em anúricos, pois o estado nutricional repercute diretamente na sintomatologia clínica da doença27.
Acredita-se que a constatação dessas correlações são importantes, porque a percepção de incômodo com as restrições impostas pela doença pode afetar de forma significativa a qualidade de vida dos pacientes, gerando sentimento de revolta, impotência e difícil aceitação ao tratamento.
Conclusão
O estudo permitiu caracterizar os pacientes em tratamento de hemodiálise no Alto Sertão da Bahia e identificar os fatores associados à percepção de incômodo em relação às restrições dietéticas causadas pela doença renal, como a redução da alimentação e da ingestão hídrica. No que tange as relações verificadas a partir do teste de Pearson, contatou-se que o incômodo em relação à diminuição de líquido estava associada a pacientes que já possuíam outra comorbidade, como os hipertensos, pessoas não idosas e também pessoas de baixa renda que recebiam o auxílio financeiro do programa BPC. Com relação à restrição alimentar, evidenciou-se relação com os pacientes negros.
As modificações dietéticas impostas ao paciente com IRC são fatores que impõem limitações capazes de afetar diretamente na qualidade de vida. Acredita-se que isso se explica pelo fato das limitações hídricas e alimentares implicarem de forma intensiva sobre os aspectos físicos, clínicos e psicológicos de cada indivíduo, uma vez que existe a necessidade de mudança de seu estilo de vida a qual a doença impõe.
Apesar da limitação com relação ao tamanho da população, acredita-se que o estudo ofertará subsídios para a equipe multidisciplinar construir uma assistência a partir das restrições impostas pela doença, com vista a reduzir os impactos e complicações causados pela doença e tratamento, em que se torna necessário a mudança no estilo de vida do paciente com IRC.
Ademais, este estudo reforça a percepção de que o cuidado ao paciente com IRC deve envolver de forma horizontal e integrada entre profissionais e cuidadores, uma vez que controle hídrico e alimentar é realizado no ambiente extra hospitalar. Acrescenta-se ainda a necessidade de integrar e sensibilizar o paciente para o autocuidado, como sujeito corresponsável pela sua saúde.
O estudo aponta também a necessidade da realização de outras pesquisas voltadas para os efeitos e impactos da doença renal na vida dos pacientes, em outros cenários e com os estudos prospectivos, para que seja possível avaliar essas e outras variáveis acerca das restrições impostas pela doença, com foco na construção de uma assistência pautada na realidade apresentada pelo paciente.
Declaração de conflito de interesse
Os autores declaram que não existiram conflitos de interesses no desenvolvimento dessa pesquisa.