Introdução
No ano de 2015 foram registrados cerca de 1,4 milhões de mortes e 10,4 milhões de casos novos de Tuberculose (TB) em todo o planeta, motivo pelo qual se contribuiu para considerá-la como um importante problema de saúde pública.1 No Brasil, sua incidência, apesar de ter apresentado reduções ao longo dos anos de 2007 e 2016, de 37,9 para 32,4, respectivamente, ainda encontra-se distante do desejado (menos de 10 casos para cada 100 mil habitantes)2.
Diante dos problemas causados por essa doença, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e vários países se uniram através da criação da Estratégia Global pelo Fim da TB com diretrizes mundiais para seu enfrentamento até o ano de 2035. Para isso, são requeridas à elaboração de medidas constantes para seu controle, o fortalecimento das políticas públicas de saúde, o aprimoramento dos sistemas de informação, gestão e o aperfeiçoamento dos recursos humanos2,3.
Incorporado pelo Ministério da Saúde do Brasil, o Plano Nacional para o Fim da Tuberculose como Problema de Saúde Pública no Brasil define metas e objetivos para que, até o ano de 2035, exista redução na incidência para 10 casos a cada 100 mil habitantes e redução na mortalidade em 95%2,4.
Para atingir estas metas torna-se imprescindível a atuação das equipes de profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS), arranjo organizacional importante na efetivação do controle da doença. Isto é possível mediante a proposta de descentralização das ações de controle da doença para este nível de atenção e do atendimento horizontal as pessoas com TB5.
Espera-se que a participação dos profissionais da APS junto às pessoas com TB aconteça por meio de uma assistência efetiva e de qualidade. Isso torna-se possível quando as atividades são executadas a partir das necessidades da comunidade ao adequar os serviços de saúde à realidade local e trabalhar por meio de parcerias junto aos demais setores e organizações sociais2,6.
Faz-se necessário identificar a capacidade de oferta e execução dos serviços de APS às pessoas com TB para conhecer às necessidades concernentes a este processo e assim propor medidas que busquem e colaborem com o aprimoramento da atenção à saúde desta população.
Espera-se que o presente estudo contribua com a reorganização da APS na atenção às pessoas com TB ao apresentar informações que podem ajudar a repensar e reestruturar a assistência às pessoas com esta patologia. Por isso, o objetivo desta pesquisa é identificar a capacidade de oferta e execução dos serviços de APS às pessoas com tuberculose em município do nordeste brasileiro.
Materiais e métodos
Para responder ao objetivo propôs-se a realização de estudo de abordagem quantitativa e corte transversal.
O cenário de realização da pesquisa foi o Município de Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil. Seus serviços de saúde encontram-se organizados em cinco distritos sanitários: Sul, Leste, Oeste, Norte I e Norte II e a APS tem suas Unidades de Saúde (US) classificadas em Unidades de Saúde da Família (USF), quando possui adscrição dos pacientes, Unidades Básicas de Saúde (UBS), quando o atendimento é realizado mediante demanda espontânea ou programática e não há adscrição dos pacientes e Unidade Mista (UM), quando há atendimento programático ou não com unidade de internação.
A população foi constituída por 384 profissionais de saúde, a saber: médico, enfermeiro, auxiliar ou técnico em enfermagem e Agente Comunitário de Saúde (ACS). A amostra foi obtida aleatoriamente obedecendo a ordem de um profissional por categoria em cada US. O critério de inclusão foi ter acompanhado pessoas com TB e o critério de exclusão foi estar afastado das atividades profissionais no momento de coleta de dados, totalizando uma amostra mínima de 100 participantes, onde considerou-se um erro amostral de 5%, intervalo de confiança de 95% e proporção populacional de 0,5.
A coleta de dados ocorreu entre os meses de novembro de 2013 e janeiro de 2014 em 32 US, sendo 23 USF, 8 UBS e 1 UM. 32 profissionais recusaram participar da pesquisa (17 médicos, um enfermeiro, 12 técnicos ou auxiliares de enfermagem e dois ACS) os quais foram substituídos. Utilizou-se um questionário estruturado desenvolvido por MacColl Institute for Healthcare Innovation para avaliação da capacidade institucional em atender às condições crônicas, o qual foi adaptado e validado para atenção à TB na realidade brasileira pelo Grupo de Estudos Epidemiológicos e Operacionais da Rede Brasileira de Pesquisa em Tuberculose. Este instrumento é composto por sete dimensões e seus indicadores correspondentes7.
Para este estudo foram selecionados os indicadores que expressam a capacidade de oferta e execução dos serviços de APS as pessoas com TB, quais sejam: metas pactuadas e registradas pela US para o controle de TB na área de abrangência, as quais se referem ao atendimento e acompanhamento dos casos; interesse da gestão da US em promover mudanças na atenção às pessoas com TB; priorização da melhoria da assistência à pessoa com TB por parte da gestão da US; registros relacionados ao apoio dos profissionais da US para as pessoas com TB cuidarem da própria saúde e; trabalho em equipe para o controle de TB.
A análise dos dados foi realizada no programa estatístico IBM SPSS Statistics em sua versão 22.0 utilizando a estatística descritiva em números absolutos e relativos por meio de tabela. As respostas foram classificadas em quatro níveis a partir das pontuações obtidas. O nível D (0 a 2) correspondente ao mais desfavorável, níveis C (3 a 5) e B (6 a 8) sendo os intermediários e o nível A (9 a 11) sendo o mais favorável. A partir dessas pontuações foi possível classificar a capacidade de atenção às pessoas com TB em limitada (nível D), básica (nível C), razoável (nível B) e ótima (nível A).
A pesquisa respeitou os princípios éticos preconizados na resolução 466 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde e foi apreciada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte onde recebeu parecer favorável à sua execução de número 456.332. Os participantes foram orientandos quanto os possíveis riscos aos quais estavam submetidos e informados sobre a necessidade de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em caso de aceitarem participar da pesquisa.
Resultados
Dentre os 100 profissionais de APS que participaram da pesquisa, 9 (9,0%) eram médicos, 35 (35,0%) enfermeiros, 22 (22,0%) auxiliares ou técnicos em enfermagem, 34 (34,0%) ACS. 80 (80,0%) dos participantes exerciam suas atividades profissionais em USF, 18 (18,0%) em UBS e dois (2,0%) em UM.
A caracterização da capacidade de oferta e execução dos serviços de APS às pessoas com TB no município está apresentada na Tabela 1.
Indicadores | 74.Capacidade | 75. 76. 77.|||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Limitada | 78.Básica | 79.Razoável | 80.Ótima | 81.Total 82. | 83. 84. 85.||||||
n | 86.% | 87.n | 88.% | 89.n | 90.% | 91.n | 92.% | 93.n | 94.% | 95. 96.|
Metas pactuadas e registradas pela US para o controle de TB na área de abrangência | 97.43 | 98.43,0 | 99.33 | 100.33,0 | 101.16 | 102.16,0 | 103.8 | 104.8,0 | 105.100 | 106.100,0 | 107. 108.
Interesse da gestão da US em promover mudanças na atenção às pessoas com TB | 109.42 | 110.42,0 | 111.38 | 112.38,0 | 113.8 | 114.8,0 | 115.12 | 116.12,0 | 117.100 | 118.100,0 | 119. 120.
Priorização da melhoria da assistência à pessoa com TB por parte da gestão da US | 121.25 | 122.25,0 | 123.60 | 124.60,0 | 125.6 | 126.6,0 | 127.9 | 128.9,0 | 129.100 | 130.100,0 | 131. 132.
Registros relacionados ao apoio dos profissionais da US para as pessoas com TB cuidarem da própria saúde | 133.56 | 134.56,0 | 135.15 | 136.15,0 | 137.28 | 138.28,0 | 139.1 | 140.1,0 | 141.100 | 142.100,0 | 143. 144.
Trabalho em equipe para o controle da TB | 145.26 | 146.26,0 | 147.34 | 148.34,0 | 149.27 | 150.27,0 | 151.13 | 152.13,0 | 153.100 | 154.100,0 |
Fonte: dados da pesquisa, 2013-2014.
O indicador metas pactuadas e registradas pela US para o controle de TB na área de abrangência obteve capacidade limitada .43,0% dos participantes ressaltaram que os registros não estão disponíveis para as equipes de saúde.
O indicador interesse da gestão da US em promover mudanças na atenção às pessoas com TB obteve capacidade limitada (42,0%), o que ressalta a não existência ou pouco interesse por parte do gerente da US em fazê-lo.
Recebeu classificação básica (60,0%) o indicador referente à priorização da melhoria da assistência à pessoa com TB por parte da gestão da US. Isto ressalta que não há preocupação por parte da equipe e da gestão em promover a melhoria dos serviços de atenção às pessoas com TB.
O indicador registros relacionados ao apoio dos profissionais da US para as pessoas com TB cuidarem da própria saúde foi caracterizado com capacidade básica (56,0%) o que mostra que não há sua realização no contexto de realização da pesquisa.
A capacidade dos profissionais em desenvolver o trabalho em equipe para o controle da TB foi caracterizada como básica (34,0%) indicando que o trabalho é realizado pelos profissionais de enfermagem e ACS de forma desarticulada da equipe multiprofissional.
Discussão
Os resultados do presente estudo mostram uma predominância da classificação mais desfavorável em todos os itens analisados. Isso reflete a necessidade de maior compreensão sobre a capacidade dos profissionais e da gestão da APS para lidarem com a execução e oferta dos serviços às pessoas com TB.
Tratando-se de que as metas da US terem apresentado capacidade limitada ou básica, observa-se à necessidade da elaboração e de estarem bem definidas, que envolvam a qualificação dos serviços básicos de saúde e capacitação dos recursos humanos para as atividades de vigilância, avaliação e controle, de modo que ampliem a capacidade de diagnóstico e promovam a cura da doença8.
Observa-se que a maior parte dos profissionais da APS não têm acesso as metas que são pactuadas no Município de Natal. Porém, torna-se necessário a elaboração de metas capazes de atingir o controle da doença a nível local, e estabelecer mecanismos permanentes de vigilância e controle da TB. As metas devem estar disponíveis no serviço local para serem discutidas pelas equipes de saúde e estratégias devem ser delineadas, para atingir os objetivos preconizados, de acordo com o perfil de cada área adscrita9.
Ressalta-se também a importância da participação do gerente da US no controle da TB contribuindo com o incentivo na realização de capacitações contínuas nos serviços de saúde para a atuação eficaz dos recursos humanos. No entanto, o que se observou nos dados desse estudo foi uma participação da gestão classificada como limitada ou básica, tanto no que se refere ao interesse dos gestores quanto na priorização de melhorias nesses serviços. Isso pode comprometer à qualidade dos serviços prestados aos pacientes com TB já que a maioria dos profissionais apontam que os gerentes demonstram pouco interesse em cumprir integralmente as metas e recomendações estabelecidas.
Ponto importante no fortalecimento da APS, porta de entrada para a atenção a TB, é a necessidade da atuação comprometida, ética e humana, não apenas dos profissionais de saúde, como também por parte dos gerentes das US. Tal atuação é útil na elaboração de estratégias que busquem garantir o cuidado integral e humanizado para a população dentro de sua área de abrangência com medidas, além de estabelecer vínculo entre essa população e os profissionais de saúde10.
Assim, no planejamento dos serviços e ações devem ser considerados não apenas o quantitativo de indivíduos acometidos com a doença em determinado território, mas a situação de vulnerabilidade social, preconceito e outras dificuldades que essas pessoas podem estar vivenciando11.
Compreende-se que na organização da assistência a TB na APS, as ações de prevenção, promoção e reabilitação são fundamentais para o controle da doença. Por meio destas ações é possível realizar a detecção dos sintomáticos respiratórios e o diagnóstico precoce dos casos de TB12.
Observou-se que grande parte da gerência das unidades de saúde têm dificuldade em priorizar o diagnóstico precoce de TB na comunidade. Tal fato pode estar relacionado ao despreparo dos gerentes em relação às atividades que devem ser ofertadas pelo serviço, como também a falta de articulação com a equipe de saúde, o apoio apenas às atividades realizadas dentro das unidades de saúde, dentre outros fatores.
No estudo verificou-se que o despreparo da equipe de saúde em reconhecer os sintomáticos respiratórios, constitui-se um dos principais fatores no atraso do diagnóstico de TB, sendo o gestor da unidade de saúde um elemento importante para fortalecer a organização do serviço voltado à pessoa doente ou exposta à doença.13 Tal fato corrobora com as descobertas desta pesquisa.
Destarte, nesse processo de assistência, é importante também pensar em estratégias que busquem o envolvimento de gerentes, equipe de saúde, pacientes e familiares para o êxito do tratamento. A capacitação dos profissionais e a promoção da educação em saúde para os pacientes permite o estímulo para o desenvolvimento do autocuidado, e esse estímulo por parte dos profissionais de saúde não deve se resumir a apenas fixar cartazes e distribuir panfletos14.
O paciente em tratamento precisa compreender a doença, a conduta terapêutica adotada e assim estar ciente de seu papel diante desse processo15. A maioria dos profissionais que participou deste estudo, não relatou preocupação com medidas que estimulem o autocuidado dos pacientes em tratamento de TB, o que dificulta essa percepção do usuário de que ele é o autor principal e responsável no seu cuidado.
Outro ponto importante é a análise que se refere à organização do trabalho, onde durante a coleta de dados, foi visto que ocorre de maneira fragmentada, onde as atividades são restritas à determinadas categorias profissionais. Este fato foi também identificado em estudo que apontou fragmentação das atividades entre os profissionais, dificuldades em lidar com as pessoas com TB, assim como no manejo clínico16.
Torna-se indispensável que cada profissional esteja atuante no desenvolvimento de estratégias preconizadas, permitindo a descentralização de ações e um cuidado integral às pessoas com TB17.
Alguns fatores podem dificultar a execução do trabalho em equipe, como o espaço físico das unidades que interferem a realização de ações educativas em saúde, a falta de empenho, compromisso e envolvimento dos profissionais, dentre outros. A falta de envolvimento por parte dos profissionais dificulta a busca dos sintomáticos respiratórios, faz com que os sintomas da TB passem despercebidos e não se tenha o controle da doença5.
Assim, percebe-se como o planejamento da equipe é decisivo para o doente seguir ou não o tratamento. Compartilhar conhecimentos e ações entre os profissionais faz toda a diferença na obtenção do diagnóstico precoce e da cura.
Compreende-se que o controle da doença ainda é um problema a ser solucionado, necessitando planejamento de ações organizativas dos serviços de saúde na busca de sintomáticos respiratórios para minimizar a contaminação dos contatos e priorizar o início imediato do tratamento. Além disso, o suporte dado a esse tratamento deve ser ampliado além da oferta de medicamentos18.
Com isso, reforça-se à necessidade de utilizar medidas que intensifiquem a qualificação dos profissionais da APS de maneira a propiciar o conhecimento e a capacidade para atuarem mediante o diagnóstico precoce da doença19.
Como limitação do estudo, destaca-se a diferença do quantitativo de profissionais por categoria profissional, o que impossibilita fazer inferência à população por categorias.
Conclusão
Observou-se que a oferta e execução dos serviços de APS às pessoas com TB no município apresentam capacidades limitada e básica, o que corresponde às situações mais desfavoráveis. Isso pôde ser observado nos indicadores elegidos para análise, tais como metas pactuadas e registradas pela US para o controle de TB na área de abrangência, interesse por parte da gestão da US em promover mudanças na atenção às pessoas com TB e registros relacionados ao apoio dos profissionais da US para as pessoas com TB cuidarem da própria saúde, onde prevaleceram a classificação limitada. Ou ainda nos itens que tiveram classificação básica: priorização da melhoria da assistência à pessoa com TB por parte da gestão da US e trabalho em equipe para o controle da TB.
Ressalta-se a falta de interesse dos gerentes das US em cumprir as metas de atendimento às pessoas com TB, assim como, um desalinhamento entre os membros das equipes e das gestões em buscarem as metas de atendimento e acompanhamento dos casos que podem ter influência, tanto da falta de incentivo, como de desconhecimento das necessidades de saúde.
Evidencia-se à necessidade da organização dos serviços e capacitação dos profissionais da APS para um maior êxito nas ações de busca ativa, diagnóstico precoce, acolhimento e tratamento das pessoas com a doença.
Declaração de conflito de interesses
Os autores declaram não haver quaisquer tipos de conflito de interesse.