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Actualidades Investigativas en Educación

On-line version ISSN 1409-4703Print version ISSN 1409-4703

Rev. Actual. Investig. Educ vol.23 n.1 San José Jan./Apr. 2023

http://dx.doi.org/10.15517/aie.v23i1.51532 

Artículos

Um estágio supervisionado que articula ensino-aprendizagem e pesquisa: Sentidos, relações e significados mobilizados por um estudante de Física no Brasil

Una práctica supervisada que articula enseñanza-aprendizaje e investigación: Sentidos, relaciones y significados elaborados por un estudiante de Física en Brasil

A supervised internship that articulates teaching-learning and research: Senses, relationships, and meanings mobilized by a physics student in Brazil

1Doutoranda em educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Brasil. Docente da educação básica de ensino, licenciada em Ciências da Natureza com Habilitação em Física, mestre em educação e pela mesma universidade. Dirección electrónica: karstenkarine@ufpr.br ORCID https://orcid.org/0000-0002-0337-488X2

2Docente na Universidade Federal do Paraná (UFPR), no programa de Pós-Graduação em Educação, Curitiba, Brasil. Licenciada em Física (UFPR), Mestre, Doutora e Pós-doutorado em Educação pela Universidade São Paulo (USP). Dirección electrónica: ivanilda@ufpr.brORCID https://orcid.org/0000-0002-7277-3198

Resumo

No sentido de defender a importância da formação de docentes em perspectivas críticas e transformadoras, relatamos neste artigo uma pesquisa que objetivou compreender os instrumentos que potencializam essa formação. Com uma abordagem qualitativa e uma a metodologia de estudo de caso, analisamos como e quais sentidos foram construídos por um estudante da licenciatura em Física, durante a realização de seu estágio de formação docente. Identificamos os instrumentos que influenciaram o discente na atribuição de sentidos que o aproximavam de um intelectual transformador. A pesquisa foi desenvolvida em uma universidade pública, na cidade de Curitiba, no Brasil, nos anos de 2019 e 2020. Os procedimentos empíricos utilizados foram: observações participantes, anotações das pesquisadoras, análise de documentos produzidos pelo estudante durante seu estágio, questionários e entrevistas semiestruturadas. Analisando os sentidos mobilizados, observou-se a importância dos seguintes instrumentos: diferentes formas de sistematização das vivências do estagiário; realização de uma prática de docência coletiva, dialógica e com autonomia; articulação entre ensino e pesquisa na atuação docente; e valorização do professor supervisor no processo de orientação do estágio. Concluímos que o ensino atrelado à pesquisa, com um acentuado cuidado para as relações entre os sujeitos no estágio, intensifica os conhecimentos sobre o processo de ensino e aprendizagem. Com esses instrumentos destacados, torna-se possível repensar a organização das atividades de estágio, buscando desenvolver ações intencionalmente condizentes com a proposta de formação de docentes com sentidos potencialmente críticos e transformadores.

Palavras-chave formação de professores; estratégias pedagógicas; ensino da física; prática pedagógica

Resumen

Para defender la importancia de la formación docente desde perspectivas críticas y transformadoras, reportamos en este artículo una investigación que tuvo como objetivo comprender los instrumentos que potencian esa formación. Con un enfoque cualitativo y una metodología de estudio de casos, analizamos cómo y qué sentidos fueron construidos por un estudiante de grado en Física, durante su pasantía docente. Identificamos los instrumentos que influyeron en el estudiante en la atribución de sentidos que lo acercaron a un intelectual transformador. La investigación se llevó a cabo en una universidad pública de la ciudad de Curitiba, Brasil, en los años 2019 y 2020. Los procedimientos empíricos utilizados fueron: observaciones participantes, notas de las investigadoras, análisis de documentos producidos por el estudiante durante su pasantía, cuestionarios y entrevistas semiestructuradas. Al analizar los sentidos elaborados, se observó la importancia de los siguientes instrumentos: diferentes formas de sistematizar las experiencias del pasante; realizar una práctica docente colectiva, dialógica y autónoma; articulación entre docencia e investigación en la actividad docente; y la valoración del profesor supervisor en el proceso de orientación de pasantía. Concluimos que la enseñanza vinculada a la investigación, con un fuerte cuidado de las relaciones entre los sujetos en la pasantía, intensifica los conocimientos sobre el proceso de enseñanza y aprendizaje. Con estos instrumentos destacados, es posible repensar la organización de las actividades de pasantía, buscando desarrollar acciones intencionalmente coherentes con la propuesta de formación docente con sentidos potencialmente críticos y transformadores.

Palabras clave formación docente; estrategias de enseñanza; enseñanza de la física; práctica pedagógica

Abstract

In order to defend the importance of teacher training from critical and transformative perspectives, we report in this article a research that aimed to understand the instruments that enhance such training. With a qualitative approach and a case study methodology, we analyzed how and which senses were constructed by a Physics undergraduate student during his teaching internship. We identified the instruments that influenced the student in the attribution of senses that brought him closer to being a transforming intellectual. The research was carried out at a public university in the city of Curitiba, Brazil, in the years 2019 and 2020. The empirical procedures used were: participant observations, researchers' notes, analysis of documents produced by the student during his internship, questionnaires, and semi-structured interviews. By analyzing the mobilized senses, we observed the importance of the following instruments: different ways of systematizing the intern's experiences; carrying out a collective, dialogic and autonomous teaching practice; articulation between teaching and research in teaching practices; and valuing the supervising teacher in the internship guidance process. We concluded that teaching linked to research, with strong care for the relationships between subjects in the internship, intensifies knowledge about the teaching and learning process. With these instruments highlighted, it becomes possible to rethink the organization of internship activities, seeking to develop actions that are intentionally consistent with the teacher training proposal with potentially critical and transforming senses.

Keywords teacher training; teaching strategies; physics education; teaching practice

1. Introdução

As ações educacionais necessitam ser construídas e reconstruídas a cada novo cenário educativo. Como a sociedade está em constantes mudanças e instabilidades, estaremos sempre em crise para encontrar os melhores caminhos que direcionam a educação mais assertiva para o bem-estar social comum. A crise nos força a reanalisar as questões existentes, e nos coloca em posição de propor respostas; porém, tende a se torna mais desastroso o cenário quando nos propomos a responder com ideias prontas, que carregam em si preconceitos e falta de embasamento teórico (Arendt, 1961).

É diante da crise que vivemos e de nossa necessidade para novos direcionamentos na formação de docentes que este artigo, como um recorte de uma pesquisa maior de dissertação, traz a análise dos sentidos atribuídos à docência durante a prática de docência na formação inicial de um professor de Física. O objetivo deste artigo foi analisar e identificar como as ações durante os estágios obrigatórios do tipo investigativo potencializam a formação de sentidos sobre a docência em um futuro professor de física, na perspectiva de intelectual transformador, à luz da concepção de intelectuais (Giroux, 1992).

Essa investigação possibilita que, uma vez identificados os aspectos influenciadores na atribuição de sentidos, seja possível repensar a organização desta disciplina, para que tenhamos ações mais assertivas e condizentes à proposta de formação de docentes dentro à qual nos alinhamos e percebemos como adequada para uma educação que vise o bem-estar social comum.

Focamos, especificamente, em duas unidades curriculares de um curso de licenciatura em Física: Prática de Docência em Ensino de Física 1 (PDEF1) e Prática de Docência em Ensino de Física 2 (PDEF2). Estas unidades curriculares foram escolhidas porque nelas são desenvolvidas as atividades de estágios de docência do curso, e assim, por entendermos que: a) nelas se intensificam as relações entre teoria e prática; b) neste momento a(o) estagiária(o) depara-se com sua futura área de trabalho, não mais no papel de estudante e sim de docente; c) neste processo possibilita-se aos estudantes uma auto-análise que qualifica as expectativas iniciais da profissão, lhes permitindo avaliar se prosseguem investindo ou não nesse percurso; e d) neste momento que se intensifica uma ponte de relacionamentos entre a escola e a universidade.

O estudo sobre o estágio tem se consolidado como um campo importante dentro da formação de docentes e é focalizado em diversos trabalhos, tal como o de Medeiros (2014), que fez um estado da arte do período de 1987 a 2012. Esta autora encontrou 77 teses e dissertações relativas ao estágio e, dentre várias conclusões, ela indica a necessidade de instrumentalizar futuros docentes a questionar a prática, enfatizando a produção de conhecimento a partir dela, algo que defendemos ser possibilitado pelo estágio investigativo, a depender da lente teórica que guia o estágio. Tal necessidade vai ao encontro do estudo proposto por este trabalho pois, para instrumentalizar os estudantes, é necessário compreender o que está, potencialmente, a mobilizá-los(las).

Mello (2015), por sua vez, fez um levantamento das concepções de estágio presentes em artigos de revistas da área da Educação e Educação em Ciências até o ano 2014. De 52 artigos analisados, 34 abordavam uma concepção de aproximação da realidade, 11, uma concepção de estágio como pesquisa, 1 de imitação de Modelos, 2 com instrumentalização técnica e em 4, não se aplicava essa análise (Pimenta e Lima, 2012). Outro estudo, de López e Nardi (2017), fez uma análise de 30 artigos sobre estágio, extraídos de eventos acadêmicos brasileiros da área de Educação em Ciências. Os autores os classificaram em três categorias: Estágio com Pesquisa, Estágio como contexto de aplicação de pesquisa na universidade e Estágio como contexto de aplicação de pesquisa na escola. Em seus resultados, obtiveram dez trabalhos sobre o estágio com pesquisa, sendo o segundo entre os mais citados. Ou seja, tanto o trabalho de López e Nardi (2017), quanto o de Mello (2015), apresentam uma tendência de trabalhos de estágio que buscam atrelar a docência à pesquisa.

Especificamente adentrando nos estudos de um estágio com pesquisa, Rabelo et al. (2021) focalizaram a atividade docente, analisando as transformações dos sentidos de um licenciando na atividade de um estágio supervisionado com pesquisa. Eles chegaram à conclusão de que para o licenciando, inicialmente o estágio era apenas mais uma etapa para a conclusão da graduação, e sua visão de educação se aproximava de uma transmissiva/receptiva. Porém, os motivos que impulsionavam o sujeito a desenvolver as atividades de estágio foram aumentando e se complexificando ao entrar em contato com a escola e a pesquisa, aproximando o sujeito da elaboração de sentidos mais próximos da perspectiva dialógica/reflexiva.

Entendemos que o trabalho, aqui apresentado, faz parte de uma rede de outros que analisam e observam a potencialidade de aprendizagem da docência no estágio com pesquisa e que é importante questionar e investigar quais sentidos estão sendo mobilizados em atividades de docência investigativa. Nossa pesquisa pretende avançar apontando, ainda, os instrumentos mobilizadores dos sentidos em um estágio com pesquisa, articulando-os com a reflexão à luz da categoria de intelectuais de Giroux (1992) e os potencializadores destes instrumentos utilizados.

O trabalho faz parte de uma investigação desenvolvida no âmbito do Programa Ciência na Escola, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no Brasil.

2. Referencial teórico: os diferentes estágios e os intelectuais

Giroux (1992) é um pedagogo, crítico cultural e estudioso que colabora para refletirmos sobre a finalidade das ações que desenvolvemos na formação de docentes. Sua base é derivada de Gramsci (1982), que compreende as pessoas trabalhadoras como intelectuais orgânicos, que podem ou não agir desta forma. Tais intelectuais, em seus campos, criam formas de homogeneidade e consciência da própria função nos campos econômico, social e político. Assim, optar por essa lente teórica permite olhar para a profissão docente como um lugar de luta de classe, de ideologias, de consciência do que a profissão tem de status, o que ela é, e o que deveria ser.

Com essa base, Giroux (1992) propõe quatro tipos de intelectuais que permeiam o agir docente, que não são fixos e se interconectam. São eles: a) o intelectual crítico - é o sujeito que em sua profissão percebe as ideologias e fonte dos problemas, porém, apenas as critica, sem tentar modificá-las; o indivíduo separar o que desenvolve em sala de aula dos problemas educacionais; b) o intelectual adaptado - é o indivíduo que em sua atuação profissional aceita o que existe como pronto e acabado, segue o que aprendeu que deve ser feito, sem perceber a sua própria posição ideológica e a dos demais; c) o intelectual hegemônico - é o sujeito que percebe as desigualdades e ideologias existentes em seu contexto, porém, trabalha conscientemente em prol delas, ou seja, compactua com a meritocracia, defende provas e meios de diferenciar os estudantes, legitimando as classes dominantes por acreditar na superioridade delas e d) o intelectual transformador, que será discutido no parágrafo a seguir.

O intelectual transformador é apresentado pelo autor como o sujeito que busca constantemente o emprego do discurso autocrítico – tanto para a construção de si mesmo, quanto para dos demais indivíduos que convivem na sociedade. A principal função do intelectual transformador é desenvolver um estreitamento entre a dimensão pedagógica e política, tornando o pedagógico mais político e o político mais pedagógico. Ou seja, compreende-se o processo escolar como um espaço de disputas por significados e aos estudantes atribui-se o papel de agentes analistas, que problematizam aquilo que lhes é apresentado. Nessa visão, o(a) docente está auxiliando/guiando um projeto amplo, contra as injustiças sociais. Para tanto, é necessário propostas de ensino que considerem aos estudantes em todas as suas dimensões (Milani, 2021). As dimensões constituintes dos(as) discentes aqui consideradas, baseado em Milani (2021), são: a) a cognitiva, relativa concepções sobre fenômenos, conceitos científicos, lugares ou objetos; b) socioeconômica, voltada para o trabalho em geral, como empregos e técnicas, a família; c) cultural, relacionada aos hábitos e motivações, como formas de se vestir e interesses, questões espirituais, saberes e produções tradicionais; e d) ambiental, tocante ao meio urbano e/ou de infraestrutura da comunidade, tais como oferta de água e de iluminação pública, por exemplo. Milani (2021) propôs tais dimensões constituintes das(os) estudantes a partir da perspectiva histórico-cultural e segundo este autor, são dimensões a serem consideradas em ações docentes em modelos críticos de formação de professores. É importante considerar essas dimensões, pois, a formação de docentes ancorada em um viés do Intelectual Transformador objetiva a transformação do meio social onde se atua, mas, para isso é necessário um amplo conhecimento sobre esse contexto.

Entendemos que as atividades de estágio na formação docente podem ocorrer com diferentes perspectivas de implementação, que podem colaborar mais, ou menos, para a formação do intelectual transformador. Pimenta e Lima (2012), por exemplo, propuseram quatro grandes categorias nas quais discutem as diferentes visões existentes sobre a docência e sinalizam como as concepções de prática influenciam diretamente as variadas configurações de estágio. Essas categorias foram denominadas e são descritas pelas autoras como: a) prática como imitação de modelos – forma na qual o sujeito inicialmente observa o contexto e depois copia os modelos do que ocorre nesse lugar com o intuito de “aprender”; essa é uma fase importante, porém, o estágio, se concebido desta forma, pode se limitar à repetição de modelos; b) prática como instrumentalização técnica - nessa vertente a utilização de técnicas para execução de aulas é vista como o suficiente para um bom ensino; c) estágio como aproximação da realidade e atividade teórica - se constitui de reflexões intencionais que ocorrem coletivamente a partir da realidade; e d) estágio como pesquisa e pesquisa no estágio - busca a consciência em suas ações, com tentativas de colaborar e modificar a realidade encontrada, de forma que o sujeito está em uma constante pesquisa sobre a própria prática, compreendendo-se como um agente também político.

Pimenta e Lima (2012) defendem essa última categoria supracitada, pois nesse modelo o eixo formativo do estágio é a pesquisa, o que amplia as concepções sobre esse espaço e o processo de ensino e aprendizagem. Além disso, é nesta última perspectiva de estágio que encontramos mais elementos que tencionam a formação de um intelectual do tipo transformador, o que colabora para pensarmos nos instrumentos que potencializam a aprendizagem e que serão discutidos no tópico 2.2.

No entanto, não é qualquer pesquisa que teria esse potencial formativo. Diniz-Pereira (2017) afirma que o movimento dos(as) professores(as) como pesquisadores(as) pode ser uma nova forma de contra hegemonía, conforme apontado por Giroux (1997). Essa concepção começaria no final do século XIX e início do século XX, porém, inicialmente, o papel dos(as) docentes nas escolas era a de executar as propostas investigativas universitárias, e que forneciam os dados às pesquisas acadêmicas.

Durante os últimos 20 anos o número de pesquisas na área da educação de modo geral tem aumentado e se modificado muito em comparação às outras décadas (da quantitativa para a qualitativa e mista). Diante de tantas variedades para compreender fenômenos da sala de aula, a fim de melhorar a sua atuação como docente e lutar contra a hegemonia, Diniz-Pereira (2014) diferencia a pesquisa sobre e a pesquisa na formação de docentes, conforme pode ser observado na Tabela 1 a seguir.

Tabela 1 Brasil: Principais características da “pesquisa sobre formação docente” e da “pesquisa na formação docente”, 2014. 

Principais caraterísticas Pesquisasobre formação Pesquisana formação
Locais onde ocorre a pesquisa Nas universidades. Nas escolas apenas para fins de coleta de dados. Nas escolas e nas salas de aulas. Nas comunidades em torno das escolas.
Sujeitos da pesquisa Pesquisadores (em geral, professores universitários e/ou alunos dos programas de pós-graduação). Os próprios educadores. Envolvimento dos alunos e de pessoas da comunidade é algo desejável.
Objetos da pesquisa A formação docente. Políticas e programas de formação docente. Processos de se tornar professor e de aprender a ensinar. Compreender a própria prática com o propósito de transformá-la. Existe uma intencionalidade formativa explícita.
Objetivos Compreender como os sujeitos se tornam professores e os mecanismos de como aprendem a ensinar. Compreender a própria prática com o propósito de transformá-la. Existe uma intencionalidade formativa explícita.
Metodologias de pesquisa Quantitativas e/ou qualitativa, dependendo do objeto de pesquisa. Pesquisa-ação. Pesquisas do tipo “autoestudo”. Pesquisa coletiva e colaborativa.
Processo vs. Produto O processo é importante para a aprendizagem do pesquisador. Todavia, a ênfase é sobre o que o estudo traz de “novo” para o campo. O processo de investigação em si, porque formativo, é mais importante do que as “descobertas” que o estudo pode gerar.

Fonte: Diniz-Pereira (2014).

Percebe-se, pela Tabela 1, que ambas as pesquisas são importantes, porém, a que almejamos no estágio com pesquisa dos docentes em formação inicial é a pesquisa na formação. Diniz-Pereira (2014, 2017) afirma que os seguintes termos são comumente utilizados para se referir à pesquisa docente: “pesquisa-ação”, “investigação na ação”, “pesquisa colaborativa” e “práxis emancipatória”. Adotaremos o primeiro deles, entendendo o mesmo como um instrumento que une a pesquisa à ação ou à prática, sendo o termo “pesquisa-ação” um processo de aprendizagem teorizada, dialógica entre os pares, para todos os participantes, superando a separação entre sujeito e objeto de pesquisa e que gere sim, conhecimento.

2.1 Os sentidos, significados e instrumentos no estágio

Desde os primórdios de nossa existência, os instrumentos que acessamos, acidental ou intencionalmente, nos auxiliam a modificar o mundo e a nós mesmos. Os instrumentos caracterizam a atividade humana e sustentam a base da construção de novas relações. Ou seja, um instrumento é tudo o que contribui no desenvolvimento de algo para o ser humano; eles podem ser físicos (que ao serem utilizados transformam o ambiente) e psicológicos (signos ou sistemas de signos que formam um sistema convencional, como por exemplo a linguagem concreta, sistemas numéricos, imagens e gráficos, entre outros). A linguagem, portanto, é um instrumento; quando se mudam as relações sociais, muda-se o instrumento e a rede de comunicação que a envolve.

Os sujeitos se desenvolvem pelas interações e pelos trabalhos desenvolvidos (ambas atividades caracterizadas como instrumentos), utilizando nas ações psicológicas fundamentalmente o pensamento verbal, que pode ser percebido por nós de forma oral, escrita ou em expressões corporais. Stoltz (2011) explica que inicialmente o sujeito tem ações, que são interpretadas pelas pessoas de acordo com a cultura pré-existente. A partir dessa primeira interpretação, o indivíduo atribui significado às suas próprias ações e começa a desenvolver processos psicológicos internos.

A união entre o pensamento e a palavra em cada contexto é que gera o significado. Logo, os significados são compartilhados pelo grupo cultural e, por isso, o contexto se torna formativo (Stoltz, 2011). Os significados são construídos, complexificados e passados de gerações antigas a novas. Segundo Castro (2015), a escola é um sistema de atividade, com atores da comunidade escolar, regras e divisões de trabalho que as(os) estudantes precisam perceber e refletir com um olhar amplo, atribuindo significados à escola e sua ação.

Para criar uma marca individual de algo como seu, durante a vida, os indivíduos atribuem um determinado sentido aos significados. Portanto, o sentido é mais amplo que o significado, visto que abarca o significado.

O sentido é a soma de todos os acontecimentos individuais e psicológicos que os indivíduos estabelecem para algo. É fluido e dinâmico. O significado é uma das zonas do sentido, a zona mais estável e precisa. Uma palavra, por exemplo, tem o seu sentido no contexto em que surge; quando o contexto muda o seu sentido muda também. O significado não acompanha essas nuances do sentido (Vygotsky, 2005).

Os sentidos constituem uma rede dinâmica, pois, novos são construídos e ressignificados quando se interage com outros sujeitos. Dada a importância de investigar os sentidos mobilizados pelos(as) estudantes, Castro, Abib e Azevedo (2017, p. 2524) afirmam: “O estabelecimento desses sentidos na aprendizagem da docência, na relação com os significados sociais atribuídos ao ensino e a aprendizagem contribuem para a formação profissional”.

É preciso que os(as) estudantes avancem no significado e criem um sentido para o que lhes é ensinado. Quando não há esse avanço, mas sim uma manutenção do sujeito na compreensão somente do significado, ocorre apenas a memorização e memorizar não é o mesmo que se apropriar de algo (Stoltz, 2011).

Chamamos atenção para o fato de que há um motivo que impulsiona esse desenvolvimento de sentidos. Quando ignoramos as necessidades dos sujeitos e os incentivos que são eficazes para colocá-los em ação, não podemos entender seu avanço, porque esse movimento tem relação com a mudança de motivações, o que é culturalmente valorizado no contexto de desenvolvimento do sujeito(Vygotsky, 2005). Para apresentar como estudamos os sentidos de um estagiário, a seguir, descrevemos os aspectos metodológicos da investigação desenvolvida.

3. Metodologia

3.1 Enfoque

Esta pesquisa é considerada uma pesquisa qualitativa com base em Lüdke e André (1986) e é classificada como do tipo estudo de caso (Bogdan e Biklen, 1994) por se direcionar ao desenvolvimento de um estagiário da disciplina de estágio.

Esse tipo de pesquisa e enfoque é justificado pelas seguintes características: a) dados são construídos do ambiente natural em que ocorreu o processo de ensino e aprendizagem institucional; b) os acontecimentos foram descritivos; c) o processo de aprendizagem teve um valor maior que os produtos desenvolvidos nas disciplinas; d) os sentidos que as pessoas atribuíram às coisas e à sua vida foram alvos de compreensão; e e) as análises tenderam a incorporar uma parte indutiva (Lüdke e André, 1986).

3.2 Unidade de análise

O contexto da investigação são duas disciplinas nas quais são desenvolvidas as atividades de estágio de docência, num curso de licenciatura em Física do período noturno, na formação inicial de professores. Cada disciplina estudada possui sete horas aula semanais e 105 horas no total. A pesquisa foi desenvolvida na cidade de Curitiba, no Brasil, nos anos de 2019 e 2020.

Tomamos como unidade de análise as atividades de estágio de um licenciando em Física nas duas disciplinas mencionadas. Por atividades de estágio, entendemos o que é desenvolvido no contexto da escola campo de Educação Básica e as vivências do estagiário no âmbito das duas disciplinas.

Semanalmente ocorriam encontros de duas horas aula na universidade e o restante da carga horária (cinco horas aula) era reservada às atividades no campo de estágio (escolas da rede pública estadual de ensino). A cada semana a orientadora visitava uma das escolas campo, a fim de conversar com os(as) supervisores(as) e acompanhar aos estudantes em sala e fora dela. Assim, pelo menos uma vez por mês ela estava na escola de Educação Básica acompanhando aos estudantes, momento que foi acompanhado pela pesquisadora.

A turma foi dividida em três grupos de três pessoas e uma dupla. Solicitamos e tivemos acesso ao Termo de Consentimento Livre Esclarecido de todos, bem como da orientadora. Ou seja, a pesquisa envolveu um total de 9 estagiários e 2 estagiárias, porém neste artigo optamos por aprofundar as análises relacionadas a um dos estagiários, aqui denominado ficticiamente por Gil. O estagiário aqui analisado pertencia a um trio de meninos. Apesar da disciplina ser semestral, o planejamento dela é anual, sendo o segundo semestre uma continuação das atividades desenvolvidas no primeiro. As atividades eram organizadas, de uma forma geral, em: Diagnósticos, Monitoria e Docência com investigação. Porém, enquanto na PDEF1 o foco foi mais nos Diagnósticos e na Monitoria, sendo a Docência com investigação desenvolvida em forma exploratória, no segundo semestre a ênfase foi maior na docência com investigação e menos nos diagnósticos (no trabalho de Karsten (2020) é possível obter mais detalhes sobre as atividades desenvolvidas na PDEF1 e PDEF2).

3.3 Técnicas de coleta de dados

Neste contexto de pesquisa, os instrumentos empíricos empregados foram:

i) Observação participante – segundo Mónico et al. (2017), refere-se à imersão do sujeito investigador na vida da comunidade ou cultura, e no caso desta pesquisa, ocorreu em três espaços: a) na universidade em aulas semanais das disciplinas estudadas; b) nas escolas da Educação Básica, acompanhando as aulas ministradas pelos(as) estudantes; c) nas reuniões entre docente da escola de educação básica (supervisor(a)), a professora da universidade (orientadora, que é a professora responsável pelas disciplinas na universidade) e os(as) estudantes; e d) a apresentação de Gil e mais dois estagiários em um evento de pesquisa e extensão promovido pela universidade com o tema relacionado ao estágio;

ii) Questionários aplicados durante as disciplinas - compreendido aqui como instrumento composto por questões que são feitas e respondidas por escrito (Chaer et al., 2011);

iii) Entrevistas - compreendidas como uma conversa para obtenção de informações em que os gestos dos sujeitos também são considerados, compreensão essa consoante com a de Boni e Quaresma (2005). O tipo de entrevista que mais se apresentou pertinente para essa pesquisa combinava perguntas abertas e fechadas, em que o informante tem a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto, caracterizando-se, portanto, como uma entrevista semiestruturada;

iv) Documentos - compreendidos como todas as realizações materiais do estagiário, que podem revelar suas ideias, opiniões e formas de atuar e viver (Silva et al., 2009). Neste caso, foram analisados os seguintes documentos: a) texto sobre a motivação estudantil - no início da disciplina os(as) estudantes descreveram o que os motivava na disciplina; b) apresentações diagnósticas sobre a escola - os(as) estudantes deveriam produzir apresentações orais e relatórios sobre a cultura escolar do campo onde desenvolveu sua prática de docência; c) planos de aula - elaborados pelos estudantes de licenciatura com a descrição dos objetivos, conteúdos e metodologia das aulas implementadas na escola; d) Projeto de Docência e Investigação Didática (PDID), projeto que une pesquisa e docência, elaborado e desenvolvido pelos estudantes de licenciatura; e e) Cartas: produção textual propostas pela orientadora da disciplina, na qual as(os) estudantes deveriam escrever uma carta contando para outro colega como estava sendo a PDEF1. Estas cartas foram lidas pela orientadora da disciplina e pela pesquisadora mestranda, que construíram uma resposta à carta, encenando a postura dos destinatários descritos na carta, simulando um diálogo com o remetente e fazendo perguntas sobre questões não abordadas pelos remetentes. Os(as) estudantes, a partir do retorno do interlocutor, construíram mais uma resposta.

3.4 Análise dos dados

Todos(as) os(as) estudantes mobilizaram sentidos em torno de atividades em comum, ou seja, alguns instrumentos foram essenciais nessa desenvoltura. Portanto, dividimos e apresentamos as análises de Gil em nove tópicos, como eixos que caracterizam os principais instrumentos mobilizadores de motivações e sentidos (Vygotsky, 2005). São eles: 1) o perfil de Gil, da escola e do seu supervisor; 2) as suas expectativas nas disciplinas PDEF; 3) a organização de Gil para realizar a PDEF1 e a PDEF2; 4) o supervisor e a orientadora na formação de Gil; 5) as discussões em sala de aula e o trabalho coletivo; 6) atividade de observação: um longo período em um determinado contexto; 7) atividade de observação: o diário de bordo; 8) o planejamento das aulas; e 9) o projeto de ensino de pesquisa.

Dentro de cada um destes instrumentos supracitados, caracterizamos os motivos e motivações do estagiário e como a junção destes instrumentos mobilizavam o estagiário para a elaboração de sentidos. Ao final das análises sintetizamos as mesmas em uma tabela retomando quais instrumentos potencializaram a elaboração de sentidos que aproximavam Gil de um intelectual do tipo transformador.

4. Resultados e discussão

4.1 O perfil de Gil, da escola e do supervisor

Aos 21 anos, Gil trabalhava em uma indústria como técnico em eletrônica e ministrava treinamentos para os colaboradores. Seus colegas de trabalho recorriam a ele sempre que tinham dúvidas sobre algum equipamento ou seu funcionamento. A partir dessa experiência ele começou a perceber que gostava daquela atividade e que talvez, pudesse ser professor. Além da atividade como técnico, antes de iniciar a graduação Gil teve uma experiência de estar como professor ao ministrar aulas de violão, atividade que ele afirmou gostar de realizar.

Gil gostava de saber como e por que as coisas funcionavam e, portanto, a Física tornou-se uma área de muito interesse. Assim, o estudante optou por cursar licenciatura em Física a partir da associação entre seu gosto por ensinar seus colegas de trabalho e sua identificação com esta ciência (a Física).

Ter uma auto percepção de qual disciplina e profissão Gil gostava, é um indício de aproximação de um intelectual transformador, pois, com base nas reflexões sobre Giroux (1997), revela uma escolha profissional consciente.

Outra motivação comentada pelo estudante foi que ele era o único filho que estudou em escola privada, seus irmãos estudaram em escolas públicas. Ele acompanhava o desenvolvimento dos irmãos comparando aquilo que era estudado em ambos os colégios: o público e o privado. Nessa comparação, ele observava que muitas vezes o colégio público era mal visto, não por ter uma educação de má qualidade, mas sim pela questão social e política presente naquele contexto escolar, no qual havia um discurso de desvalorização da escola pública. Auxiliar a dar uma nova perspectiva para essa situação o motivou a querer ministrar aulas em colégios públicos. Tal motivação também é um indício de uma propensão do estagiário a um intelectual transformador (Giroux, 1997), afinal ele tenta modificar a compreensão política das pessoas acerca da escola pública, ou seja, ele via na profissão uma forma de lutar contra as injustiças sociais.

Suas experiências docentes durante o curso, antes das disciplinas PDEF, foram ministrando aulas particulares (a um público majoritariamente de Ensino Superior, em poucas ocasiões ele atendeu estudantes do Ensino Médio) e como bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). No momento da realização desta pesquisa, Gil tinha 25 anos.

Segundo Gil, a escola em que ele fez a PDEF1 e a PDEF2 era bem localizada, com fácil acesso por transporte público e outros meios de locomoção. De grande porte, tinha uma estrutura física bem conservada e com oferta de experiências diferenciadas aos estudantes. Nessa escola havia vários laboratórios para distintas disciplinas, sendo que os estagiários puderam trabalhar no laboratório de Física. As boas condições de trabalho, como as relatadas pelo estagiário, são um conjunto de instrumentos que tornam o ambiente propício para preocupações mais profundas sobre o desenvolvimento das(os) estudantes, potencializando o desenvolvimento de um perfil de um intelectual transformador, afinal questões sobre o que utilizar para ensinar emergeriam, porém quando se diminui a falta de possibilidades do que realizar, permite-se pensar em por que este material e não aquele, e para que utilizá-los. Além disso, “Os intelectuais transformadores podem fornecer a liderança moral, política e pedagógica para aqueles grupos que tomam por ponto de partida a análise crítica das condições de opressão” (Giroux, 1997 p. 187); e ter consciência das condições de trabalho faz parte do ponto de partida para que se construa uma percepção do que oprime ou propicia um bom desempenho de uma liderança.

Chamaremos fictíciamente o professor supervisor, que acompanhou Gil, de Ari. Ele é graduado em Física, com longa experiência no magistério naquela escola e tem título de especialista em Tecnologias Educacionais. Segundo relatou o estagiário, Ari é calmo e organizado; sua metodologia de ensino é muito plural, teórica e conceitual.

4.2 As expectativas na PDEF: construções e desconstruções

Gil é uma pessoa que participava ativamente das aulas e uma de suas formas de demonstrar entusiasmo era falar e escrever bastante. Quando foi solicitado, no primeiro dia de aula, que ele respondesse quais eram suas expectativas acerca da disciplina, ele trouxe o seguinte enunciado: “Acredito que seja algo mais próximo com a realidade em sala de aula, ter a vivência de um professor e saber organizar o trabalho na escola” (Gil, Questionário 1, março de 2020). A expressão destacada já apresenta a ideia de um aprofundamento sobre as questões relativas à atividade do professor, não separando um momento de “teoria” e “prática”, porém, ele não escreveu com a complexidade como costumava desenvolver suas ideias, dando indícios de que não estava tão entusiasmado.

Esse entusiasmo reduzido também aparece em suas falas sobre as pretensões futuras. Em suas palavras:

Sinceramente, tinha objetivo de fazer mestrado no ensino de Física, mas devido a realidade presente, onde estou há 2 anos procurando um estágio na área, apenas duas vagas foram disponibilizadas com um salário igual a bolsa do PIBID, penso em realizar a segunda graduação para obter um leque maior de possibilidades financeiras. (Gil, Questionário 1, março de 2020).

Giroux (1997) defende que professores articulem suas metas fins ao ato de educar com clareza, para que realmente possamos ter de forma explícita um projeto democrático. Porém, isso também depende das condições objetivas em que se constitui uma prática pedagógica. Gil, nos trechos supracitados, percebe a desvalorização financeira da profissão como um limitador para que ele possa atuar em um projeto de desmistificação da escola pública, como mencionado na sua opção por cursar uma licenciatura.

Ao longo da PDEF1, Gil foi ampliando sua visão e ficando entusiasmado com elementos que não previa para a disciplina. Por conta da forma que a disciplina foi sendo desenvolvida, Gil ressignificou sua percepção da docência, como podemos observar nos excertos de seu depoimento, a seguir: “O estágio me fez enxergar uma realidade diferente sobre ser professor e qual é nosso papel na escola, também me ajudou pessoalmente a ter mais ânimo em lecionar (...). Presenciei experiências novas e transformadoras, mesmo numa realidade difícil.” (Gil, Carta 2, julho de 2020).

Essa ressignificação da docência por meio da PDEF1 e PDEF2 deveu-se por alguns fatores principais, que tanto potencializaram a disciplina, como aproximaram o estagiário de um intelectual transformador. Estes elementos aparecem em diversos momentos de suas falas, de seus trabalhos escritos e serão apresentados e discutidos nos tópicos a seguir.

4.3 A organização do estagiário para realizar a PDEF1 e a PDEF2

Para que ocorresse uma ressignificação da docência necessitou-se de muita organização e comprometimento das pessoas envolvidas nas disciplinas de PDEF1 e PDEF2. Por isso, solicitamos na entrevista que o estagiário nos contasse um pouco sobre como ele se organizou para realizar o projeto de ensino e pesquisa. Destacamos na fala de Gil o ato de estar sempre se atualizando, ter materiais didáticos de ensino disponíveis e a interação com o grupo. Essa constatação pode ser observada no excerto a seguir:

Então, no começo do semestre a gente conseguiu se dedicar bastante a isso porque as disciplinas estavam se iniciando (...) Todo o tempo livre que eu tenho durante a semana, seja de manhã, à tarde, e à noite, quando volto da faculdade eu tento sempre efetuar uma leitura dos livros didáticos. Eu tenho bastante aqui em casa. Sempre também estar assistindo vídeos relacionados aos conteúdos e a metodologia que a gente tá usando né... para fazer o nosso projeto para sempre ter ideias, sempre estar por dentro das coisas né e poder criar perguntas, poder criar problematizações, situações. Por que preparar o documento em si, um plano de aula, o Projeto de Docência e Investigação Didática (PDID), é uma escrita mais técnica né, é uma escrita fluida que a gente fala, o difícil é você ter ideias né (...). Isso vai clareando e qualquer tempinho vago que eu consigo ir durante a semana, até mesmo no domingo, muitas vezes eu… eu escrevo isso na minha agendinha aqui ou no meu documento do word (DOC) que eu tenho e a gente já vai, entre aspas, prevendo no futuro. (Gil, Entrevista 1, novembro de 2020).

Essas atividades descritas como parte da rotina de Gil são elementos que defendemos quando falamos do intelectual transformador (Giroux, 1997), e docente pesquisador(a).

Giroux (1997) defende que observemos a atividade pedagógica como política e portanto pública, o que requer uma organização dos envolvidos nela a fim de que se possa elaborar sistematizações críticas para que seja possível reformular o trabalho com aportes teóricos. Gil interioriza um perfil transformador quando está disposto a ampliar sua visão de mundo e trabalhar conscientemente por um ideal que vai se construindo nesse processo. Ele não apenas aceita o que está dado, não apenas critica, mas vai além e se prepara para transformar o lugar onde atuará de forma organizada.

Essa postura é resultado do ideal de formação de Gil, do curso, e do instrumento de organização pré-estruturada das disciplinas PDEF1 e PDEF2. Os(as) estudantes já sabiam previamente o que seria solicitado no decorrer da disciplina. Por isso, podiam se organizar para atender as demandas. Como podemos observar na fala de Gil: “Conforme a orientadora vai pedindo pra gente as coisas, a gente já vai pegando desse repertório que a gente tem, já vai bolando as documentações, sabe, os planos de aula, os Projeto de Docência e Investigação Didática (PDID), os relatórios, tal.” (Gil, Entrevista 1, novembro de 2020).

As atividades de realizar um planejamento, de escrever reflexões, um relatório, um Projeto de Docência e Investigação Didática (PDID), foram organizando a sistematização de Gil, sendo tais atividades importantes no processo de construção do conhecimento. Relembramos que para Vygotsky (2012), o conhecimento do mundo surge pela proximidade cultural de interação, que traduzimos neste trabalho como ocorrendo pela relação do estagiário com: docentes e colegas, os processos de enunciação oral e escrita de textos, a leitura dialogada de textos, atividades nas quais se tende a ampliar o vocabulário e aprofundar as reflexões orais e interpretações das(os) estudantes. Essa forma de organização do estagiário amplia a possibilidade de alcance e desenvolvimento do mesmo como intelectual transformador (Giroux, 1997).

4.4 O supervisor e a orientadora na formação de Gil

Um dos aspetos que Gil chamou atenção no estágio, foi a liberdade e flexibilidade que lhes foram dadas para escolher como trabalhar os conteúdos nas aulas ministradas. Em suas palavras: “Minha maior alegria foi ver a empolgação de vocês quando mostramos os projetos para aplicar e principalmente o incentivo vindo por todos, em especial, do professor da escola, que aceita todos os desafios.” (Gil, Questionário 2, outubro de 2020).

Pela vontade do estagiário de trabalhar na realidade em que estava e modificá-la, a abertura e flexibilidade da orientadora e do supervisor às ideias de Gil se tornaram aspectos imprescindíveis para sua formação. Segundo Giroux (1997, p.160) as políticas tecnicistas “desempenham um papel cada vez maior na redução da autonomia do professor com respeito ao desenvolvimento e planejamento curricular e o julgamento e implementação de instrução em sala de aula”. Sendo assim a flexibilidade de ambos - a professora orientadora e professor supervisor - vai na contramão dessas políticas reducionistas do trabalho do professor, permitindo que o estagiário trouxesse sua bagagem de conhecimento para seu planejamento e ações, e aperfeiçoasse aquilo que ele desejava fazer, oferecendo condições para um ato criativo por parte dele. Além disso, se desejamos que docentes em formação inicial trabalhem em prol de cidadãos autônomos e reflexivos, essas características devem permear a sua própria formação, para que possa ser interiorizada como práxis.

Essa característica presente na orientadora e no supervisor, foi interiorizada por Gil. No último dia de aula de PDEF2, perguntamos aos estagiários: “Como vocês gostariam de ser, no papel de docentes, se fossem professores, desde o início do ano, das turmas de Ensino Médio que acompanharam durante o estágio?”. A resposta de Gil trouxe essa questão de valorizar o que o(a) estudante gosta, o que faz, o que é, e a flexibilidade de lidar com essas questões. O excerto a seguir traz indícios dessa compreensão:

Primeiramente eu quero ser um professor que entenda o que a turma precisa e gosta, e encaixe isso em um enfoque, apesar de eu gostar muito de Ciência Tecnologia e Sociedade (CTS), se eu ver que a minha turma, tende a gostar mais de, hum, História e Filosofia da Ciência (HFC), ou gostar mais de aplicações, ou da matematização... que eu consiga ter esse jogo de cintura, de me adaptar às inúmeras questões, por que às vezes o que acho que é legal, nem sempre é legal para eles... (Gil, Observação, dezembro de 2020).

Vygotsky (1982) aborda que na elaboração de sentidos, as relações sociais reguladoras externas são importantes e modeladoras. Porém, elas não podem cercear totalmente o sujeito impedindo que seus desejos internos existam. Há uma troca, uma negociação nesse processo. O respeito ao que o sujeito tem internalizado é valioso e a negociação entre o que precisa ser aprendido, realizado e seus desejos internos é o que permite aflorar a autonomia do sujeito e um sentido para além do significado, e que aproxima Gil de um intelectual transformador. Essa negociação não é somente entre o estagiário, as disciplinas de PDEF1 e 2 e o supervisor - ela ocorre também com relação aos educandos. O planejamento docente é elaborado na tentativa de articular em sala de aula o que se considera importante para as(os) estudantes aprenderem enquanto cidadãos e para a sociedade como um todo, por isso, nem sempre é possível propor atividades que agradem aos estudantes como um todo; quem necessita exercer seu conhecimento de mundo e habilidades pedagógicas para mediar essa relação é docente, no caso o estagiário, que poder ter essa escolha e faz parte do processo de geração de sentidos para a docência do licenciando.

Na entrevista que realizamos, o estagiário comenta mais sobre a importância da orientadora, enquanto nos documentos e questionários aparecem mais menções ao professor supervisor; porém, em todos os documentos e falas, ambos aparecem estimulando o estagiário a interiorizar reflexões e posturas. Para reforçar a atuação da flexibilidade da orientadora e da dialogicidade entre os sujeitos, trazemos o seguinte excerto:

Uma coisa muito legal da orientadora também, é que ela é muito adepta a novas ideias, a novos projetos. (...). Às vezes o projeto não tá bom, não tá tão legal assim, mas ela te incentiva, fala “não, mas segue por esse caminho, vai se você pensar dessa forma”, e ela vai te guiando. (Gil, Entrevista 1, novembro de 2020).

A forma como a orientadora guia os estudantes na prática de docência é intencional e flexível, a fim de promover aprendizagem e desenvolvimento. As atividades e etapas que ela propõe para que o estágio aconteça, também tem essa intencionalidade, portanto, chamamos atenção para alguns instrumentos no contexto da disciplina. Desse processo, pela fala de Gil, destacamos: a solicitação e apresentação da escrita de diários, cessão de tempo para realizar observações e diagnósticos acerca da escola e dos(as) estudantes antes de implementar uma proposta de ensino e pesquisa, proposição de textos e discussões em sala de aula, solicitação do planejamento e escrita de reflexões.

O professor supervisor Ari, por sua vez, agia como formador do estagiário. Ele sugeria atividades e abordagens antes e depois das aulas ministradas pelos estagiários na escola, a fim de aperfeiçoar a postura que eles estavam desenvolvendo. Logo, o processo dialógico defendido por Vygotsky (2012) e presente na defesa de um intelectual transformador de Giroux (1997), esteve presente em todo o processo da prática de docência. Nas palavras de Gil:

Um ponto extremamente positivo que devo destacar, foi que após todas as aulas ministradas, o professor mostrava suas anotações e debatia sobre como foi todo o desenvolvimento dela, sempre sugerindo melhorias pertinentes e dando conselhos preciosos para nossa evolução. (Gil, Reflexões Individuais, dezembro de 2020).

Ou seja, percebe-se que a potencialidade de formar um intelectual transformador aumenta quando já há docentes que trabalham dentro desta postura. Porém, houve limitadores, e um deles foi o tempo que o supervisor Ari dedicava para atender os estagiários e a orientadora, conforme se pode observar no extrato seguinte de Gil:

Na questão da relação com o professor, o único comentário “negativo” a se fazer, foi que enfrentei bastante dificuldade para manter diálogos e um contato mais contínuo fora da escola, devido ao seu tempo estar muito restrito e ocupado. Infelizmente esse fato prejudicou o desenvolvimento das atividades na escola. (Gil, Reflexões Individuais, dezembro de 2020).

Percebemos, pela fala do licenciando, que o professor não se negava a atender os estagiários, porém a quantidade de tarefas que ele tinha às vezes impedia um acompanhamento ainda mais próximo, como era desejado por este estagiário. Interações são importantes para aprender (Vygotsky, 2012), e manter essas relações de forma intensa no planejamento da organização dos trabalhos escolares é um dos elementos que constituem um intelectual transformador (Giroux, 1997). Esse aspecto é o que Gil busca quando cita essa fala supracitada.

Ari destinou um tempo às atividades da prática de docência que potencializaram as reflexões e novas aprendizagens de todos os envolvidos nesta disciplina (orientadora, estagiários, supervisor e estudantes); porém, a escola da Educação Básica não prevê um tempo para o atendimento desses estudantes e na carga horária do professor, não há uma remuneração a ele por esse trabalho adicional. Ademais, essa atividade também não é valorizada como pertencente ao plano de carreira do professor.

Assim, esse trabalho do supervisor, de suma importância para o desenvolvimento dos estagiários, foi voluntário. Sem políticas que valorizem essa ação, caímos no discurso da profissão ser executada apenas por amor. Estamos falando do desenvolvimento de docentes, onde é necessário estudar e ter ações intencionais para eles se desenvolverem. A falta dessa valorização diminui o potencial formativo da prática de docência, por diminuir o espaço dialógico, as interações, as trocas, as conversas e reflexões coletivas.

4.5 As discussões em sala de aula e o trabalho coletivo

As discussões que ocorreram em sala de aula na universidade e dentro do próprio trio de estagiários também ganharam importância na formação de Gil. Dentro do grupo eles conversavam entre si sobre as ideias que iriam propor. Quando traziam a proposta para a sala de aula na universidade, com um coletivo maior, discutiam novamente aquilo que eles estavam propondo. Por fim, quando se tratava de uma proposta de aula, após implementada, discutiam sobre os resultados esperados e obtidos.

Vygotsky (2012) defende que aprendemos por meio da interação com o outro. Com as teorias e atividades empíricas percebemos um potencial de aprendizagem maior pela participação do grupo nas atividades uns dos outros e o direcionamento da orientadora para que isso acontecesse. Nas palavras de Gil:

Eu gosto muito das discussões que a orientadora traz porque ela faz uma problematização, a gente debate, a gente cria textos, a gente bota muito cunho pessoal, a gente pega muito cunho metodológico, referenciais, então a discussão não é defasada, sabe. Por mais que às vezes tenha muitas ideias diferentes, a gente vê que não tá bagunçado. Ela consegue ter o controle da aula e sabe dar um foco e um objetivo para o que ela quer. (Gil, Entrevista 1, novembro de 2020).

O ato criativo existe a partir do que os sujeitos conhecem do mundo e de instrumentos para agir nele. Possibilitar discussões intencionais com novos olhares para um mesmo fenômeno propicia condições para os estagiários criarem. A percepção sobre discutir, conversar e pensar coletivamente foi tão importante para Gil que ele ampliou essa necessidade para toda a escola em que ele estava inserido. Por isso, uma de suas pretensões como futuro professor tornou-se conhecer e trabalhar em conjunto com colegas de trabalho. Nas palavras de Gil:

Eu estava relendo de volta aqui para fundamentar todas as coisas que eu já estudei durante as metodologias, mais para fundamentar melhor meus argumentos individuais, eles falam muito sobre os profissionais da educação em todos os âmbitos, não só escolar, serem mais unidos. As pessoas estarem mais juntas, né. (...). Para a gente ter uma harmonia dentro da escola, para a gente poder introduzir a sociedade na construção do currículo, que é bem da ideia de Paulo Freire. (Gil, Entrevista 1, novembro de 2020).

Pelo depoimento de Gil no excerto acima, observa-se que para a tomada de consciência acerca da importância da coletividade no trabalho docente, três aspectos foram importantes: o sujeito participar de uma coletividade, ler e escrever sobre ela. Assim, percebemos como o pensamento verbal traz consigo o pensamento individual e o social relatado por Vygotsky (2012). O individual esteve presente quando Gil vivenciava essa prática de docência ocorrendo numa perspectiva dialógica, e social quando ele lia e percebia outras pessoas falando sobre a importância das trocas de conhecimentos. A escrita, por sua vez, resultou de uma síntese do que ele compreendeu desse processo, algo que possibilitou uma representação geral mais abstrata da realidade, de diálogos e sua importância, o que caracterizou o ciclo da formação que o aproxima de um intelectual do tipo transformador, com base em Giroux (1997), ou seja, trabalhar em grupos de forma dialogada e com diversos instrumentos de síntese e discussão intensifica esse processo formativo.

4.6 Atividades de observação: um longo período em um determinado contexto

Ressaltamos a importância de ter tempo para realizar observações e diagnósticos da escola e estudantes, antes de propor e implementar uma proposta de ensino e pesquisa. Trazemos o seguinte excerto da fala de Gil:

Eu via a docência muito como uma relação extremamente profissional, sabe. Como se eu estivesse trabalhando na indústria igual eu era, de sei lá, cumprir meta, cumprir prazo, (...) e a gente às vezes esquece muito da relação professor espaço, relação professor aluno, que foi justamente o que a gente debateu no começo e que quando eu comecei a frequentar a escola, sem ter tantas obrigações para cumprir lá, fazer um projeto, alguma coisa eu consegui sentir melhor. Que a gente precisa ter uma relação com o aluno, a gente precisa identificar a realidade do aluno, conhecer o aluno, saber o nome dele, saber o que que ele gosta, é saber se ele vai chegar atrasado todo dia ou não chega. Esse tipo de situações eu nunca tinha vivenciado e isso fez eu mudar completamente a minha visão sobre a docência. Eu acredito que a docência só ocorre de uma maneira correta, de uma maneira ética, se você conseguir respeitar todas essas relações né. E daí eu consegui tirar um pouco essa visão tecnicista do professor e entender que o professor tem um papel mais fundamental ainda né. Além de só passar os conteúdos. Só não né, além de passar os conteúdos que ele precisa. (Gil, Entrevista 1, novembro de 2020).

No projeto de ensino e pesquisa proposto houve um espaço e um tempo prévio para os estagiários conhecerem a escola e seus sujeitos; caso não o tivessem, dificilmente se estabeleceria uma relação dialógica e sim uma necessidade de implementação tecnicista, assim como comentado por Gil. A partir dessa atividade, o estudante passou a desenvolver um olhar mais humano e consciente para as relações que deveria levar em conta no seu planejamento.

Com tal percepção, podemos associar a mudança de sentidos do estagiário, novamente, a uma aproximação de um intelectual transformador, como defendido por Giroux (1997), por ele considerar dimensões culturais estudantis, ou seja, pensar em aulas que estivessem relacionadas aos hábitos e gostos dos(as) estudantes, bem como aspectos socioeconômicos (Milani, 2021), tal como a postura de, nos dez minutos iniciais da primeira aula e nos últimos quinze minutos da última aula, fazer sempre uma revisão de conteúdo para respeitar estudantes que trabalhavam durante o dia e apresentavam necessidades mais específicas de horários de chegada e saída da escola. Como o estágio foi desenvolvido no período noturno, era comum estudantes da Educação Básica chegarem atrasados ao início (por conta de suas atividades profissionais durante o dia) ou saíssem mais cedo ao final do período escolar (por conta do transporte público).

Esse foi um dos exemplos de como a observação foi importante para o estagiário se desenvolver na prática de docência. O pensamento que forma sentidos e conceitos complexos constitui-se a partir de uma nova forma de atividade, ou seja, a observação foi a atividade, neste caso, que impulsionou o licenciando a gerar uma compreensão específica de como gerenciar sua prática. Cabe mencionar que a observação não foi sem objetivos, ao contrário, ela foi profunda, investigativa e intencional.

Argumentamos a favor de um tempo de observação na escola, porém, defendemos que seja uma ação não passiva, e sim com orientações do que o estudante pode analisar e como deve ou pode ser o filtro de seu olhar ao se inserir no contexto escolar. Afinal, através dessa atividade de observação Gil mobilizou muitos sentidos.

Quando indagamos como ele agiria se estivesse na postura de um professor da disciplina de PDEF1, ele defendeu, entre outras coisas, uma investigação inicial. Em suas palavras:

O que eu faria assim era, é… fazer com que cada aluno, cada um de nós ali criasse assim um questionário de fato pros alunos e até mesmo professores responder, cujo… com esse questionário a gente conseguisse absorver algumas informações pertinentes, do colégio, do espaço físico, do aluno (...) na faculdade que tem bastante gente com um grande grau de intelectual né pra gente identificar essas diferenças e como a gente agir com cada dificuldade que a gente possa vir a encontrar. Porque aquela coisa que vocês sempre falam, quanto mais a gente tem um planejamento, quanto mais a gente planeja, mas a gente sabe os possíveis problemas que podem acontecer (...). A gente conseguiu identificar peculiaridades que estão ajudando muito a sermos melhores professores (...), a gente criar discussões mesmo em sala de aula, se essa análise é pertinente ou não, qual que é o fundamento, tal, porque às vezes eu acho que a gente tem dificuldades de analisar resultados né, de corrigir uma prova. (...) quando a gente tenta fazer as coisas muito sozinho né, por conta própria, acaba sendo um trabalho árduo e difícil. Temos que aproveitar os momentos dos nossos encontros mesmos para debater, para um falar do projeto do outro, eu acho muito interessante isso. (Gil, Entrevista 1, novembro de 2020).

O questionário e as diversas formas do estagiário conhecer melhor aos estudantes com os quais trabalhava, sobre seus gostos, seus desejos e vontades, tornaram-se cruciais como ferramentas de investigação sobre sua prática. Portanto, compreendemos que essa ferramenta potencializou a prática de docência para a formação de intelectuais do tipo transformador (Giroux, 1997).

4.7 Atividade de observação: O diário de bordo

No início do semestre de PDEF1, uma das atividades realizadas foi a leitura e apresentação de dois artigos que abordavam a importância de realizar diários de bordo e formas de organizar os mesmos. Após as reflexões sobre essa forma de sistematizar os conhecimentos desenvolvidos nas observações da escola, a orientadora solicitou aos estudantes que desenvolvessem seus diários de bordo ao longo da disciplina.

Para Gil, essa atividade tornou-se significativa. Durante as aulas na universidade, o estagiário afirmava que anotava tudo o que observava na escola, pois não queria esquecer as relações que o professor estabelecia para explicar o conteúdo à sua classe de estudantes. Achava-as muito inteligentes e simples de compreender. Ele também comentou que utilizaria esse material quando fosse professor. Em suas palavras “O uso dos diários de classe foi de primordial importância para, além de relembrar os acontecimentos durante a aula, conseguir desenvolver uma análise mais específica sobre os acontecimentos.” (Gil, Relatório final de PDEF I, julho de 2020). Portanto, durante a prática de docência, foi importante apresentar ferramentas de organização própria para os estudantes de licenciatura, fornecendo alternativas para que eles sistematizassem esse conhecimento, a fim de aprender e ter mais condições de refletir acerca do que vivenciaram.

4.8 O planejamento das aulas

Em nossa entrevista, Gil comentou que tinha dificuldades em se expressar, por isso, realizar o planejamento das aulas a serem ministradas ajudou-o a identificar-se enquanto professor.

Durante o primeiro semestre, apesar de ter sido destinada uma aula para discutir a importância do planejamento, ofertando alguns exemplos de planos de aula, Gil e toda a turma realizaram essa atividade de maneira genérica, aquém da expectativa da orientadora e da pesquisadora. Gil e seu grupo, por exemplo, apenas citaram os objetivos da aula e mencionaram que utilizariam os Três Momentos Pedagógicos como metodologia, sem explicitar detalhes sobre o que abordariam em cada momento da aula, e de que forma tais aulas seriam desenvolvidas.

No decorrer do segundo semestre, os(as) estudantes começaram a detalhar um pouco mais seu planejamento. Associamos essa mudança de atitude a vários fatores: 1º destinamos uma das primeiras aulas para descrever, reforçar e discutir um bom planejamento; 2º as diferentes formas das escolas se organizarem quanto ao planejamento suscitou novas ideias aos estudantes (em uma das escolas, além da descrição das aulas, a professora supervisora solicitou que antes da ministração das aulas, houvesse uma esquematização, em uma folha à parte, de tudo o que pretendiam escrever no quadro de giz, de forma que poderia-se analisar posteriormente aspectos a serem aperfeiçoados); 3º alguns obstáculos enfrentados na sala de aula, no semestre anterior, poderiam ter sido contornados com o planejamento; e 4º o projeto de ensino e pesquisa demandava estratégias de ensino que possibilitasse construir dados para responder ao problema de pesquisa proposto. Essa mudança pôde ser observada no segundo semestre e é destacada no trecho a seguir, nas palavras de Gil:

Com certeza umas das coisas que eu vou levar é planejamento. (...) Quando eu planejei, busquei o referencial, fui atrás do tema, estruturei: o que eu ia pôr no quadro, o que eu não ia, que perguntas eu ia fazer. Isso me fez se tornar um professor 500% melhor. Inclusive, hoje eu me vejo como professor de fato. Eu não me via como professor. (...) Então, essa ideia do planejamento é muito importante. (Gil, Observação).

Com esse depoimento percebemos como as palavras, por meio do planejamento, passam a ser mais do que um meio de compreender as demais pessoas, tornando-se uma evolução também da autopercepção e auto-observação. O pensamento escrito tornou mais claras as ações do estagiário para ele mesmo, guiando-o, congruente à Vygotsky (2012), no sentido de uma relação entre a consciência, autoconsciência e o pensamento verbal das pessoas, presentes na elaboração de sentidos. Esses sentidos estão presentes no que defendemos como intelectual transformador de Giroux (1997), ou seja, os instrumentos de planejamento, dialogicidade e reforço da importância desse processo por parte da orientadora e uma das supervisoras daquela turma, são também propulsores que aproximam os sujeitos deste tipo de intelectual.

Gil comentou durante a entrevista que refletia enquanto estava escrevendo. Então, lhe foi perguntado: “mas, você ficou refletindo quando estava escrevendo o que?”. Nesse momento, o estagiário menciona um dos trabalhos solicitados pela orientadora, intitulado por ela de “Reflexões Individuais”. Quando indagamos se o estagiário pensaria desta forma se não precisasse dissertar sobre o que se passou na escola de forma textual, ele respondeu:

Acredito que não nesse nível de detalhe e compreensão. A escrita te obriga a fazer a análise mais completa dos artigos e textos usados. Para conseguir expressar como isso impactou na sua forma de fazer todo o processo didático, aulas, atividades, dia a dia. Quando eu não escrevo... vezes as coisas ficam muito vagas. Não que eu goste de escrever (risos). (Gil, Entrevista 1, novembro de 2020).

Diante da resposta de Gil, percebemos que para desenvolver atitudes congruentes à um intelectual transformador, é necessário haver uma assertividade na escolha de um instrumento de sistematização das vivências de PDEF1 e PDEF2, por meio da escrita reflexiva, com algum embasamento teórico sobre o processo de ensino, aprendizagem, funcionamento da escola e outros temas, e esse é um dos motivos que tornam o projeto de docência e pesquisa importante.

4.9 O Projeto de Ensino e Pesquisa

Como já comentado, o planejamento das aulas passou a ser mais estruturado com a necessidade da concomitância entre ensino e pesquisa. Nesse processo, Gil comenta que a maior dificuldade que ele sentiu foi identificar uma situação problema para adotar como objeto de estudo. Depois dessa etapa, a maior dificuldade foi desenvolver o projeto no tempo que eles tinham disponível. Essa etapa é muito difícil, pois ele e seu grupo precisavam produzir muito material, transformando assim a si e o seu meio.

A escolha do tema de ensino e pesquisa foi relacionada à Educação em Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS). Essa perspectiva educacional foi escolhida pelo grupo de Gil por vários motivos: 1º o professor supervisor trabalhou abordagens coerentes com esse embasamento teórico; 2º os licenciandos já haviam estudado esta abordagem em outra disciplina na universidade; e 3º adotar essa perspectiva educacional - CTS - permitiria e sugeriria que se considerasse os gostos e interesses estudantis, investigados na primeira atividade de observação e pesquisa da disciplina, ocasião em que os(as) estudantes apontaram ter interesse em entender o processo de geração de energia, um tema com amplas possibilidades de discussão nos âmbitos social, ambiental, tecnológico e científico. Deste 3º e último item, pode-se dizer que o estagiário, junto com seu grupo, de fato considerou das(os) estudantes: a dimensão ambiental, por nas aulas terem sido citadas questões da estrutura da cidade onde os estudantes moravam; a dimensão cognitiva, por ter sido trabalhado o conteúdo com base no que era conhecido destes(as) ou não, conceitualmente, fornecendo condições de desenvolvimento; e a dimensão cultural, por terem optado por utilizar mais o quadro de giz a fim de permitir que estudantes oriundas de outro país, que tinham menor domínio da língua portuguesa, pudessem copiar para rever e tentar entender os conteúdos em horários extra classe. O segundo e terceiro tópicos citados como motivação de Gil para desenvolver essa atividade, demonstram como sua ação e intenção o aproximam de um intelectual do tipo transformador (Giroux, 1997), uma vez que o instrumento de investigação utilizado na observação inicial sobre os alunos - o questionário -, foi utilizado no projeto de ensino e pesquisa, ao considerar as dimensões constituintes dos alunos (Milani, 2021), afinal é considerando essas dimensões que é possível transformar a realidade deste local.

Em relação a percepção de Gil quanto às relações existentes entre a pesquisa e o(a) docente do Ensino Médio, inicialmente, em PDEF1, Gil apresentava uma visão um pouco mais distante entre ambos. Em resposta à questão “Para você, qual é a relação entre o(a) professor(a) e a pesquisa?”, sua fala tinha o seguinte enunciado: “ele pode ser o motivador e orientador de uma pesquisa, realizar divulgação científica e orientador de uma pesquisa e ainda promover novos projetos” (Gil, Questionário 1, março de 2020).

Ao final do semestre, já em PDEF2, quando indagamos se ele mudaria a resposta dele à mesma questão, ele focou em docentes do Ensino Médio pesquisador. Em suas palavras:

É interessante o professor ser o agente da pesquisa e não um pesquisador externo que utiliza da aula do professor para fazer uma pesquisa. (...). A gente consegue ter uma representação da realidade de forma mais honesta e justa, identificando os problemas e procurando soluções. (Gil, Entrevista 1, novembro de 2020).

Percebemos que o discurso de Gil no início do estágio, em comparação com o final, apresenta uma mudança de percepção da relação entre docentes e pesquisa. Antes, o(a) docente como pesquisador(a) aparecia em segundo plano, como apenas mais uma possível atividade. Já em um momento posterior, em contato com a escola, ela aparece na prática de docência e a pesquisa na e com a escola ganha relevo, o estagiário assume que o(a) docente deveria ser o principal ator nesse processo de pesquisa na área de educação. Apesar dessa nova visão de um docente como construtor de conhecimento, e do seu desejo em sempre estar se atualizando, Gil comenta sobre a falta de incentivo que esses profissionais enfrentam para assumirem tal postura e levanta como empecilhos as condições de trabalho docente, o que concorda com um dos elementos mencionados por Giroux (1997, p.157-158) ao afirmar que: “é imperativo examinar as forças ideológicas e materiais que têm contribuído para o que desejo chamar de proletarização do trabalho docente, isto é, a tendência de reduzir os professores ao status de técnicos especializados(...)”. Junto a isso, durante o estágio, Gil tenta enfrentar e superar essas condições, o que condiz com o segundo elemento mencionado por Giroux (1997, p.157-158), que defende a necessidade de conceber as “escolas como instituições essenciais para a manutenção e desenvolvimento de uma democracia crítica, e também para a defesa dos professores como intelectuais transformadores que combinam a reflexão e prática acadêmica”. São elementos identificados nas ações de Gil, que o aproximam de um intelectual transformador.

4.10 Sistematização e Síntese: Instrumentos, motivos e sentidos mobilizados por Gil

Durante o texto fomos apontando os principais instrumentos, motivações e sentidos mobilizados por Gil ao longo das disciplinas. Sintetizamos o desenvolvimento do estagiário analisado na Tabela 2 a seguir. As descrições identificadas com um asterisco (*) são os sentidos que aproximam o estagiário de um intelectual do tipo transformador.

Tabela 2  Curitiba, Brasil: Resumo dos instrumentos, motivos e sentidos de Gil, 2020.  

Instrumentos: Aponta instrumentos que potencializam a prática de docência na formação inicial de docentes de Física. Motivação ou Motivo: Mostra como ocorrem as etapas da prática de docência e da construção dos projetos de ensino e de pesquisa na formação docente de Física durante as disciplinas. Sentidos: Identifica os sentidos que o estudante confere para cada atividade que tinha instrumentos específicos em sua base de atividade.
1 Solicitação de treinamentos na empresa. Ministrar treinamentos na empresa em que trabalhava. (*) Percepção de que se sentia bem ensinando.
2 Instrumentos não identificados. Entender como e por que as coisas funcionam. (*) Gosto pela Ciência Física.
3 Observação do funcionamento de escolas das redes pública e privada. Diminuir as desigualdades existentes entre o ensino público e o privado. (*) Desejo de trabalhar em escola pública.
4 Comportamentos familiares e de busca de estágios remunerados na área. Ser docente é ser desvalorizado. Luta contra a desaprovação por sua escolha profissional de carreira docente, desânimo com a desvalorização da carreira e intenção de fazer uma segunda graduação.
5 Atuação docente sem estudar previamente o contexto, antes da PDEF. Aplicar os projetos sem considerar o contexto. Ensino tecnicista.
6 Início das aulas de PDEF1. Cursar a disciplina. Uma experiência de aproximação da realidade escolar.
7 Experiências na PDEF. (*) Ânimo em lecionar; percepção da importância do docente para os alunos; comprometimento com o trabalho docente.
8 Observação das aulas e implementação de um questionário para os alunos. Conhecer e investigar os estudantes e seus gostos. (*) Necessidade de identificar o contexto e encontrar as abordagens que melhor atendam às demandas culturais e socioeconômicas percebidas.
Analisar o contexto com base nos questionários. (*) Percepção da importância do trabalho coletivo para facilitar a compreensão das situações escolares.
9 O diário de bordo. Anotar aspectos relevantes da sala de aula. (*) Percepção da importância de anotações para uma análise sistematizada.
10 Diálogos com o professor supervisor. Aperfeiçoar as intervenções docentes. (*) Importância de um acompanhamento pedagógico e discussões sobre suas práticas e planejamentos.
11 Flexibilidade e abertura do supervisor e da orientadora às ideias dos estagiários. Construir uma proposta de ensino criativa e de acordo aos objetivos educacionais. (*) Valorização do seu trabalho, das suas ideias, dos(as) estudantes, da flexibilidade e da mediação didática no trabalho docente.
12 Diálogos com a orientadora e o grupo. Aprofundar o conhecimento pedagógico. (*) Importância de problematização, criação de textos, autoria e referenciais.
13 Envolvimento do grupo. Aprofundar os conhecimentos e melhorar o trabalho docente. (*) Necessidade de união entre o grupo de docentes e componentes do corpo escolar de trabalho.
14 Solicitação de discussões do planejamento das aulas. Planejar as aulas. (*) Se sentir preparado para ser professor.
15 Organização da disciplina esclarecida no seu início. Organizar-se para atender as demandas. (*) Busca constante de materiais de Física e seu ensino; sistematização dos materiais encontrados; escrita e análise mais integral dos materiais utilizados.
16 Leitura e escrita. Entregar os materiais solicitados na disciplina.
17 Atividades investigativas. Desenvolver um projeto atrelando Pesquisa e Ensino. (*) Percepção do docente como pesquisador e com o ideal de ser aquele(a) que faz pesquisa do tipo ação.
18 Contexto escolar. Falta de incentivo e condições de trabalho para se desenvolver atividades de pesquisa e docência de forma constante na escola.

Fonte: Adaptado de Karsten (2020), Curitiba, Brasil, 2020.

Tabela 3  Curitiba, Brasil: Resumo dos instrumentos, motivos e sentidos de Gil, 2020.  

Instrumentos: Aponta instrumentos que potencializam a prática de docência na formação inicial de docentes de Física. Motivação ou Motivo: Mostra como ocorrem as etapas da prática de docência e da construção dos projetos de ensino e de pesquisa na formação docente de Física durante as disciplinas. Sentidos: Identifica os sentidos que o estudante confere para cada atividade que tinha instrumentos específicos em sua base de atividade.
1 Solicitação de treinamentos na empresa. Ministrar treinamentos na empresa em que trabalhava. (*) Percepção de que se sentia bem ensinando.
2 Instrumentos não identificados. Entender como e por que as coisas funcionam. (*) Gosto pela Ciência Física.
3 Observação do funcionamento de escolas das redes pública e privada. Diminuir as desigualdades existentes entre o ensino público e o privado. (*) Desejo de trabalhar em escola pública.
4 Comportamentos familiares e de busca de estágios remunerados na área. Ser docente é ser desvalorizado. Luta contra a desaprovação por sua escolha profissional de carreira docente, desânimo com a desvalorização da carreira e intenção de fazer uma segunda graduação.
5 Atuação docente sem estudar previamente o contexto, antes da PDEF. Aplicar os projetos sem considerar o contexto. Ensino tecnicista.
6 Início das aulas de PDEF1. Cursar a disciplina. Uma experiência de aproximação da realidade escolar.
7 Experiências na PDEF. (*) Ânimo em lecionar; percepção da importância do docente para os alunos; comprometimento com o trabalho docente.
8 Observação das aulas e implementação de um questionário para os alunos. Conhecer e investigar os estudantes e seus gostos. (*) Necessidade de identificar o contexto e encontrar as abordagens que melhor atendam às demandas culturais e socioeconômicas percebidas.
Analisar o contexto com base nos questionários. (*) Percepção da importância do trabalho coletivo para facilitar a compreensão das situações escolares.
9 O diário de bordo. Anotar aspectos relevantes da sala de aula. (*) Percepção da importância de anotações para uma análise sistematizada.
10 Diálogos com o professor supervisor. Aperfeiçoar as intervenções docentes. (*) Importância de um acompanhamento pedagógico e discussões sobre suas práticas e planejamentos.
11 Flexibilidade e abertura do supervisor e da orientadora às ideias dos estagiários. Construir uma proposta de ensino criativa e de acordo aos objetivos educacionais. (*) Valorização do seu trabalho, das suas ideias, dos(as) estudantes, da flexibilidade e da mediação didática no trabalho docente.
12 Diálogos com a orientadora e o grupo. Aprofundar o conhecimento pedagógico. (*) Importância de problematização, criação de textos, autoria e referenciais.
13 Envolvimento do grupo. Aprofundar os conhecimentos e melhorar o trabalho docente. (*) Necessidade de união entre o grupo de docentes e componentes do corpo escolar de trabalho.
14 Solicitação de discussões do planejamento das aulas. Planejar as aulas. (*) Se sentir preparado para ser professor.
15 Organização da disciplina esclarecida no seu início. Organizar-se para atender as demandas. (*) Busca constante de materiais de Física e seu ensino; sistematização dos materiais encontrados; escrita e análise mais integral dos materiais utilizados.
16 Leitura e escrita. Entregar os materiais solicitados na disciplina.
17 Atividades investigativas. Desenvolver um projeto atrelando Pesquisa e Ensino. (*) Percepção do docente como pesquisador e com o ideal de ser aquele(a) que faz pesquisa do tipo ação.
18 Contexto escolar. Falta de incentivo e condições de trabalho para se desenvolver atividades de pesquisa e docência de forma constante na escola.

Fonte: Adaptado de Karsten (2020), Curitiba, Brasil, 2020.

Percebe-se que nas linhas 1, 2, 3 e 4 da Tabela 2, são descritos instrumentos, motivos e sentidos fortes e que impulsionaram o estagiário ao ingresso na licenciatura. Esses motivos aproximam o estagiário da busca em ser um intelectual transformador, mas eles sozinhos são insuficientes. A linha 4, por sua vez, carrega a descrição do desânimo do estagiário já se enxergando na carreira de docente, quando busca emprego na área. A linha 5 amplia esse desânimo por não possibilitar um olhar de mudança para a educação e enquadrar o trabalho do docente como o de um mero cumpridor de currículo. Ou seja, apenas uma grande motivação não é suficiente para manter o desejo do licenciando em ser professor, é necessário instrumentalizá-lo teoricamente e fornecer experiências diferenciadas e ricas que o empoderem.

A linha 6 demonstra que o sentido de cursar a disciplina, inicialmente, era como mais um dever para terminar o curso, porém, já na linha 7, na qual aparecem instrumentos pertencentes às disciplinas PDEF1 e PDEF2, ele ressignifica toda a importância dada a profissão, fortalece o seu ânimo em estudar, o que o aproxima de um intelectual do tipo transformador.

A linha 8, por sua vez, apresenta instrumentos investigativos de observação que constituíram a prática de docência logo no início da disciplina que, além de reforçar os sentidos relacionados ao ânimo e importância da profissão, possibilitaram elaboração de sentidos novos, ainda não presentes no discurso do estagiário. Esses sentidos aproximam ainda mais o licenciando de um profissional do tipo transformador, segundo Giroux (1997), por colocarem-no numa condição de percepção que o fez considerar as dimensões culturais, ambientais, socioeconômicas e cognitivas dos estudantes (Milani, 2021).

O perfil investigativo aproximando-o de um intelectual do tipo transformador, foi se construindo com ajuda de instrumentos como o citado na linha 9 e fortalecido, assim como aperfeiçoado e modificado, com os instrumentos das linhas 10, 11, 12 e 13. Isso tudo, resultou no sentido das linhas 14, 15, 16 e 17, que demonstram como ele se sentiu preparado para ser professor e o fez se perceber como um professor pesquisador.

4.11 Sistematização das demandas e Instrumentos nas disciplinas PDEF 1 e PDEF 2

Com base na discussão do tópico 4.10 percebe-se que todos os instrumentos da disciplina foram importantes para a formação dos sentidos de intelectual transformador de Gil. Porém, alguns tiveram maior peso ao impulsioná-lo a se mobilizar e isso ocorreu principalmente quando esses instrumentos apresentavam-se integrando às demandas pessoais do estagiário, as demandas da escola e as da universidade.

Quando um instrumento era utilizado ou solicitado pelo supervisor, orientadora, estudantes ou outros sujeitos do contexto escolar, ou seja, de mais de uma das três áreas que envolvem intensamente o estágio (demandas pessoais do sujeito, demandas advindas da escola-campo e demandas advindas da universidade), tendia-se a haver mais sentidos mobilizados ou criados que aproximavam Gil de um intelectual do tipo transformador. Este foi o caso das atividades investigativas (questionários e PDID), as discussões realizadas com todas as pessoas envolvidas na disciplina, a necessidade de valorizar o contexto por meio da observação e outros instrumentos e o planejamento das aulas, instrumentos que carregavam demandas da escola, do sujeito e da universidade. Quando havia demandas integradas entre a: escola com o estudante (como conversar com os estudantes e observações), a universidade e o estudante (como concluir a disciplina e realizar leituras) e escola e universidade (como abertura, flexibilidade, envolvimento do grupo e cumprimento das disciplinas de PDEF1 e 2) também houve uma mobilização maior de sentidos que aproximavam o estagiário de um intelectual do tipo transformador. Com exceção do instrumento “organização prévia da disciplina,” todos os demais instrumentos, que partiam de uma demanda da universidade e aproximaram Gil de um intelectual transformador, necessitaram da relação com a escola. Ou seja, quanto mais integradas as demandas da universidade, escola e sujeito se colocam, mais potencialmente há uma mobilização de sentidos inclinados para a formação crítico transformadora intencionalmente almejada.

Assim, o anagrama a seguir na Figura 1 busca representar a relação entre esses três pilares do estágio e suas demandas instrumentais para mobilizarem os sentidos do estagiário dentro das disciplinas PDEF1 e 2. Cada círculo representa um dos pilares da disciplina (em tom alaranjado, para a disciplina na universidade; em tom azulado, para as demandas do estagiário e em tom avermelhado, para as demandas da escola). Os elementos escritos dentro dos círculos são os instrumentos que aparecem no decorrer das análises e estão presentes na tabela 2. Os instrumentos descritos nas intersecções dos círculos pertencem aos pilares no qual se encontra a cor do pilar e o que está fora das intersecções pertence a uma única fonte de demanda. Os instrumentos com asteriscos foram aqueles que aproximaram Gil de um intelectual do tipo transformador e os sublinhados, apesar de não serem instrumentos que advém de uma demanda da escola, dependem desse pilar para serem implementados. Conforme a densidade de elementos, dentro dos círculos, percebemos quais pilares apresentaram mais demandas ao estagiário e quais têm apresentado mais ou menos autonomia.

Fonte: Adaptado de Karsten (2020), Curitiba, Brasil, 2020.

Figura 1 Curitiba, Brasil: Instrumentos da PDEF1 e 2 divididos por demanda dos três pilares do estágio, 2020. 

5. Conclusões

Percebemos que os instrumentos citados na tabela 2 (com asterisco no início antes do texto) que fizeram parte das disciplinas PDEF1 e PDEF2 na modalidade investigativa, motivaram em Gil a elaboração de sentidos mais próximos de um intelectual transformador (Giroux, 1997). Ele ressignificou toda a docência a partir das atividades da prática de docência investigativa (desde a observação), coletiva e dialógica e essa transição pode ser observada ao se comparar os sentidos que ele tinha no início, com os que foram se desenvolvendo durante as disciplinas. Por exemplo, antes desta disciplina investigativa ele tinha a percepção do ensino com uma visão tecnicista, já a partir das atividades investigativas ele desenvolveu o sentido de considerar os gostos, contexto e os estudantes enquanto sujeitos históricos, que têm várias dimensões a serem consideradas.

Portanto, os resultados apontaram que houve uma aproximação da formação do intelectual do tipo transformador no desenvolvimento das PDEF1 e 2 de forma investigativa, quanto mais integrada ela estava entre a escola, universidade e estagiário(as). Tal constatação corrobora com a tese de Levy (2013, p.10) na qual, ao investigar “que aspectos das práticas de investigação repercutem na constituição da identidade de professores de Matemática em formação inicial” durante o estágio supervisionado, percebeu que as atividades investigativas repercutiram na constituição individual e profissional da identidade docente de cada estudante analisado. Da mesma forma, os resultados encontrados são congruentes ao trabalho de Rabelo, Abib e Azevedo (2021), que demonstra como ocorre a modificação de sentidos de uma licencianda por meio de instrumentos de atividades investigativas no estágio. No entanto, nosso trabalho, além ressaltar a importância do estágio investigativo, destaca o envolvimento dos sujeitos (orientador, supervisor, estagiários e estudantes) de forma ativa em interações, e diversificada em instrumentos, para que ocorra sentidos de aprendizagem. Ou seja, o estágio investigativo potencializa a articulação das ações de planejamento, execução e reflexão, o que lhe atribui o status de práxis pedagógica; sendo a linguagem o principal elo, o instrumento intermediador das relações (Azevedo et al., 2018).

A elaboração de sentidos que aproximam o sujeito investigado de um intelectual do tipo transformador foram: a importância de diálogos, valorização de suas práticas e planejamentos, da flexibilidade, da problematização, necessidade de união entre o grupo de docentes e demais integrantes da escola, de busca constante de materiais de Física e seu ensino; sistematização dos materiais encontrados, escrita e análise mais integral dos materiais utilizados, referenciais e autoria, percepção do(a) docente como sujeito pesquisador identificada como aquele que faz pesquisa do tipo ação, consideração dos alunos, no preparo das aulas, em suas dimensões social, cognitiva, ambiental e cultural; fazendo-o sentir-se preparado para ser professor.

Como observado na Figura 1, visualmente também fica mais perceptível que a escola tem pouca autonomia nas demandas para o estágio, porém, é principalmente na integração a ela que há mobilização de sentidos que aproximam Gil de um intelectual do tipo transformador. Tal percepção pode colaborar com uma das conclusões de Mello (2019), de que há uma violência simbólica da universidade sobre a escola na relação estabelecida para os estágios, uma vez que os bens culturais do subcampo universitário são considerados de maior status que os do subcampo escolar, visto que há poucas demandas da escola sobre o desenvolvimento do estágio, ou que não há espaço para se pensar em demandas da escola nas atividades de estágio de formação de professores, um aspecto que pode ser repensado nestas disciplinas.

Para além dos resultados da investigação aqui relatados, há instrumentos que ganham destaque nesse processo, como potencializadores desta aproximação ao intelectual transformador. São eles: a necessidade de valorização dos(as) supervisores(as) que atualmente trabalham apenas de forma voluntária na formação destes(as) estudantes e de políticas públicas para fortalecer a participação da escola neste momento formativo dos licenciandos; da orientadora propor diferentes formas de sistematização das vivências acadêmicas (diário de bordo, questionários, planejamento, carta, relatório, artigo de pesquisa, entre outros); de ser intencionalmente flexível e dialógica; da realização de uma prática de docência coletiva; do ensino e pesquisa serem atrelados na atuação docente e da autonomia dos sujeitos para escolherem seus caminhos. Todos esses instrumentos constituem duas disciplinas pensadas intencionalmente para uma formação no viés do intelectual transformador, intencionalidade esta que, conforme Castro et al. (2017), é um dos elementos cruciais para a mobilização de sentidos, afinal tal formação não ocorre espontaneamente, sem a organização docente.

Este trabalho abre a necessidade de novas investigações, para buscar compreender, por exemplo, como estudantes de licenciatura, que passam por um estágio investigativo, após terminarem a sua formação inicial, se desenvolvem incorporando a prática da pesquisa; qual a visão dos docentes realizadores da supervisão e orientação sobre o estágio com pesquisa, como eles se veem orientando o estágio nesta perspectiva e como isso interfere no desenvolvimento de supervisores(as) e estudantes.

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Received: June 27, 2022; Accepted: November 21, 2022

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