Introdução
Desde o início das atividades de mineração na Idade Média, os metais têm sido associados aos problemas de contaminação. A partir do século XIX, houve a intensificação desses problemas em função do processamento de metais em indústrias químicas e de fundição. Um dos agravantes do uso indiscriminado dos metais é o risco envolvido ao serem lançados em grande quantidade no meio ambiente ou durante o processo de extração, que pode atingir diretamente o trabalhador desse setor, o garimpeiro.1
Esse trabalhador, por vezes, devido às condições de insegurança nas quais desempenha suas atividades, torna-se susceptível a diversas formas de violência e adoecimentos, e como agravante, pela falta de proteção ao exercício trabalhista, comumente sem amparo legal amplia sua situação de vulnerabilidade em saúde, ou seja, aumenta seu potencial de adoecimento. (2 O atendimento das necessidades do extrativista mineral e de seus familiares não ocorre em sua integralidade, conservando desigualdades históricas que afastam esses trabalhadores de melhores condições de vida e possibilidades de escolhas, logo, implicando em prejuízos para o desenvolvimento humano. (3
A vulnerabilidade desses trabalhadores antecede os riscos e ao mesmo tempo determina quais são, tanto no ambiente de garimpagem como nas relações estabelecidas a partir desse trabalho. Não obstante, mostram-se mais vulneráveis pelo estereótipo que apresentam, de fugitivos da justiça e/ou criminosos ambientais, colocando-os em posição de desprivilegio em relação aos demais trabalhadores. Comumente, a honestidade desse trabalho é questionada, bem como a integridade do garimpeiro.
E por conta dessa atividade não exigir mão de obra qualificada2 há a precarização das condições de trabalho, submetendo o garimpeiro a contextos degradantes, seja pela força de contratos informais que restringem à liberdade do trabalhador frente sua sobrevivência e a luta para conquistar um futuro digno ou pela falta de conhecimentos sobre qualidade de vida e saúde.
Particularmente em relação à saúde, o garimpeiro pode sofrer riscos tanto operacionais como ambientais como, por exemplo, os ruídos intensos de motores e máquinas; o contato frequente com substâncias químicas, poeiras, gases e rejeitos da garimpagem; exposição à acidentes com animais peçonhentos; aos vetores de doenças como febre amarela, malária, leishmaniose; além de doenças transmissíveis, como tuberculose; hanseníase; sífilis, hepatites e HIV. (4)- (10
Entretanto, ainda que reconheçam a representatividade dos riscos propiciados por essa atividade, muitos garimpeiros são sujeitos sociais que dependem da terra e de sua produção para o autoconsumo. E o trabalho no garimpo e a vida na terra se misturam no processo de produção social da existência, o que torna esse trabalho, seu espaço de ser e viver na comunidade. (11
Assim, mesmo a mineração estando gradativamente em processo de substituição de artesanal/manual para mecanizada, os trabalhadores pertencentes a esses cenários permanecem envolvidos na atividade garimpeira. Alguns vêm sustentando recursos financeiros e mantendo boas condições de vida, mas uma grande parte deles perdem ou perderam saúde, dignidade e muitas vezes a própria vida, sem receber a devida atenção da sociedade. (12
Essa invisibilidade parece também refletir nos meios científicos, já que a literatura disponível sobre saúde desses trabalhadores é escassa, predominando aspectos quantitativos, e valorando questões ligadas à intoxicação química ou contágio de malária, em detrimento de outras necessidades em saúde do garimpeiro. Dessa forma, o objetivo do estudo foi identificar as vulnerabilidades em saúde de garimpeiros de uma região amazônica.
MATERIAIS E MÉTODO
O estudo é de caráter descritivo-exploratório, com abordagem qualitativa, seguindo a Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ). O estudo foi realizado em um garimpo na Amazônia Legal, no interior do estado de Rondônia, Brasil. A escolha dessa localidade foi em virtude da existência de garimpo com perfil distinto dos tradicionais, uma vez que, o minério extraído do local (cassiterita) não possui valor de pedra preciosa e seu comércio ocorre de modo diferenciado de outras rochas. Esse tipo de garimpo não possui grande aglomerado, bem como possui baixa rotatividade de trabalhadores.
Os participantes do estudo foram garimpeiros em atividade extrativista mineral. A amostragem ocorreu por conveniência, respeitando critérios de inclusão e exclusão. Assim, foram inclusos no estudo, garimpeiros maiores de 18 anos. Sendo excluídos, garimpeiros ausentes no período de coleta dos dados (o que não houve no estudo). O quantitativo final de participantes do estudo (sete), baseou-se na exaustividade das informações de interesse, pela saturação dos dados, ao contemplar os objetivos do estudo. Todos os trabalhadores desse garimpo integraram o estudo, não havendo abandonos e desistências.
A coleta de dados foi realizada no mês de março de 2017 pelo próprio pesquisador em local indicado pelo garimpeiro. Antecedendo o processo de coleta de dados, houve comunicação com o proprietário do garimpo, para esclarecimentos do estudo e possibilidade de permissão para entrada na área de garimpagem. Após aceite e autorização do proprietário, foram realizadas visitas no garimpo, para contato prévio com os garimpeiros, a fim de estreitar as relações e ampliar o conhecimento do cenário da pesquisa.
Para coleta de dados, realizou-se entrevista semiestruturada audiogravada, norteada por um roteiro semiestruturado adaptado5, contendo questões fechadas (aspectos sociais, econômicos, pessoais, familiares e de saúde) e questões abertas (percepções sobre o cotidiano e cuidado com a saúde do garimpeiro). Para tanto, antecipando as entrevistas, foi realizado pré-teste com três garimpeiros, a fim de adequar o instrumento de coleta de dados. As entrevistas foram individuais, com duração média de 20 minutos.
Após a coleta, os dados foram transcritos e disponibilizados para os participantes de forma individualizada, para que verificassem o conteúdo e fizessem apontamentos. Todos concordaram com as transcrições. Em seguida, o material empírico foi organizado e submetido à análise de conteúdo. Esta técnica é composta por três etapas: pré-análise, exploração do material, tratamento e interpretação dos resultados. Na primeira etapa, o material foi organizado para ser analisado, sistematizando as ideias iniciais. Na segunda etapa, o material foi explorado a fim de definir as categorias e a identificação das unidades de registro. Na terceira etapa, ocorreu a condensação e o destaque das informações para análise, colimando nas interpretações inferenciais. (13
E para manter o anonimato dos participantes, codificou-se as narrativas pela consoante “G” para os garimpeiros seguindo a sequência com o uso de numerações arábicas nas entrevistas. A partir da análise, emergiram duas categorias: “Vida de garimpeiro” e “Autocuidado do garimpeiro em relação à saúde”.
Considerações éticas
Foram respeitados todos os padrões éticos em pesquisa de acordo com a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), iniciando o estudo somente após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), sob número de CAAE: 63653316.2.0000.5166, parecer n. 1.900.433. Todos os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados
Os participantes do estudo são provenientes do próprio estado de Rondônia, com idade entre 20 e 44 anos em sua maioria autodeclarados pardos, católicos, com ensino médio completo, casados, possuindo dois a três filhos e com renda familiar variando entre três (R$ 2.862,00) e oito (R$ 7.632,00) salários mínimos, aproximadamente.
Residem em moradias cedidas pelos proprietários da terra explorada, próximo do local de extração do minério. Essas moradias são de madeira com dois cômodos e banheiro com descarga em fossa séptica. Utilizam água encanada do rio para tomar banho, cozinhar, beber e lavar roupas e utensílios domésticos. Todos dormem em camas, sem utilização de mosquiteiros.
Trabalham cerca de 10 a 12 horas por dia e dormem de quatro a oito horas por noite. Alguns garimpeiros informam que devido ao tempo de permanência no garimpo já consideram seus colegas de trabalho como familiares. Todos possuem vida sexual ativa, com apenas um(a) parceiro(a), não utilizam preservativo em todas as relações, mas declaram nunca terem contraído alguma infecção sexualmente transmissível (IST).
Todos se sentem saudáveis e negam problemas de saúde. Alguns consideram sua atividade laboral como a única prática de atividade física disponível no seu cotidiano. Alimentam-se de três a quatro vezes ao dia, com consumo frequente de frutas, verduras e legumes. Ingerem bebidas alcoólicas, como cerveja, cachaça, whisky e vinho no próprio local de trabalho. A maioria não fuma, bem como não utiliza outros tipos de drogas.
Os garimpeiros informaram que no ambiente de trabalho pode ocorrer o contato com animais silvestres, como cutia, porco do mato, paca, macaco, rato, cobra, escorpião e aranha, com maior probabilidade para acidentes com animais peçonhentos (cobra, aranha e escorpião). Entre os acidentes ocorridos, a picada de cobra foi a mais registrada, nem sempre utilizando soro antiofídico para tratamento.
Durante a atividade extrativista possuem contato com o ácido muriático, utilizado para “queimar” o minério, porém desconhecem adoecimentos ou efeitos colaterais durante ou após a utilização do produto químico. Prevalecem garimpeiros que não utilizam equipamentos de proteção individual (EPI), com ocorrência pouco frequente de acidentes de trabalho (AT) que necessite de atendimento médico.
Em relação as doenças que estão susceptíveis no ambiente de trabalho, descrevem maior conhecimento sobre dengue e malária. Nos últimos 60 dias antes da entrevista, relataram principalmente, episódios de dores no corpo, mal-estar, cefaleia, fraqueza, tontura, vômitos e febre. Os principais medicamentos que utilizam são analgésicos para dores, pomadas antifúngicas para tratar frieiras e anti-inflamatórios para lesões. Entretanto, quando adoecidos sempre aderem a algum remédio caseiro (ervas, raiz, folhas) encontrado no próprio ambiente extrativista. Todos referiram que a última visita ao serviço de saúde ocorreu há menos de um ano na cidade mais próxima do garimpo, no entanto, ocorrendo somente quando visivelmente doente.
Os garimpeiros possuem acesso à internet e televisão, porém usufruem desses meios somente no período noturno em razão da extensa jornada de trabalho. A moto é o principal meio de transporte que a maioria dos garimpeiros dispõe.
Sobre os familiares dos garimpeiros, a maioria das mães não concluíram o ensino fundamental, não sabendo informar a escolaridade dos pais. Ambos os pais fazem ou fizeram uso de álcool ou fumo durante a vida e possuíam alguma relação com atividade garimpeira.
Vida de garimpeiro
Uma vida marcada pelo sofrimento é a expressão popular referida entre muitos trabalhadores frente à rotina no garimpo. Esses trabalhadores, normalmente, precisam de longas jornadas de trabalho pesado para retirar da terra o mínimo para seu sustento.
Sofrido! Trabalha muito e é sofrido. Geralmente o garimpeiro trabalha no garimpo por que não tem estudo, entendeu? Não é o que ele quer, não é o que ele escolheu pra ele, é o que dá mais. Às vezes é perigoso, mas se hoje se você vai perguntar pra um garimpeiro, se ele quer trabalhar na roça? Ele não quer! Então é um ramo assim: no início é um meio de vida que ele achou, e depois é o que ele acha mais fácil, começa ganhar dinheiro, a família sempre está junto de alguma forma apoiando [...] (G5)
Esse trabalho em momentos de escassez ou ausência do mineral pode despertar incertezas nos garimpeiros, já que essa atividade extrativista não fornece a garantia de uma produção fixa ou autossustentável.
[...] eu sinto falta do metal quando você não acha né. (G5)
Entretanto, os garimpeiros deste estudo, revelaram que a vivência nesse garimpo se mostra bem distinta da realidade experienciada por outros garimpeiros. Observa-se que mesmo as jornadas de trabalho sendo similares de vários contextos de extrativismo mineral, as condições de moradia e alimentação são superiores; características que estimulam a permanência nesse local e no desempenho dessa atividade. No entanto, há o reconhecimento de dificuldades relacionadas à garimpagem e que tais obstáculos são transpostos por meio do apoio coletivo existente nesse ambiente de trabalho e pelas condições de trabalho consideradas pelos participantes do estudo, como favoráveis para o desempenho de suas atividades.
[...] tem seus momentos bons e momentos ruins. No trabalho é normal, todo mundo é parceiro [...] (G1)
[...] em muitos garimpos aí, aqui é luxo, em vários garimpos aí o cara dorme em baixo de barraca, tem vezes dependendo da situação chove e molha tudo, o cara nem dorme na noite. Levanta três horas da manhã para ir trabalhar já, até às oito da noite. Aqui é bom demais, tem internet, como (refeição) quatro vezes por dia, vai trabalhar o dia tá clareando, volta o dia está claro ainda. Trabalha só na boa. (G2)
Rapaz, é corrido o trem. O cara pega cedo para a noite, dorme. Aqui que é muito tranquilo [...] tem energia, tem um celular, tem lugar aí que [...] o cara tem que ralar pra não é só chegar e ganhar o dinheiro não, tem que ralar. É comum, a gente trabalhar um pouco mais, mas não tem problema. (G4)
[...] A minha preocupação quando eu cheguei aqui era com comida, eu pensei assim [...] cara será que a gente vai comer bem nesse lugar e tal, e eu me surpreendi por que a gente come 09:00, a gente come um arroz um feijão, às vezes vem uma carninha e tal, vem um ovo, e quando é meio dia a gente tá almoçando e quando é três horas da tarde a gente tá comendo pão com manteiga, café e de noite se eu ficasse aqui também. Então eu acho que aqui não me falta nada. (G6)
Outro fator que influencia na qualidade de vida, nas relações e no bem-estar dos garimpeiros é ausência ou pouco contato com os familiares durante o período de permanência no garimpo.
[Sinto falta] só da mulher quando tá na rua, é ruim ficar sem ela aqui, ela cuida das coisas. (G4)
E a questão é assim: eu prefiro tá aqui mil vezes, mil vezes, do que tá trabalhando na rua. O único problema é que talvez você fica meio longe da sua mulher, da sua família, mas questão de sofrimento, cê tá doido, um serviço desse aqui é [...] um cara trabalhando num frigorífico... um serviço desse aqui é dez vezes melhor que um cara trabalhar num frigorífico, aqui não é judiado, aqui olhando assim pode ser meio feio e tal, ver os paus assim e tal, mas é um serviço tranquilo. (G6)
Além desse aspecto, a atividade garimpeira pode causar danos diretamente à saúde desses trabalhadores, mesmo já possuindo algumas práticas de autocuidado. Todavia, tais práticas nem sempre ocorrem de modo a antecipar os agravos e zelar pela proteção do sujeito, especialmente pela frequente exigência do contato direto e constante com a água. Essa condição é inerente da garimpagem, podendo facilitar o contágio de doenças de veiculação hídrica.
[...] você fica nessas águas velhas podres aí. Que a água não é bom [...] nesse barro aí que pode dar “roe roe”. (G4)
[...] mas não é um serviço perigoso, um serviço [...] é um serviço sofrido porque o cara trabalha mexendo com contato da água direto né. (G5)
Autocuidado do garimpeiro em relação à saúde
As ações desenvolvidas no cuidado à saúde no contexto do garimpo revelam a necessidade de atividades de educação em saúde, logo o planejamento de estratégias voltadas a promoção do autocuidado. Entre os garimpeiros, observa-se a restrição do autocuidado à medicalização ou em métodos empíricos aprendidos no grupo.
Não tem umas coisas específica não, não tenho nada de específico não, normal mesmo, não tem nada. Na doença nós toma algum remédio, faz alguma coisa, algum colega nos ensina algo. (G1)
Rapaz, nós não faz nada não, só fica aí. Esperar acontecer alguma coisa, não sabe o dia de amanhã pra prevenir[...] tinha um velhinho que até óleo queimado passou na perna por causa disso [roe roe], parecia que corroía, parecia que o dedo ia cair. Eles passavam um monte de pomada, um monte de coisa que ele é muito corrosivo. (G4)
Essa atividade extrativista predominantemente diurna e em ambiente aberto expõe o trabalhador aos intensos raios solares, conduzindo-o ao processo de adesão de algumas práticas de cuidado.
Protegendo do sol, se cuidar pra não machucar com alguma coisa, ver se está bem. Fazer alguma força, ver que não está aguentando e está sentindo alguma dor ver o que é. Uma boa alimentação no horário certo, se a pessoa não se alimentar não tem força, uma pessoa que às vezes se alimenta demais, pode se prejudicar. (G2)
Me protegendo do sol, com camisa de manga comprida [...] mas não faço nada mais que isso [...]. (G3)
Eu passo um protetor solar, certo, eu tomo antes de sair de casa um copo de café com leite. O sol na hora que dá uma esquentadinha eu já bato um jato, já jogo uma aguinha em mim. Então eu cuido da minha saúde, eu cuido assim [...] é claro que não é [...] meu serviço aqui não é igual um cara que fica dentro de um mercado o dia todo, né? Na sombra. A gente trabalha no sol, mas eu não tenho o que reclamar. Não é porque você tá fazendo pesquisa não, eu não tenho o que reclamar. (G6)
Nesse ínterim, a corresponsabilização em saúde observada em algumas narrativas expõe à participação ativa do garimpeiro no seu processo saúde-doença, reconhecendo a importância da avaliação contínua do seu estado de saúde, visto que, a investigação de fatores de risco, histórico clínico pessoal e familiar de patologias e a realização periódica de exames, são imprescindíveis para o diagnóstico precoce de doenças na fase assintomática.
Eu faço todo ano, todo ano eu faço um checkup geral, de ano em ano eu faço um checkup geral. O cara tem que cuidar da saúde né, por exemplo: tem que tentar, eu faço de tudo até exame de coração, de tudo, então você tem que fazer um checkup pra você tentar ver, o que está acontecendo né. Eu no dia a dia eu cuido da minha saúde normal, igual uma pessoa normal mesmo, não tem muito o que fazer né, entendeu? Você tem que se evitar, porque eu trabalho com máquina [serviço pesado] tem que se alimentar na hora certa, [...] mas não dá muita diferença de uma vida normal não. (G5)
Essa daí eu não sei te explicar não. Vai de cada pessoa, porque tem gente que já vem desde que nasce tem um problema então não tem como cuidar, mas tem que preservar né. Eu não sou de fazer nada de diferente, eu me sinto bem, me sinto com a saúde, de modo geral a maioria das pessoas da minha idade reclama de tudo, dor para tudo e eu não sinto nada. (G7)
Eu tomo muito líquido, muito chá de folhas, assim que é bom! Pra limpar né! É isso aí. (G3)
Porém, diante do adoecimento, apesar de existir adesão de chás e ervas pelos garimpeiros do estudo, estes recorrem à assistência na Estratégia Saúde da Família (ESF) no distrito mais próximo do garimpo ou no hospital da cidade, quando há risco de complicação.
Quando “nóis” adoece o patrão leva “nóis”, sente alguma coisa né. Faz algum corte algum tipo de coisa ele pega e leva “nóis” e vai pro hospital. Normalmente quando é mais grave. (G1)
Vou pra cidade! Depende da situação, alguém leva. (G2)
Vamos para o hospital e o postinho de Riachuelo [distrito próximo]. (G4)
Eu vou lá no postinho lá, em Riachuelo, só se for urgente mesmo. (G6)
Outro fator que leva a dificuldade no uso e acesso aos serviços públicos de saúde é a demora no atendimento. Esse cenário conduz alguns garimpeiros a optarem pela assistência privada, por vislumbrarem maior celeridade no cuidado que buscam.
Eu geralmente pago, particular. Até então hoje se você for por exemplo: a minha mulher tem três meses que foi pra ver uma radiografia, ela saiu agora! Se tivesse de morrer, tá aí né. Então, temos que fazer dinheiro de alguma forma. (G5)
Prefiro o particular. No postinho eu pedi um exame tem [...] vai fazer um ano e agora que eu consegui pra semana que vem, então assim se for caso de uma prevenção ou for uma causa de você vai morrer, você morre antes de chegar lá, porque a doença não espera o homem né. Quando é uma prevenção é uma prevenção né, estou aguardando um ano. No caso o mais grave ninguém consegue esperar não. (G7)
Discussão
Os participantes apresentam uma ponderação entre sofrimentos e dificuldades vividas, o que parece determinar a continuidade no garimpo. A opção por este trabalho ainda se ancora em baixas condições econômicas, bem como em escolaridade reduzida dos familiares e dos próprios trabalhadores. Esses fatores refletem na auto percepção do garimpeiro que assente a profissão com pouco prestígio social. Para o garimpeiro, a atividade extrativista é um ofício laborioso e que não constitui a princípio o que almejava para seu futuro, mas se concretiza ao longo dos anos, em razão dos benefícios que essa atividade produz, como o retorno financeiro rápido e práticas laborais relativamente simples.
Entre coletivos de garimpeiros, a escolha por essa profissão vai além da não exigência de muitas qualificações ou complementação de renda. Essa escolha também é influenciada pela tradição familiar e pela existência de outros membros da família em atuação na atividade garimpeira. (14), (15
A família tem um papel importante no que se diz respeito à definição da profissão dos seus integrantes, uma vez que, o envolvimento parental aliado ao grau de escolaridade, impacta positivamente no prosseguimento dos estudos e melhor preparo para o ingresso no mercado de trabalho16. Estudo realizado em Porto Alegre (RS) aponta que famílias com nível socioeconômico e cultural elevado encaminhavam e incentivavam seus sucessores para o ensino superior, a fim de manter o status social construído ou a sustentação do poder. Já os indivíduos procedentes de núcleos familiares menos favorecidos elegeram profissões com menor crédito popular, como único meio para obtenção dos recursos essenciais às necessidades humanas básicas. (17
A manutenção do garimpeiro no serviço ocorre também por meio de uma segurança elementar (extração abundante do mineral), porém quando o garimpeiro não consegue ter uma produtividade mínima, o seu ganho fica comprometido, repercutindo em seu meio social. (11 Embora o garimpeiro possa permanecer inserido no ciclo produtivo como peça meramente extratora, que mesmo na presença do mineral, comercializa-o para as beneficiadoras em valores que normalmente só cobrem suas despesas domésticas pontuais. (18
Dessa forma, a atividade laboral externa ao garimpo, desempenhada pelas companheiras ou outros familiares dos garimpeiros, em determinadas ocasiões, constituem a principal fonte de recursos disponíveis para a família, seja na eventual ausência do minério ou no esperado período chuvoso, em que a atividade garimpeira se reduz.15 Esse cenário influencia a autonomia a segurança familiar do homem, visto que se torna dependente da figura feminina, o que impacta negativamente na sua percepção de provedor do lar, além da percepção de que a atividade por ele desempenhada não supre as necessidades de sua família. (19), (20
Em relação à questão financeira, verificou-se em estudo realizado em Rondônia (BR) que a maioria desses trabalhadores complementam a renda do garimpo com outras atividades, geralmente a agricultura, porém alguns acabam preferindo somente a garimpagem como principal atividade socioeconômica.20 Pesquisa realizada em Humaitá (AM), indica que o extrativismo mineral permanece atraindo pessoas, pois apresenta-se como um grande imaginário de produção de riqueza, sem custos para si (trabalhador) e com possibilidade de célere ascensão social, ainda que demande esforços diferentes quando comparado a outras atividades.2
Esse cotidiano e as relações de trabalho entre os garimpeiros aumentam as tensões e os conflitos no garimpo, mas ao mesmo tempo, o próprio caráter da atividade supõe alto grau de cooperação, tanto no processo de trabalho, quanto na cumplicidade tácita ao se contrastar com outras categorias profissionais. (21
Assim, para o exercício das atividades no garimpo é imprescindível que seja trabalhado a coletividade entre os garimpeiros em todos os aspectos e que exista certos padrões de comportamento social. Da maneira como são estabelecidos esses padrões podem emergir desigualdades, poder e organização22 E no momento em que há o entendimento para tais substancialidades do garimpeiro, o processo de trabalho tende a tornar-se mais exequível, harmonioso e menos duro.
Apesar disso, diferentemente do presente estudo, na maioria dos garimpos o que predomina são condições precárias e degradantes de trabalho, moradia, alimentação e restrição de recursos, como energia elétrica, celular e internet, além do risco para o adoecimento. (23), (24 Sem esses recursos, somado à monotonia das atividades no garimpo, com poucos momentos de lazer, o garimpeiro assume uma rotina voltada maciçamente ao extrativismo, trabalhando vários turnos seguidos, mas não acreditando que isso lhe traga prejuízos, e sim que esta dedicação seja lucrativa. (25
Percebe-se então, que as vivências na atividade garimpeira propiciam condições de vulnerabilidade ampliada ao garimpeiro. No entanto, a atual conjuntura do garimpo do estudo, permite a suavização dessa percepção, pois o acesso aos serviços básicos comuns a todos, tende a gerar a possibilidade de promoção de práticas de um tipo de autocuidado baseado nas relações do grupo e de cultura peculiar que solidifica uma forma de organização dinâmica e específica de desenvolvimento. Essa cultura arquiteta as relações de trabalho, as formas de gestão e recrutamento, os direitos e deveres dos trabalhadores, a divisão do produto extraído, os direitos de exploração de uma determinada área, entre outras normas contratuais pactuadas.21
Nesta perspectiva, os acordos e pactuações que o coletivo firma para o desenvolvimento das atividades garimpeiras influencia tanto o relacionamento interpessoal quanto o desempenho do autocuidado, ao possibilitar a preservação de hábitos de vida mais adequados, jornada compatível com a condição humana e alimentação satisfatória. Entre esses aspectos, alguns pesquisadores apontam a alimentação satisfatória como elemento nuclear para o sucesso do autocuidado. (26
Ainda assim, ter uma boa alimentação não garante a performance de todas as funções exigidas para a plenitude da saúde desse trabalhador. Portanto, a disponibilidade de tempo, disposição para atividades extra garimpeira, sono preservado e a proximidade dos familiares podem minimizar outros déficits. (27
No garimpo, normalmente há o distanciamento da família, mas este fator não se constitui impeditivo para o exercício dessa atividade. Contudo, ainda que os garimpeiros sinalizem a importância de suas companheiras no garimpo, estudo aponta que historicamente a figura feminina nesse ambiente sempre foi estereotipada e sua presença ameaçava o bom funcionamento das atividades mineradoras, pois eram consideradas como elementos desviantes da atenção do trabalhador27, porém no presente estudo, a presença das mulheres no garimpo parece encorajar e dar equilíbrio emocional ao garimpeiro.
Ao levar em consideração a dimensão emocional que permeia as relações íntimas e familiares, o garimpeiro se vê muitas vezes sozinho e dependente do afeto/cuidado da companheira em seu cotidiano, já que essas relações, para serem efetivas se baseiam primordialmente na presença, construção e manutenção de vínculos, e na atividade garimpeira o núcleo familiar normalmente é apartado.24, (28
Desse modo, a influência da família no processo saúde-doença do indivíduo e seu distanciamento reforça a vulnerabilidade dos garimpeiros quanto à manifestação de sintomas psicoemocionais, o que constitui importante fator estressor na rotina desses trabalhadores. (29 Essa realidade interfere na força dos laços de conjugalidade, por impor limitações às relações, com encontros não periódicos. (30
Nas narrativas também observa-se que o contato direto e prolongado com a água é visto pelos garimpeiros como uma situação que predispõe o acometimento por doenças e leva ao surgimento de lesões. Em contrapartida, a utilização de EPI não foi evidenciada como meio para evitar ou mesmo minimizar os prejuízos destes riscos.
Sob o mesmo ponto de vista, as águas onde os garimpeiros desenvolvem suas atividades podem conter grande quantidade de detritos da própria mineração, além de carregarem resíduos que se acumulam ao longo dos leitos dos rios e córregos e configuram agentes potenciais para contaminação, já que consomem da mesma fonte de água, sem o devido tratamento. (31 Ademais, os períodos chuvosos podem ainda dificultar o trabalho dos garimpeiros, por tornar o ambiente mais escorregadio e aumentar os riscos de AT.15
Essas condições levam ao surgimento de enfermidades. As infecções fúngicas por exemplo, possuem grande relação com o trabalho no garimpo, com maior prevalência entre os homens, uma vez que elas acometem pessoas que desenvolvem atividades com maior contato com a água e que usam constantemente sapatos fechados. Assim, algumas regiões do corpo, como mãos, pernas e pés ficam expostos à umidade, partículas tóxicas de minério ou produtos químicos, exposição aos traumas e ao risco de desenvolvimento de infecções. (32), (33
Nesse sentido, fatores relacionados ao sistema imunológico, fatores geográficos, variações climáticas regionais como o clima tropical úmido característico de Rondônia (BR) e o próprio ambiente extrativista mineral, possuem características que contribuem para a propagação dessas infecções.33
Conforme as narrativas, as ações curativas são fortemente priorizadas pelos garimpeiros, utilizando a automedicação para reversão de agravos já instalados. Por outro lado, o pouco conhecimento sobre suas condições de vulnerabilidade, influencia na ausência de autocuidado, e consequentemente pela falta de orientações adequadas há comportamentos de risco com possível adoecimento. (34
As questões logísticas e a ineficiência de recursos da maioria dos garimpos também reforçam a vulnerabilidade desse trabalhador, condicionando à realização de práticas de cuidado pouco seguras. E ao agir mediante suas próprias concepções de saúde-doença, esses garimpeiros reafirmam suas fortalezas, mas subestimam alguns riscos ambientais, até por não conhecê-los em sua totalidade.3
Os garimpeiros do estudo têm ciência de que a garimpagem os expõe a maiores riscos do que outras atividades. No entanto, acreditam que as medidas já incorporadas no cotidiano do trabalho, como por exemplo, utilização de roupas e protetor solar são suficientes para prevenção de danos da radiação solar. Todavia, ao serem questionados sobre esses cuidados, identificaram-se conhecimentos superficiais, quer seja sobre o tipo de pele que possuem como em relação aos produtos que utilizam, a durabilidade da proteção, número de aplicações e as precauções necessárias quando em contato com a água.
As questões climáticas apresentam-se como agravante nesse cenário, visto que o clima de Rondônia, na qual o garimpo está localizado, é majoritariamente quente e úmido35, o que favorece o acometimento por patologias tropicais relacionadas à própria exposição solar, como queimaduras, intermação, problemas de visão, melasma, queratose, envelhecimento precoce e câncer de pele. (36
O câncer de pele por sua vez, é uma neoplasia maligna, que depois de seu acometimento, o autocuidado perde sua eficácia, mas torna-se indispensável para o controle da disseminação, dada a agressividade que pode se apresentar.36 Entretanto, a assistência do profissional de saúde que deveria existir in loco (no garimpo) e intervir de forma imediata não há, reafirmando a importância das práticas de autocuidado pelo garimpeiro.24
Outros aspectos não identificados nas narrativas desses garimpeiros se refere aos riscos coletivos, tais como a possibilidade de desmoronamento, problemas relacionado à ingesta de água contaminada, doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho (DORT), problemas auditivos devido ao barulho constante de máquinas e motores, doenças respiratórias e fadiga muscular. (37), (38
Esses garimpeiros realizam exames para a avaliação do seu estado de saúde, mas as ações de prevenção são poucas. Acreditam que sua atividade implica em riscos semelhantes aos demais profissionais, e por tal não se veem obrigados a realizar ações diferenciadas. Neste sentido, a adoção de um estilo de vida com poucos hábitos adequados, ou mesmo a não adoção de atividades preventivas, favorece o surgimento de morbidades e interrompe a atividade garimpeira, ou na possibilidade de cronificação do adoecimento sem intervenção, vai ceifando progressivamente a vida do garimpeiro. (39), (40
A partir das narrativas, verifica-se que a busca por cuidados de saúde pelos garimpeiros ocorre geralmente em situações que representem maior gravidade, já que o deslocamento até o serviço especializado nem sempre é fácil, especialmente por depender de favores de terceiros para conduzi-los até o serviço de referência.
Essa busca por assistência de saúde nos serviços públicos, sofre ainda a influência da acessibilidade geográfica41. E por vezes, esses sujeitos por não conhecerem a dinâmica da rede de atenção dos serviços de saúde optam pelos hospitais como primeira escolha. (42
Não obstante, esses trabalhadores por estarem longe das cidades, possuem menos acesso a oportunidades de serviços públicos e recursos. (43 Diante desses obstáculos, há redução da procura pelo serviço de saúde, logo recebem assistência com periodicidade insuficiente para atender suas demandas.41
É importante ressaltar que a população masculina de forma geral, possui mais comportamentos de riscos do que às mulheres, seja por questões culturais, estereótipos de gênero ou ainda pela interpretação de que se preocupar com a saúde ou recuperá-la está relacionada a sinal de fragilidade. Todavia, esse descuido com a saúde, leva a diagnósticos tardios e aumento de internações hospitalares pelo agravamento da condição inicial. (44)- (46
Essa problemática, identificada desde o trabalho de Sales em 1955, o qual apontava às dificuldades vivenciadas pelo garimpeiro não refletiu até o momento em desvencilhamento das vulnerabilidades em saúde, em especial quanto ao impacto desse trabalho na redução dos anos de vida do trabalhador. Talvez, a dificuldade em intervir nesse contexto seja pelos modos de vida desses sujeitos, que confundem/misturam a cultura historicamente estabelecida no trabalho garimpeiro com as condições que assumem, ou ainda por constituírem grupos inferiorizados em extinção em face das ondas modernizadoras no país e, em particular, na região amazônica. (47
As causas apontadas pela vulnerabilização dos garimpeiros vão além, repousando, entre outros fatores, na pouca eficiência governamental em assisti-los ou mesmo em cooperativá-los, ou seja, nos processos incapazes de transformá-los em extratores formais e legais, com capital suficiente para cuidar de si e de sua família.47
Em 2014, esforços tanto governamentais como de grupos de movimentos sociais tiveram como produto final a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta (PNSIPCF), porém esta não conseguiu modificar as situações de abandono e problemas de saúde dessas populações vulneráveis48. Assim, nota-se, que a existência de políticas públicas direcionadas a esses trabalhadores, de forma direta (Estatuto do Garimpeiro) e/ou indireta (PNSIPCF) levando em consideração o contexto ao qual estão inseridos, que deveriam garantir melhores condições de vida, saúde e acesso aos serviços públicos, ainda apresentam-se distantes frente ao compromisso com a integralidade das ações em saúde e na redução de desigualdades sociais que definem o grau de vulnerabilidade do garimpeiro.
Concluções
As percepções dos garimpeiros em relação a sua atividade se traduzem em um trabalho árduo, mas que traz recompensa financeira; razão principal da permanência na atividade. O estudo evidenciou que as próprias características da atividade garimpeira podem expor o garimpeiro a situação de maior vulnerabilidade, com implicações na saúde. Essa condição é agravada pelo déficit de conhecimentos sobre fatores de risco, como o contato direto e prolongado com a água, exposição solar e inutilização de EPI.
Apesar dos riscos desse trabalho extrativista, os garimpeiros não exercem práticas integrais de autocuidado, mas em contrapartida, realizam exames periodicamente. Aderem à automedicação, bem como valorizam o serviço privado de saúde. E por não possuírem assistência à saúde ou intervenção profissional in loco, no garimpo, ficam susceptíveis a orientações pouco seguras partilhadas entre os pares, muitas vezes, reproduzindo comportamentos que naturalizam os riscos.
Entre as limitações do estudo, destaca-se a utilização de apenas uma modalidade de garimpo o que impede a generalização dos achados. Diante disso, novos estudos devem ser realizados a fim de ampliar a identificação de outras situações que podem comprometer a saúde dessa população. Além disso, espera-se com esse estudo contribuir com a lacuna de conhecimentos existentes sobre as vulnerabilidades e experiências desse coletivo, bem como propor discussões sobre estratégias para a efetivação da assistência à saúde, melhores condições de vida e fomento do desenvolvimento humano