Introdução
Neste importante e delicado momento sociopolítico, histórico e cultural em que se encontra a sociedade brasileira na atualidade, estamos convivendo com a intolerância política, com a incapacidade de aceitação de diferentes ideias, com ataques constantes à diversidade cultural e de gênero, e com a imposição de valores hegemônicos de grupos conservadores. As políticas de contingenciamento de verbas para a educação, as restrições à liberdade de cátedra, de autonomia pedagógica e de gestão, vêm intensificando a precariedade do ensino e da pesquisa no País.
Torna-se urgente reafirmar o papel das instituições de ensino, especialmente o das universidades, como lugar privilegiado para o debate crítico, fundamentado teoricamente, visto que se trata de um período marcado por grandes mudanças e incertezas, com a radicalização de discursos baseados no senso comum, desfalcados do imprescindível aporte crítico e sócio-histórico que lance luzes para a compreensão da realidade.
O pensamento conservador que se fortaleceu no País logrou êxito nas eleições presidenciais de 2018, com o propósito de manter o status quo, assumindo o monopólio nas deliberações políticas, dando margem à reação de grupos em defesa de maior participação social nas políticas nacionais, da inclusão social, dos direitos fundamentais, dentre outras pautas. Esse contexto, dada a sua complexidade inerente, abre e baliza espaço de reflexão sobre as questões políticas e sociais e, de forma muito especial, sobre o papel das universidades, com vistas à formação crítica de estudantes e equipes de pesquisa para analisar tal realidade.
No entanto, a ideia da universidade como lugar de crítica, que historicamente a identificou como instrumento de resistência às políticas de dominação, vem sendo desmontada pela ideologia de valores e costumes conservadores que estão se fortalecendo na contemporaneidade.
Recuperar e reforçar o papel da universidade é condição para o enfrentamento de discursos e políticas que podem colocar em risco a educação promotora do debate, da crítica, da diversidade de ideias e posições para a formação humanista de pessoas emancipadas, capazes de “transformar a realidade, para nela intervir, recriando-a” (Freire, 2014a, p. 67). Por conseguinte, torna-se fundamental retomar e sublinhar as contribuições de Paulo Freire (2005, 2014b) em sua proposta de educação como exercício da liberdade que se contrapõe à prática de dominação.
A educação, nos termos referidos nas obras de Paulo Freire (1983, 2005, 2014a, 2014b), pode fundamentar, nas universidades, a indissociabilidade de ensino, pesquisa e extensão, promovendo “a educação como prática da liberdade” no campo das ciências, das tecnologias, das artes, da cultura, das relações sociais e dos direitos humanos.
São relevantes os fundamentos teóricos de Freire, autor reconhecido internacionalmente, para abordarmos o papel da universidade no momento atual, que nos permite compreender e debater as contradições e dissonâncias, visando à formação de pessoas engajadas no compromisso com o fortalecimento de uma sociedade mais democrática, tolerante, menos desumana e desigual.
Com esse propósito, propomos a indissociabilidade de ensino, pesquisa e extensão a partir dos fundamentos da pesquisa-ação crítica, como caminho metodológico viável, aproximando a universidade das escolas de educação básica, para tratarmos, de forma especial, das políticas no campo da educação e suas implicações nas instituições de ensino.
Analisamos e problematizamos o lugar de superioridade que vem sendo atribuído e assumido pelas universidades e o lugar de inferioridade da educação básica, quando é concebida como receptora e consumidora dos conhecimentos produzidos no meio acadêmico. Não basta à universidade investigar e problematizar a estrutura e a organização social ultraconservadora e os propósitos das políticas educacionais subjacentes a esse projeto de sociedade, mas é preciso que os profissionais da educação básica participem desse movimento.
Argumentamos, neste artigo, a superação do isolamento da universidade e seu distanciamento da escola de educação básica por meio da pesquisa-ação crítica, nos termos propostos por Thiollent (1986), Franco (2005, 2018) e Monceau (2005), para o avanço do conhecimento e elaboração de fundamentos político-pedagógicos, tendo em vista o compromisso social coletivo com a educação de melhor qualidade.
Na pesquisa-ação crítica, o diálogo entre universidade e educação básica, integrando os conhecimentos acadêmicos e os saberes da prática, não limita e/ou reduz os sujeitos a meros objetos de pesquisa, reconhecendo sua capacidade de compreender e de interferir na realidade. A participação coletiva fortalece a indissociabilidade da tríade ensino-pesquisa-extensão, assumindo o debate crítico e teoricamente fundamentado, com vistas à produção coletiva de conhecimentos que contribuam para intervenções no contexto escolar e acadêmico, ampliando os espaços de participação dos profissionais da educação nos debates sobre políticas e projetos educacionais.
2. Ensino, pesquisa, extensão: a indissociabilidade em questão
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 207, define como princípio a “indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (1988, p. 24). O texto legal, no entanto, não significa que estarão garantidas as condições para sua efetivação. Por razões diversas, há dificuldades nessa integração (Demo, 2001), sendo possível identificar práticas acadêmicas predominantemente de ensino ou de pesquisa, desvinculadas de práticas de extensão (Gonçalves, 2015), que é assumida, em muitos casos, para a implantação de projetos ou a prestação de serviços assistencialistas à comunidade (Tavares et. al, 2007).
Na análise de Pereira-Júnior (2005), o processo de criação das universidades brasileiras, a organização disciplinar que predomina e as políticas de financiamento de pesquisas consideradas “aplicáveis” são fatores que restringem a proclamada intencionalidade acadêmica de promover o desenvolvimento social de forma mais ampla. Na vertente do liberalismo econômico, a educação serve aos ditames de uma política produtivista, para atrair investimentos. O ensino, a pesquisa e a extensão, portanto, expressam uma visão de mundo e de sociedade presente nos projetos acadêmicos e nas políticas públicas, com seus princípios, valores e ideologias.
No momento atual, deparamo-nos com políticas públicas para o ensino superior que precarizam as condições de produção do conhecimento por meio da redução de investimentos, indicando como alternativa as parcerias com empresas, o que tem provocado notas de repúdio publicadas por diversas universidades, por Conselhos Regionais, pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped, 2019a, 2019b), dentre outras associações. A comunidade acadêmica tem se ressentido dessa política, que poderá representar retrocessos, comprometendo ainda mais a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Por sua vez, a desvalorização das ciências humanas, nos discursos oficiais, levou a fortes reações da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS), da Associação Nacional de História (ANPUH) e da Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP), dentre outras associações que se posicionaram, repudiando a “fala ofensiva” do Ministro da Educação (ANPOF, 2019).
As manifestações da comunidade acadêmica também se voltam contra os cortes que atingem a educação básica, cuja privatização se amplia. Com o crescimento das pressões da área econômica sobre a educação, temos assistido, há alguns anos, o fortalecimento do viés economicista, com o ingresso dos “reformadores empresariais” (Freitas, 2012) no direcionamento das políticas educacionais, mantendo e ampliando a lógica empresarial, também na educação básica, com currículos padronizados que facilitam as avaliações institucionais e gestões controladoras.
É um cenário que requer a união dos profissionais dos diferentes níveis de ensino para analisarem criticamente essa realidade, construindo estratégias em defesa da democratização da educação em nosso país. Não basta aos pesquisadores acadêmicos investigarem tal realidade; é preciso que os profissionais da educação básica se envolvam com os processos investigativos teoricamente fundamentados para analisar as políticas educacionais e suas diretrizes, que atingem diretamente o cotidiano escolar.
Conforme argumentos de Freitas (2013), a proeminência da educação no campo econômico tornou-se um negócio lucrativo, cujas políticas e diretrizes passam a ser assumidas por grupos ligados a empresas.
[...] os empresários consideram hoje que a educação é algo muito sério para ficar só na mão de educadores profissionais. E eles vão pôr a mão nisso, e já estão pondo a mão nisso com a ótica deles. E na ótica da empresa é - accountability que faz funcionar, porque precisa de resultados rápidos, inclusive. (Freitas, 2013, p. 2)
As ações dos reformadores empresariais, segundo Freitas (2013), combinam responsabilização, meritocracia e privatização, acarretando dificuldades às equipes escolares em função das metas e resultados esperados, nem sempre adequados ou possíveis, pois dependem de condições que não podem ser garantidas por elas próprias.
No entendimento de Paro (2015, p. 105), conceitos ligados à “qualidade total”, “empreendedorismo”, “modernização”, que levam a um modelo de gestão afinado com interesses empresariais, requer a figura de um gestor como “chefe”, que exerce seu poder sobre os demais. Esse modelo nem sempre é objeto de críticas por parte dos próprios profissionais da área, uma vez que “no imaginário de uma sociedade onde domina o mando e a submissão, a questão da direção é entendida como o exercício do poder de uns sobre outros”, a exemplo dos modelos empresariais.
Reconhecemos que o objetivo das empresas é obter lucro, mas a educação escolar tem outros desígnios e não pode ser concebida com base nos propósitos corporativos, com o risco de abrir mão da educação humanista, integral, emancipadora, tão cara à democracia (Freire, 2005, 2014a, 2014b).
Paro (2015, p. 53) argumenta que assumir como objetivo da educação o amplo crescimento econômico do País, “ignorando as razões verdadeiramente educativas ligadas ao direito à cultura e à formação integral do cidadão”, levam a medidas que visam “apenas à formação para o mercado de trabalho, para o consumo, ou para avançar nas posições dos ranques econômicos nacionais e internacionais”.
Na educação básica, a pressão sobre as equipes escolares volta-se à cobrança por melhores resultados que, ao não serem atingidos por razões que extrapolam o âmbito da escola, fortalecem os discursos privacionistas.
É necessário que as universidades se articulem com os profissionais da educação básica, organizando espaços de participação e debates sobre a organização e estrutura social e política que influencia o campo educacional, para que possam criar, ocupar e ampliar espaços de autonomia.
Para isso, destaca-se neste ensaio a relevância da pesquisa-ação crítica, pondo em diálogo equipes acadêmicas e profissionais da escola básica que permite a problematização e a construção coletiva de conhecimentos, com possibilidades de intervenção, fortalecendo a organização escolar e seus propósitos democráticos. Pesquisa, formação e intervenção são características da pesquisa-ação que, portanto, refutam a dissociação ternária e também se opõem ao conceito de extensão como aplicação ou doação dos conhecimentos acadêmicos da universidade para a educação básica.
Na análise de Freire (1983), o conceito de extensão é compreendido, do ponto de vista semântico, com diferentes sentidos, podendo significar entrega de algo ou de determinado conteúdo a alguém, que recebe passivamente como doação do sujeito ativo que realiza a entrega. Freire (1983, p. 13) relaciona esse conceito de extensão à “invasão cultural” que ocorre “através do conteúdo levado, que reflete a visão de mundo daqueles que levam, que se superpõe à daqueles que passivamente recebem” e argumenta sobre o “equívoco gnosiológico” do termo “extensão”, pelo seu caráter de domesticação, propondo uma “relação dialógica comunicativa” (p. 45).
Alinhamo-nos a Freire, compreendendo que viabilizar a participação dos profissionais da prática nas pesquisas acadêmicas significa reconhecer a relevância de sua visão de mundo e de seus saberes para a produção do conhecimento científico, por meio da “comunicação dialógica”. Nesses termos, a aproximação da universidade com as escolas de educação básica pode ressignificar a tríade ensino-pesquisa-extensão, para que o conhecimento teórico em união com a prática promova ações transformadoras.
Experiências participativas em atividades de pesquisa
A maior participação das pessoas envolvidas nos processos educativos com atividades de pesquisa vem se fortalecendo há algumas décadas. No início dos anos de 1960, as experiências de Freire (2005) nos Círculos de Cultura para alfabetização de pessoas adultas foram rigorosamente elaboradas e desenvolvidas de forma participativa. Seu percurso metodológico considerou a investigação dialógica com os grupos populares acerca de seu universo vocabular, de seus saberes, valores, crenças e culturas, como pré-requisito para a elaboração dos programas de educação.
Na referida metodologia, os(as) educandos(as) não são meros receptores dos conhecimentos elaborados por especialistas, posto que participam do planejamento dialogando com investigadores acerca de sua própria realidade. Não se trata, pois, de um programa de ensino elaborado para os grupos populares, mas de uma elaboração com os grupos populares, por meio de um processo investigativo dialógico (Freire, 2005).
Outras experiências participativas foram sendo propostas e sistematizadas por Freire (1985), mantendo o objetivo de inclusão dos grupos populares, o que sempre causa resistências na ala conservadora que defende a manutenção da hierarquia de posições, de culturas e de saberes.
São muitas as críticas voltadas às metodologias que assumem a participação como princípio. Considera-se, por exemplo, que a pesquisa participante, ao questionar o modelo tradicional, em certas circunstâncias, pode se afastar da rigorosidade científica, aproximando-se de um “modismo arriscado, prestando-se a banalizações sem fim” (Demo, 2004, p. 55).
Sem dúvida, riscos de manipulações e falta de rigorosidade estão presentes em quaisquer tipos de pesquisa.Fals-Borda (1985, p. 50), nos primeiros escritos sobre pesquisa participante, já alertava para os perigos de o dogmatismo tornar a pesquisa participante “para o povo, como ela sempre foi concebida nos círculos das classes dominantes e transmitida às massas da maneira paternalista tradicional”.
Por sua vez, Freire (2013, p. 53) muito contribuiu para esse debate, propondo a superação da tradicional desconsideração dos saberes e culturas dos grupos populares e evidenciando sua relevância em qualquer projeto de ensino, pesquisa e extensão. Em suas palavras: “Há gente elitista e incompetente que pensa que nessas culturas não há teoria, que nessas culturas não há educação sistemática teórica”.
Com base em tais fundamentos, a separação entre a universidade e a educação básica vem sendo repensada e questionada por alguns autores, a exemplo de Zeichner (2000, p. 11), que se contrapõe à ideia de que “os professores são meros implementadores, e não produtores de conhecimento”. Mas superar essa realidade não é fácil. As ações para aproximar as universidades da educação básica ainda são tímidas, especialmente quando nos referimos à pós-graduação.
As práticas de coleta de dados nas escolas de educação básica para análise dos pesquisadores acadêmicos foram se naturalizando como metodologia de pesquisa predominante, posto que “os professores fornecem oportunidades para aqueles que estão nas universidades pesquisar, mas não são vistos como fontes de teorias e conhecimentos” (Zeichner, 2000, p. 10). A tendência é uma concepção de pesquisa que valoriza predominantemente os conhecimentos científicos, para que sejam consumidos pelos profissionais da educação básica. “Por isto mesmo é que, no processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquele que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isto mesmo, reinventá-lo” (Freire, 1983, p. 16).
Tais argumentos indicam o necessário enfrentamento da dissociação entre o conhecimento acadêmico e a sabedoria dos que estão na prática, reconhecendo que todos os conhecimentos são relevantes, como sempre ressaltou Freire.
No entanto, apesar da apregoada indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, há diversos obstáculos, tanto nos processos de gestão das universidades, como das administrações públicas e das próprias instituições escolares que, envolvidas com o imediatismo de seu cotidiano, questionam a real contribuição dessa aproximação. Problemas de financiamento, estrutura, dentre outros, compõem esse cenário justificado por discursos que defendem investimentos apenas no que interessa para o País do ponto de vista econômico.
O reconhecimento de tais dificuldades não pode levar ao imobilismo. A crença nas possibilidades pode se materializar com o desenvolvimento da pesquisa-ação crítica, no intuito de romper com a dicotomia cristalizada. Firmamos nossa reflexão e concordamos com Severino (2009, p. 261), quando argumenta que:
Na Universidade, ensino, pesquisa e extensão efetivamente se articulam, mas a partir da pesquisa, ou seja, só se aprende, só se ensina, pesquisando; só se presta serviços à comunidade, se tais serviços nascerem e se nutrirem da pesquisa. Impõe-se partir de uma equação de acordo com a qual educar (ensinar e aprender) significa conhecer; e conhecer, por sua vez, significa construir o objeto; mas construir o objeto significa pesquisar.
A pesquisa compreendida nesses termos articula-se com o ensino e extensão e permite a reflexão crítica sobre a realidade inacabada, refutando o pressuposto de que o conhecimento se restringe ao desenvolvimento econômico. Assumir o compromisso coletivo com a formação integral dos estudantes promove a construção gradativa da consciência crítica para intervir na realidade (Freire, 2005).
2.2 A perspectiva da pesquisa-ação crítica
Apesar de assumir diferentes feições, a pesquisa-ação, nos termos propostos por Thiollent (1986), Monceau (2005) e Franco (2005, 2018), produz o conhecimento de forma coletiva e dialógica, vinculando-se a determinado objetivo para intervir e transformar a realidade. Há princípios comuns que embasam as pesquisas dessa natureza, mas o percurso metodológico não segue um padrão rígido, sendo bastante flexível.
O surgimento da pesquisa-ação é incerto, mas Lewin (1970) parece ser o primeiro a assumir o termo em dinâmicas de grupo. Tal metodologia foi sendo usada na administração, na saúde, no campo social, na educação, com diferentes desenhos e propósitos. As diferenças não são “apenas de estruturas metodológicas”, mas se constroem “nas concepções de mundo que os sujeitos compartilham, em suas atitudes filosóficas, em suas crenças a respeito das relações homem-mundo” (Franco, 2018, p. 97).
Nas ciências humanas, pesquisa-ação e pesquisa participante se aproximaram em função de seu compromisso social. Superar a dicotomia entre objetividade e subjetividade foi também uma intenção das pesquisas dessa natureza, por meio de um processo reflexivo das próprias pessoas participantes, que se compreendem no mundo e com o mundo, em situações que as condicionam, mas não determinam, por isso são situações que podem ser transformadas (Freire, 1985, 2005).
Há que se reconhecer, no entanto, seus muitos desafios, uma vez que a tradição das pesquisas acadêmicas pressupõe que “uns pesquisam, outros aplicam” (Franco, 2018, p. 109) e, como afirma Thiollent (1986, p. 67):
De acordo com a postura tradicional, muitos pesquisadores consideram que, de um lado, os membros das classes populares não sabem nada, não têm cultura, não têm educação, não dominam raciocínios abstratos, só podem dar opiniões e, por outro lado, os especialistas sabem tudo e nunca erram. Este tipo de postura unilateral é incompatível com a orientação "alternativa" que se encontra na pesquisa-ação (e pesquisa participante).
Além dessa relação de poder ou, por causa dela, os profissionais da educação básica são desvalorizados e não são chamados a participar e a influenciar, quer nas políticas, quer nos projetos e situações do cotidiano escolar que afetam seu trabalho, posto que são considerados “técnicos que reproduzem e executam reformas educativas concebidas com base numa lógica burocrática, em que as medidas e prescrições vêm de cima para baixo” (Franco, 2018, p. 101). Os fundamentos teóricos na obra de Paulo Freire permitem reconfigurar os sujeitos da prática, como construtores de saberes relevantes, capazes de compreender a dinâmica social e suas contradições, refutando a visão fatalista de adaptação à realidade, para favorecer processos de transformação institucional e pessoal, em termos emancipatórios (Freire, 2005). Para Thiollent (1986, p. 42), é necessário definir qual o alcance das transformações desejadas, para não “alimentar ilusões sobre a transformação geral da sociedade em sentidos modernizador ou revolucionário”.
Com o alerta de Thiollent (1986), argumentamos, nesse ensaio, que os fundamentos da pesquisa-ação crítica provocam reflexões sobre a realidade educacional, cujas possibilidades de intervenção ocorrem em distintas perspectivas, no âmbito de atuação de cada participante - seja na universidade ou na educação básica. Por seu princípio formativo, a pesquisa-ação permite a gradativa construção da consciência crítica dos participantes (Freire, 2005), para construírem outras leituras acerca da relação escola-sociedade, analisando criticamente os problemas educacionais e as intencionalidades das políticas.
A sistematização dos conhecimentos que emergem nos trabalhos grupais, a partir das “reflexões em torno dos condicionantes ideológicos, políticos e econômicos” (Franco, 2018, p. 105), podem ressignificar saberes, crenças e posicionamentos políticos dos participantes, operando mudanças em suas próprias práticas.
A organização dos processos investigativos que configuram o trabalho grupal em espirais cíclicas, conforme proposto por Lewin (1970), com modificações de Thiollent (1986) e Franco (2018), oferece maior organicidade e sentido à pesquisa-ação, considerando o planejamento, ação, reflexão e ressignificação como ações contínuas, sendo que a mediação teórico-conceitual opera de forma permanente.
O tema de investigação, relativo às políticas e diretrizes para a educação, é pouco discutido pelos docentes no âmbito escolar; suas temáticas estão mais voltadas ao imediatismo das práticas cotidianas, em função das constantes cobranças a que são submetidos.
Com as políticas de descentralização e o discurso da autonomia, as escolas passaram a ser cobradas pela implementação de programas, diretrizes, metas que são elaboradas por instância superiores. Na análise dos resultados, nem sempre são considerados os contextos e as condições necessárias para alcançar as metas estabelecidas sem mencionar possíveis desarticulações com o projeto político-pedagógico. As pressões exercidas sobre as equipes escolares limitam suas possibilidades de analisar criticamente as políticas, diretrizes e indicadores estabelecidos por especialistas, com propósitos regulatórios.
Maués (2009), analisando algumas regulações decorrentes das políticas educacionais, conclui que estas se baseiam no desenvolvimento econômico, com a intenção de que a educação possa responder às exigências formativas e que atendam a essa demanda. Com isso, argumenta que as políticas educacionais não têm priorizado a melhoria das condições de trabalho dos docentes em termos de formação, salários e estrutura, focando prioritariamente nos currículos padronizados e avaliações institucionais, abrindo espaços às instituições privadas para assumirem a responsabilidade pela formação (treinamento) do corpo docente (Maués, 2009), especialmente para a implementação das diretrizes estabelecidas às escolas.
As práticas heterônomas e padronizadas - de planejamento, avaliação e organização escolar -, a intensificação do trabalho, assim como a competição desmensurada entre pares e instituições, são elementos do modelo empresarial, a despeito dos subterfúgios que as justificam e que, “a pretexto de avaliação e prestação de contas (accountability)”, impõem “parâmetros de eficiência e qualidade/quantidade a baixo custo, com intensificação e precarização do trabalho” (Sguissardi e Silva, 2009, p. 234), o que requer das equipes escolares a compreensão dessa realidade para que possam tomar posição sob o ponto de vista político e pedagógico.
É possível que a política de intensificação do trabalho leve à neutralização da mobilização coletiva e à emergência de estratégias heterônomas, podendo provocar o predomínio do tecnicismo, inviabilizando a educação democrática com seus processos decisórios em diferentes âmbitos. Sem essa participação, as decisões acabam sendo assumidas por grupos que estão no poder, e os docentes, quando participam, são apenas coadjuvantes.
Vale enfatizar que se trata de um tema de grande complexidade e, nas investigações acadêmicas, não pode ser tratado apenas por meio de entrevistas ou depoimentos a serem coletados e analisados pelos acadêmicos, transformando as pessoas em meros objetos de pesquisa. A opção pela pesquisa-ação reconhece a relevância de um debate coletivo que problematiza as situações da realidade, considerando as ideias iniciais do grupo, para que sejam ampliadas com análises e reflexões coletivas fundamentadas teoricamente. Esse é um processo que exige um longo período de estudos, debates e sistematizações.
A pesquisa-ação crítica, nesses termos, tem um caráter político-pedagógico, reconhecendo e valorizando a pluralidade de saberes e o contexto de atuação das pessoas participantes; a forma como leem e agem nesse contexto, para “substituir a colonização cognitiva e emocional dos professores, por uma pedagogia da participação, que vai procurando aproximar o sujeito à sua consciência” (Franco, 2018, p. 105). É, portanto, um processo formativo e emancipatório, nos termos formulados por Freire (2005), que conscientiza sobre o que ocorre na sociedade, nas políticas públicas e suas influências nos processos e práticas escolares.
As intervenções nas práticas escolares, embora ocorram de formas e em amplitudes variadas, provocam renovação da percepção dos participantes, produzindo novos conhecimentos (Monceau, 2005, p. 469). A pesquisa-ação, nos termos aqui relatados, evidencia sua contribuição ao assumir o papel da universidade como local de reflexão crítica, e que requer a indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão.
3. Reflexões finais
A participação de profissionais da educação básica nas pesquisas acadêmicas tem o potencial de contribuir com a aproximação entre as instituições em processos investigativos, ressignificando a indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão. Não há ensino sem pesquisa, nem pesquisa sem extensão, quando se compreende a responsabilidade da universidade com a formação integral, crítica, emancipadora, de todos os estudantes.
Continua sendo necessário problematizar a tensão entre a formação para o mercado de trabalho, para o empreendedorismo, e a formação integral emancipadora para o fortalecimento de uma sociedade democrática, com justiça social. Conforme fundamentos de Freire (1983), uma formação emancipadora não se identifica com a transmissão acrítica de conhecimentos.
Conhecer, na dimensão humana, [...] não é o ato através do qual um sujeito transformado em objeto, recebe dócil e passivamente os conteúdos que outro lhe dá ou lhe impõe. O conhecimento, pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica invenção e reinvenção. (Freire, 1983, p. 16)
Em tal concepção, o ensino, a pesquisa e a extensão não transformam sujeitos em objetos. A prática domesticadora, que vem se mantendo no contexto da racionalidade capitalista, requer sua problematização nos espaços universitários, ressignificando o papel da universidade como espaço da crítica teoricamente fundamentada.
Argumentamos, neste ensaio, que a pesquisa-ação crítica, envolvendo pesquisadores acadêmicos e profissionais da educação básica, promove o reconhecimento das contradições da realidade, dos propósitos e intencionalidades das políticas no campo educacional e seu rebatimento no cotidiano das instituições de ensino.
Há sérias consequências decorrentes da austeridade na atual política de contingenciamento de verbas que atinge o ensino superior e a educação básica, bem como nas políticas que impõem valores hegemônicos de grupos conservadores, com ataques à liberdade de cátedra, à diversidade cultural e de gênero, refutando a pluralidade de ideias e valores, que exigem análises compartilhadas em processos investigativos.
O percurso investigativo na pesquisa-ação crítica possibilita assumir opções em termos de compromisso político-pedagógico configurando ação-reflexão-ação como processos concomitantes, contínuos, que não dissociam teoria e prática e qualificam a práxis (Freire, 2001), dentro de uma perspectiva problematizadora de ideologias antidialógicas, marcadas pela “opressão” e “invasão cultural”, presentes na organização social e política que incidem sobre os contextos escolares, desqualificando a construção de identidades dos docentes e estudantes.
A emancipação de profissionais da educação básica passa pela possibilidade de compreender e analisar a complexidade do cenário atual e sua relação com os processos de ensino e aprendizagem, visando à construção de fundamentos para a elaboração e desenvolvimento do projeto político-pedagógico comprometido com a formação integral de todos os estudantes. Tais conhecimentos, ao serem produzidos nos espaços coletivos de investigação, vislumbram mudanças no âmbito individual, coletivo e institucional.
Não se pretende, com a pesquisa-ação, indicar procedimentos a serem seguidos, mas promover reflexões acerca do contexto em que se dá a ação educativa e seus condicionantes, que podem fazer emergir outros questionamentos e inspirar outras investigações. Quando enfatizamos a relevância da pesquisa-ação crítica, que articula ensino, pesquisa e extensão - concordando com Freire sobre a inadequação do termo extensão -, propomos práticas de pesquisa comprometidas com a formação para uma cidadania consciente, alcançando os envolvidos em suas diversas formas de atuação e com diferentes possibilidades de intervir na realidade.
A universidade não detém conhecimentos absolutos, tampouco as equipes de profissionais da educação básica dominam todos os saberes necessários para uma formação integral e emancipadora. Como afirma Thiollent (1986, pp. 67-68), “o saber do especialista é sempre incompleto [...] e precisa estabelecer alguma forma de comunicação e de intercompreensão com os agentes do saber popular”. Por sua vez, “o saber informal é insuficiente para que as pessoas encarem rápidas transformações”.
Há que se promover espaços de interação, diálogo, para um relacionamento adequado entre os saberes acadêmicos e os saberes da prática. A problematização e sistematização coletiva, considerando a diversidade e pluralidade dos saberes, compõe um cenário rico em possibilidades de atuação para enfrentar as situações, seja no contexto da universidade ou do cotidiano escolar influenciado pelo modelo econômico, político e social dominante. A pesquisa-ação crítica, que integra ensino, pesquisa e extensão, é um caminho profícuo para esse propósito.