Introdução
A visão é um dos sentidos mais importantes para o desenvolvimento normal da criança. Por conseguinte, a existência de problemas oculares pode interferir de forma global no desenvolvimento do indivíduo, comprometendo seu progresso no que se refere aos aspectos biopsíquicos, dificultando até mesmo sua inserção social em diversos âmbitos da vida1,2,3.
Além disso, os problemas na visão podem ocasionar impactos negativos para economia, gerando despesas que podem ser classificados em custos diretos (tratamentos das doenças oculares) e indiretos (recursos visuais, equipamentos, mudanças nas casas, reabilitação, etc.)4.
Segundo a Organização Mundial da Saúde5, cerca de 80% das deficiências visuais são evitáveis, sendo a cegueira na infância responsável por 3% desses déficits. Logo, notamos que ações de prevenção à saúde ocular são primordiais para prevenir a progressão de problemas oculares, quando detectados e tratados precocemente.
Atualmente, existem exames capazes de identificar problemas visuais desde os primeiros anos de vida da criança, como é o caso do Teste do Reflexo Vermelho (TRV), ou mais popularmente conhecido como Teste do Olhinho. Esta ferramenta simples e importante possibilita a detecção precoce de alterações na visão características de doenças como a catarata congênita, glaucoma, toxoplasmose, retinoblastoma, dentre outras6.
O exame deve ser realizado em todos os recém-nascidos antes da alta da maternidade e ao menos duas a três vezes ao ano, nos três primeiros anos de vida da criança6.
Sendo assim, observamos que o acompanhamento do TRV também se faz necessário nos primeiros anos de vida do ser humano, sendo as consultas de Crescimento e Desenvolvimento (C e D) um espaço oportuno para o seguimento dessa assistência.
Entretanto, mesmo evidenciando a importância do TRV, sua execução como parte do exame físico da criança na atenção primária à saúde ainda é precário ou inexistente, passando despercebido durante as consultas de C e D.
Uma das justificativas para isto é o fato de que grande parte dos profissionais enfermeiros não sabe executá-lo. Por conseguinte, muitas crianças não são avaliadas, o que impede que os agravos à visão sejam descobertos logo na primeira infância3.
A realização do TRV pelos enfermeiros ainda se encontra em processo de construção, tanto como ferramenta de ensino, como em caráter assistencial1.
Diante desta lacuna, surgiram inquietações relacionadas à assistência do enfermeiro à saúde ocular na infância, mais especificamente quanto à realização do TRV como parte do exame físico da criança. E em virtude disso, observou-se a precariedade de instrumentos específicos que guiem e auxiliem esses profissionais na realização do exame.
Esta situação é pertinente no município de Currais Novos (Rio Grande do Norte), o qual no ano de 2015 registrou um total de 3094 indivíduos, de 0 a 4 anos de idade, segundo dados do DATASUS7.
Onde, atualmente, para este grande número de crianças, o acompanhamento do TRV é praticamente inexistente, sendo realizado apenas nos primeiros meses de vida, por duas Unidades Básicas de Saúde (UBS) do município, de um total de 17, pelos enfermeiros efetivos e residentes em enfermagem (do Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Básica) atuantes neste espaço.
Atualmente, a realização do exame é regulamentada pelo parecer técnico COREN-RN nº 01/2018, o qual afirma que não há impedimentos para realização do TRV pelo enfermeiro, desde que este seja devidamente capacitado e qualificado.
Deste modo, acredita-se que a construção de um protocolo prático e direcionado para a assistência do enfermeiro na realização do TRV durante as consultas de C e D, poderá resultar em impactos positivos para a saúde ocular das crianças do município, devido sua relevância biopsicossocial na prevenção das complicações visuais, além de proporcionar contribuições importantes para o meio científico.
Face ao exposto, o presente estudo teve como objetivo: elaborar protocolo que direcione os enfermeiros das UBS’s do município de Currais Novos/RN para a realização do TRV às crianças na consulta de C e D.
Materiais e método
O presente estudo trata-se de um relato de experiência relacionado à elaboração de um protocolo assistencial para a realização do Teste do Reflexo Vermelho.
A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas. A primeira de las foi a revisão integrativa da literatura, para a qual foram consultadas as seguintes bases de dados: Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE) e Scientific Electronic Library Online (SCIELO).
Como critérios de inclusão foram utilizados os artigos publicados nos últimos oito anos, disponíveis na íntegra, escritos em idioma inglês ou português, que abordavam as técnicas de execução do TRV. Devido à carência de materiais que abordam esta temática, foi necessário ampliar os anos de busca nas bases de dados e recorrer à utilização de outras técnicas e fontes de pesquisa. Assim, incluímos no estudo alguns manuais técnicos de órgãos da saúde e livros da área de pediatria.
Excluíram-se os textos indisponíveis nas bases de dados da internet, artigos repetidos, incompletos ou que não se enquadraram com a temática em questão, publicados anteriormente ao ano de 2010 e que foram ofertados em idiomas diferentes do português e inglês.
Como recurso para a pesquisa dos artigos no LILACS e SCIELO, utilizou-se os Descritores em Ciências da Saúde (DECS) e o operador booleano AND, sendo possível realizar o seguinte cruzamento: “saúde ocular AND enfermagem”. Enquanto que para a base de dados MEDLINE, utilizamos como palavra chave “red reflex test” (em aspas), a qual não possui registro no DECS, para melhor delimitar a pesquisa.
Posteriormente, as categorias foram tabuladas com o intuito de facilitar a seleção e análise dos estudos, a qual compunha os seguintes itens: base de dados/fonte de pesquisa, referência do estudo (com o ano de publicação). A análise e discussão dos resultados pautaram-se na literatura nacional e internacional sobre o TRV.
Após a conclusão do processo de revisão integrativa, foi dado início a segunda etapa, que consistiu na Construção do Protocolo, a qual foi subdividida em dois momentos: Elaboração textual, na qual foi organizada a produção textual para descrever os critérios utilizados para identificação de alterações oculares em recém-nascidos e crianças, condutas diante do diagnóstico positivo e atribuições da equipe de enfermagem; e a Diagramação que verificou a correção vernacular visando evitar erros gramaticais e desvios do estilo da língua portuguesa.
Resultados
Na busca inicial, foi encontrado um total de 81 artigos. Por meio da leitura dos títulos e resumos, verificaram-se quais se enquadravam nos critérios de inclusão propostos, sendo excluídos dois registros da base de dados LILACS que apresentaram duplicidade e, 71 que não atenderam ao tema proposto ou que não se adequaram aos critérios de seleção.
Dos 08 artigos lidos na íntegra, 04 não apresentaram relação com a temática abordada, sendo a amostra final de apenas 04 estudos para compor a revisão integrativa.
Identificação | Base de Dados/Fonte de Pesquisa | Referências |
Documento 01 | Scielo | Aguiar ASC, Ximenes LB, Lúcio IML, Pagliuca LMF, Cardoso MVLML. Association of the red reflex in newborns with neonatal variables. Rev Latino-Am Enfermagem. 2011; 19(2). Disponible en: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692011000200012&lang=pt |
Documento 02 | Scielo | Cardoso MVLML, Aguiar ASC, Lucio IML, Verçosa IC. Recém-nascidos com reflexo vermelho "suspeito": seguimento em consulta oftalmológica. Esc Anna Nery. 2010; 14(1):120-25. Disponible en: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452010000100018 |
Documento 03 | MEDLINE | Jonas, DE, Amick HR, Wallace IF, Feltner C, Schaaf EBV, Brown CL, et al. Vision Screening in Children Ages 6 Months to 5 Years: A Systematic Review for the U.S. Preventive Services Task Force. Evidence Synthesis No. 153. AHRQ Publication No. 17-05228-EF-1. Rockville, MD: Agency for Healthcare Research and Quality. 2017. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmedhealth/PMH0098873/pdf/PubMedHealth_PMH0098873.pdf |
Documento 04 | MEDLINE | Institute of Health Economics. The Safety and Effectiveness of Preschool Vision Screening. (Internet). 2012 (Cited 2018 Nov 10). https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmedhealth/PMH0099202/pdf/PubMedHealth_PMH0099202.pdf |
Documento 05 | Manual Técnico do Ministério da Saúde | Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: crescimento e desenvolvimento. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. Disponible en: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_crianca_crescimento_desenvolvimento.pdf |
Documento 06 | Manual Técnico do Ministério da Saúde | Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Diretrizes de Atenção à Saúde Ocular na Infância: detecção e intervenção precoce para prevenção de deficiências visuais. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_atencao_saude_ocular_infancia.pdf |
Documento 07 | Livro | Pessoa JHL (Ed.). Puericultura: Conquista da Saúde da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Atheneu; 2013. |
Documento 08 | Livro | Campos Júnior D, Burns DAR (Orgs.). Tratado de Pediatria: Sociedade Brasileira de Pediatria. 3ª ed. Barueri, SP: Manole; 2014. |
Documento 09 | Livro | Hay Jr WW, Levin MJ, Deterding RR, Abzug MJ. Current pediatria: diagnóstico e tratamento. Tradução de Daniel Bueno (et. al.). 22ª ed. Porto Alegre: AMGH; 2016. |
Documento 10 | Livro | Fanaroff AA, Martin RJ, Walsh MC. Fanaroff & Martin medicina neonatal e perinatal: doenças do feto e do neonato. Tradução de Adriana Siqueira (et. al.). 10ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2017. |
Fonte: elaborado pelo autor, 2018.
Devido à carência de estudos recentes, realizou-se consultas em fontes literárias, acrescentando-se 4 livros e 2 manuais do Ministério da Saúde, que apresentavam abordagem relevante sobre a técnica do TRV. Sendo expostas no tabela 1 as produções selecionadas. Sendo assim, após a análise minuciosa dos artigos e eliminação dos artigos duplicados, foram selecionados dois artigos que estavam indexados na Scielo e Lilacs e mais dois indexados na Medline.
Após a leitura dos materiais, realizou-se a seleção do conteúdo e tópicos necessários para a elaboração textual. O protocolo construído foi intitulado “Protocolo Assistencial de Enfermagem para Teste do Reflexo Vermelho em Consultas de Crescimento e Desenvolvimento”, seguindo uma proposta objetiva acerca do direcionamento para realização do exame.
No protocolo foram abordados os seguintes tópicos:
Apresentação: exposta a importância do TRV e o objetivo proposto no protocolo.
Definição de TRV: conceito do exame, explanando alterações que este é capaz de identificar.
Orientações iniciais: considerações gerais sobre o teste.
Etapas do TRV: sintetizadas através de fluxogramas, elaborados e divididos de acordo com as etapas para realização do exame, abordando os itens: acolhimento, anamnese (coleta de informações importantes que poderão nortear possíveis achados, como: história familiar, perinatal e da doença atual da criança), realização do exame/avaliação (mostradas as etapas sequenciais da realização do TRV pelo enfermeiro nas crianças que são acompanhadas nas consultas de C e D, tendo por base as evidências científicas identificadas na revisão integrativa), conduta e orientações (direcionamento adequado, mediante os possíveis resultados), descritas logo após nas Figuras 2, 3 e 4. Sugere-se que o exame seja realizado nas seguintes faixas etárias: 6 meses, 1 ano, 1 ano e 6 meses, 2 anos, 2 anos e 6 meses, 3 anos, 4 anos, 4 anos 11 meses e 29 dias.
Conclusão: reafirma a importância da realização do exame.
Posteriormente, os textos utilizados para elaboração do instrumento foram revisados a fim de se identificar possíveis erros gramaticais.
Fonte: elaborada pelo autor, 2018.
Fonte: elaborada pelo autor, 2018.
Fonte: elaborada pelo autor, 2018.
Fonte: elaborada pelo autor, 2018.
* Para crianças com mais de 5 anos de idade o acompanhamento da saúde ocular será realizado mediante a necessidade ou através do Programa de Saúde na Escola (PSE) com a realização de outros tipos de avaliações.
Discussão
A perda da capacidade visual traz impactos à qualidade de vida do indivíduo no que se refere aos aspectos biopsicossociais, podendo esta situação ser evitada ao considerar-se que a maioria dos casos poderiam ser prevenidos e/ou tratados por meio de exames de identificação precoce8.
Deste modo, o TRV desponta como um forte aliado para detecção precoce da catarata congênita, dentre outras doenças, sendo considerado um exame não invasivo e seguro9-12.
De acordo com algumas literaturas, o recomendado é que toda criança tenha acesso ao TRV antes da alta da maternidade, de duas a três vezes ao ano nos 3 primeiros anos de vida e, ao menos uma vez ao ano dos 3 aos 5 anos de idade 9-10,12.
Nesse sentido, faz-se necessário a incorporação deste exame nas consultas de C e D13, uma vez que esse espaço pode propiciar o acompanhamento e evolução das condições visuais, bem como a detecção precoce de alterações. Sendo primordial, para isso, a existência de materiais que possibilitem a aquisição dos conhecimentos e habilidades necessárias pelos enfermeiros para a realização do teste.
Embora seja considerado um exame de caráter simples, sua execução merece cautela, uma vez que o profissional necesita verificar atenciosamente as características do reflexo. Sendo fundamental que o examinador conheça a anatomia ocular, acrescente em sua avaliação uma anamnese detalhada sobre características referentes ao nascimento, à história familiar, perinatal e neonatal, os quais podem manter uma estreita relação com as possíveis alterações encontradas14.
Alguns dos aspectos que podem interferir nas colorações do reflexo vermelho são a incidência e intensidade da luz emitida, a pigmentação e estágio de desenvolvimento da retina, a oxigenoterapia, a idade gestacional do recém-nascido, bem como até o próprio posicionamento da criança durante o teste, o que pode interferir na disposição correta do eixo visual8,14.
No que se refere à oxigenoterapia, estudos já realizam associações de que recém-nascidos que a utilizam possuem uma maior probabilidade de desenvolvimento de problemas oculares, devido à produção de oscilações na pressão desses. Sendo esta situação agravada em bebês de baixo peso, uma vez que estes necessitam de uma maior exposição ao oxigênio15.
O que corrobora e possui relação com outra pesquisa, na qual foi avaliada a idade gestacional e verificado que bebês prétermos apresentaram-se mais vulneráveis ao desenvolvimento de alterações oculares em comparação aos recém-nascidos a termo14.
Tomando como base as recomendações do Ministério da Saúde16, prematuros com idade gestacional igual ou inferior a 32 semanas devem ser avaliados por oftalmologista na sexta semana de vida, sendo acompanhados posteriormente conforme quadro clínico.
O TRV apesar de possuir em sua denominação de que o reflexo emitido é vermelho, este pode apresentar algumas variações de tonalidades consideradas normais, como a própria coloração vermelha, alaranjada, laranja avermelhado e amarelo claro.
Uma vez identificadas alterações no TRV, como reflexo ausente, assimétrico, de coloração distinta como amarelo claro com manchas brancas, entre outras, a criança deve ser encaminhada ao médico especialista (oftalmologista) para análise mais detalhada 11,17.
Apesar de ser um exame de fácil realização e de baixo custo esbarra em alguns obstáculos como a falta de profissionais em geral (médicos e enfermeiros) capacitados para sua execução, o que de certa forma dificulta em um cuidado mais rotineiro durante as consultas de C e D15,18.
Em estudo realizado com 483 profissionais da saúde em Auckland na Nova Zelândia, um quinto dos entrevistados relatou que se sentiam inseguros na execução do exame e ainda, a maioria dos profissionais reforçou o interesse em treinamentos adicionais de suporte 19.
Diante destas particularidades e características inerentes ao exame, a existência de um protocolo torna-se essencial para a oferta de um suporte técnico ao enfermeiro na realização do teste, bem como pode auxiliar na tomada de decisões e condutas de acordo com o resultado do exame.
Reduzindo desta forma maiores agravos aos pacientes por meio de um acompanhamento mais regular, possibilitando uma descoberta precoce dos problemas oculares e, deste modo, resultados mais positivos. Além de contribuir na aquisição de novas habilidades e conhecimentos ao profissional enfermeiro.
Conclusão
A elaboração de um protocolo assistencial para execução do TRV voltado para enfermeiros representou um desafio.
Inicialmente, devido à escassez de artigos científicos atualizados que retratassem o tema para serem utilizados na revisão integrativa de literatura, foi necessário recorrer a outras fontes de pesquisa para permitir maior embasamento ao instrumento.
Com o desenvolvimento do protocolo, afirmamos a necessidade de que este seja validado posteriormente por profissionais especialistas para que possa ser utilizado em momentos de capacitações futuras.
Sabendo-se que atualmente o acompanhamento de saúde ocular em consultas de C e D não é desenvolvido nas UBS’s do município, confiamos que sua aplicabilidade poderá resultar em impactos positivos do ponto de vista biopsicossocial para as crianças assistidas, possibilitando a adoção de condutas e intervenções necessárias em menor espaço de tempo.
Destarte, acreditamos que o protocolo produzido poderá contribuir, ainda, para a aquisição de conhecimento teórico e técnico dos enfermeiros, conferindo-lhes maior autonomia em sua prática, sendo fundamental para isso, o treinamento destes profissionais para a assistência desta clientela, a fim de alcançar a excelência na prestação de um atendimento qualificado e integral.