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Actualidades Investigativas en Educación

On-line version ISSN 1409-4703Print version ISSN 1409-4703

Rev. Actual. Investig. Educ vol.19 n.3 San José Sep./Dec. 2019

http://dx.doi.org/10.15517/aie.v19i3.38626 

Ensayo

Educação, Estado e ideologia no Brasil: da colônia (1549) à República (1889)

Educación, Estado e ideología en Brasil: de la colonia (1549) a la República (1889)

Education, State and ideology in Brazil: from the colony (1549) to the Republic (1889)

Mériti de Souza1 

Diana Carvalho de Carvalho2 

1Profesora de la Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Dirección electrónica: meritisouza@yahoo.com.br

2Profesora de la Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Dirección electrónica: dianacc@terra.com.br

Resumo

O ensaio trata da relação entre o contexto social, econômico e político e a organização escolar no Brasil de 1549 a 1889. Destacamos mecanismos ideológicos que operaram no período analisado e suas relações com a construção da escolarização brasileira, buscando apontar o caminho histórico percorrido pelas diretrizes governamentais e as transformações no cenário educacional. Nos primórdios da implantação do sistema escolar circulavam ideologias vinculadas às elites, o que não exigia interferência do Estado para sua legitimação. A partir de meados do século XIX, momento em que essas ideologias não convergiam com seus interesses, observou-se a mudança de postura do Estado, no sentido de aumentar o controle sobre a circulação de ideologias no interior das escolas.

Palavras-chave: educação; ideologia; estado; Brasil

Resumen

El ensayo trata acerca de la relación entre el contexto social, económico y político, y la organización escolar en Brasil durante los años comprendidos entre 1549 y 1889. Destacamos mecanismos ideológicos que operaron en el período analizado y sus relaciones con la construcción de la escolarización brasileira. Se busca señalar el camino histórico recorrido por las directrices gubernamentales y las transfromaciones en el escenario educacional. En los inicios de la implantación del sistema escolar circulaban ideologías vinculadas a las élites, lo que no exigía interferencia del Estado para su legitimación. A partir de mediados del siglo XIX, momento que esas ideologías no convergían con sus intereses, se observó el cambio de postura del Estado, en el sentido de aumentar el control sobre la circulación de ideologías en el interior de las escuelas.

Palabras clave: educación; ideologia; estado; Brasil

Abstract

This essay deals with the relationship between the political, economic and social context along with the school organization, in Brazil, from 1549 to 1889. It is possible to emphasize ideological mechanisms that operated in this period and their relations with the construction of the Brazilian schooling, seeking to identify the historical path traveled by the government policies and changes in the educational setting. In the early days of the implementation of the school system, ideologies linked to the elites were circulating, which did not require State interference to legitimize them. From the middle of the nineteenth century, when these ideologies did not converge with their interests, we observed the state's change of position, in order to increase control over the circulation of ideologies within schools.

Key words: education; ideology; state; Brazil

Introdução

As eleições presidenciais que se realizaram no Brasil no ano de 2018 tiveram a polarização como marca e fizeram com que fossem retomados temas considerados já resolvidos no debate nacional, especialmente as polêmicas relacionadas às questões educacionais, sexuais e raciais. O embate entre posições progressistas e democráticas e posições conservadoras e autoritárias com relação especialmente aos costumes constituiu a tônica de muitos debates. Ressaltamos o recrudescimento de discursos e práticas vinculados à naturalização e à simplificação da análise social com relação aos aspectos educacionais, sexuais e raciais presentes na história da sociedade brasileira. Como explicar esse processo, em que ideias e concepções já ultrapassadas do ponto de vista do conhecimento produzido pela intelectualidade do país emergem, sendo incorporadas e repetidas por grande parte da sociedade?

A ideia que defendemos e procuramos desenvolver nesse ensaio é a de que é necessário voltar os olhos para o passado para compreender o presente e lidar com o futuro que se avizinha, sendo a educação uma das chaves para compreender esse processo. É pela educação que são formadas as novas gerações e por meio dela muitas das ideias podem ser reafirmadas ou questionadas no imaginário social do país. Em outras palavras, nosso objetivo é compreender alguns aspectos da história da escolarização no período colonial e no Império, buscando lançar luz sobre o contexto do Brasil atual.

Antônio Candido, no prefácio que faz ao livro Raízes do Brasil, de autoria de Sergio Buarque de Holanda, de 1967, chama a atenção para a importância de uma geração de intelectuais que se dedicaram a explicar o Brasil, a saber: Gilberto Freyre no livro Casa Grande e Senzala; Sérgio Buarque de Holanda no livro Raízes do Brasil e Caio Prado Jr. em Formação do Brasil Contemporâneo. Essas obras foram escritas entre os anos de 1933 e 1942, e Cândido destaca sua importância para a intelectualidade da época: “[...] traziam a denúncia do preconceito de raça, a valorização do elemento de cor, a crítica dos fundamentos ‘patriarcais´ e agrários, o discernimento das condições econômicas, a desmistificação da retórica liberal” (Cândido,1995, p. 11). Não é objetivo do texto a discussão dessas obras, mas sim chamar a atenção para um movimento que buscou compreender o país nos primeiros anos da República. Menos de um século depois, parece que esse movimento se torna necessário novamente para compreender por que tais ideias se mantêm vivas até hoje, mesmo que escondidas nos subterrâneos da população brasileira. Millôr Fernandes, jornalista brasileiro com vasta produção intelectual reconhecida pela qualidade e também pelo estilo ácido e irônico com que analisava a realidade nacional, costumava dizer que o Brasil tem um enorme passado pela frente (Fernandes, 2007). Procurar . entender esse passado é o que nos resta fazer na atualidade, o que não é pouco! Tomar como foco de estudo as relações entre educação, Estado e ideologia parece-nos um primeiro movimento frutífero nessa empreitada.

Várias são as divisões e fases apontadas por pesquisadores e pesquisadoras no estudo da educação brasileira. Considerando que não é nossa pretensão esgotar o tema e apresentar os diversos autores e autoras, optamos por destacar alguns e algumas. Citamos Salvador (1974) que distingue três períodos: a educação colonial, que iria da colônia até 1925; a educação semicolonial, até 1947; e a educação nacional, de 1947 até nossos dias. Paiva (1983) propõe três fases diferenciadas: a primeira, que iria da colônia até 1808; uma segunda fase intermediária, de 1808 até 1870; e a última, de 1870 até a atualidade. Por seu turno, Ribeiro (1978) apresenta oito períodos distintos na história da educação brasileira, qual sejam: o primeiro período compreende os anos de 1549 a 1808; o segundo, de 1808 a 1850; o terceiro, de 1850 a 1870; o quarto período, de 1870 a 1894; o quinto, de 1894 a 1920; o sexto, de 1920 até 1937; o sétimo, de 1937 a 1955; e o oitavo e último período, de 1955 a 1964.

As periodizações apresentadas acima não são aleatórias e, dependendo do autor ou da autora, correspondem a mudanças ocorridas no contexto social e econômico, associadas aos rumos educativos ou, ainda, correspondem a alterações substanciais verificadas na estrutura escolar. Entendemos que os trabalhos mencionados acima denotam preocupação em recorrer a critérios que possam explicitar as relações entre a realidade educacional de um país e seu contexto conjuntural.

Importa salientar a vinculação existente entre o contexto social, econômico e político e a organização escolar no Brasil de 1549 a 1889. Buscaremos analisar o início da educação oficial brasileira, em 1549, com a chegada dos primeiros jesuítas, até o início do século XX, com a Proclamação da República. Utilizamos como recursos analíticos descrever a situação política, econômica e social do país, no período em pauta, a partir do seu entremeio com as mudanças educacionais.

De forma específica, destacaremos mecanismos políticos e ideológicos que operaram no período analisado e suas relações com a construção das escolas brasileiras, buscando apontar o caminho histórico percorrido pelas diretrizes governamentais e as transformações havidas no cenário educacional. Trata-se de um ensaio em que recorremos a diversos autores e autoras vinculados à história da educação no Brasil. Consideramos, ao lado disso, a hipótese de que, no Brasil, nos primórdios da implantação do sistema escolar, o Estado pôde proceder ao abandono da escola, pois nesta circulavam ideologias vinculadas às elites, o que não exigia uma interferência de sua parte. A postura do Estado irá mudar, tentando bloquear a livre circulação de ideologias no interior das escolas, a partir do momento em que essas ideologias deixam de convergir com seus interesses, o que acontece nos meados do século XIX.

Aspectos da história da educação no Brasil

Os jesuítas chegam ao Brasil em 1549 propondo-se a instalar ‘classes de ler e escrever’ em São Vicente, na Bahia, no Espírito Santo e em Pernambuco. Essas classes eram destinadas às crianças indígenas, sendo estas instruídas na catequese e na alfabetização. Às pessoas adultas eram reservados a catequese e o manuseio dos instrumentos agrícolas. Conforme pontua Ribeiro (1978, p. 23):

Entre as diretrizes básicas constantes no regimento, isto é, na nova política ditada, então, por D. João III (17-12-1548), é encontrada uma referente à conversão dos indígenas à fé católica pela catequese e pela instrução. Em cumprimento a isto, chegam, com Tomé de Souza, quatro padres e dois irmãos jesuítas, chefiados por Manoel da Nóbrega.

De fato, a vinda dos jesuítas para o Brasil é organizada com a intenção de, através da alfabetização e da catequese, proceder-se à aculturação das pessoas nativas da terra. Inclusive uma tática utilizada pelos jesuítas era a de tomarem sob seus cuidados as crianças dos caciques, cumprindo com isso dupla função: evitavam o ataque desses últimos aos seus acampamentos e garantiam seu poder de influência na figura do futuro cacique.

Com o correr dos anos, a população colonizada aumentou, e os jesuítas passaram a educar e a instruir os filhos e as filhas dessa população, destinando aos grupos indígenas somente a catequese, já que esta cumpria sua função de docilizar e cristianizar. Posteriormente, o ensino dos jesuítas chega única e exclusivamente a um ensino das elites, com a criação de colégios e seminários, não que inicialmente estivesse voltado aos interesses das pessoas nativas. Essas instituições apresentavam uma proposta educacional totalmente voltada para a elite e comprometida com a coroa portuguesa. Entretanto, dois fatos vêm alterar essa conjunção de interesses: o crescente poder temporal e a crescente influência cultural exercida junto à população.

Em relação ao primeiro ponto, escreve Ribeiro (1978), ao traçar os planos da Companhia de Jesus, Nóbrega havia proposto que leigos administrassem os seus bens materiais (da Companhia). Já nas Constituições, que começam a vigorar a partir de 1556, é colocado que os bens materiais deveriam permanecer na Companhia e serem arrecadados a partir da cobrança de 10% dos impostos pagos pelas capitanias e povoados a El-Rei.

O governo português não contava com essa interferência na sua política econômica e a Companhia, nesse período, já era detentora de inúmeros bens imóveis e propriedades.

Em relação ao segundo ponto, os jesuítas, através da religião e da educação, exerciam grande influência sobre a população, especialmente sobre as mulheres, as crianças e os escravos, já que:

[...] nesse inviolável da casa grande, em que toda a autoridade se concentrava no pater-familias e, tanto os escravos, como os filhos e ainda a mulher, eram conservados numa distância de inferioridade e de subordinação, variável conforme a idade e a condição social, não tardou o jesuíta a penetrar, quebrando em proveito da igreja, pela influência que exerceu sobre a mulher e sobre os filhos, a força discricionária dos senhores de engenho. (Azevedo, 1958, p. 513)

No ano de 1759, os jesuítas foram expulsos tanto de Portugal quanto do Brasil. O Marquês de Pombal, falando em nome do governo português, providencia essa expulsão. Até essa data, os jesuítas foram os únicos educadores que o Brasil conheceu. Fazia-se necessário suprir sua falta, e nesse mesmo ano são criadas as aulas avulsas (aulas régias), contrapondo-se ao sistema adotado pelos jesuítas de organizarem o ensino em cursos, como o de Humanidades. Essas aulas dividiam-se em latim, grego, filosofia e retórica. Entretanto, esse sistema não funcionou, pois na realidade o Marquês de Pombal “[...] quis transplantar para o Brasil, não só o mesmo sistema de ‘Aulas Régias’, como também o programa científico da sua reforma” (Salvador, 1974, p. 193).

Importa salientar que, até essa data, existia no Brasil um ensino comprometido com a elite e preocupado apenas com a manutenção das condições sociais, econômicas e políticas existentes. Posteriormente, com a consolidação do domínio português, observa-se o total descaso com a educação.

No ano de 1807, Portugal é invadido por tropas francesas, e a família real parte para o Brasil. Aqui chegando, a corte portuguesa encontra a colônia sem a estrutura adequada às suas necessidades. A corte necessitava de proteção militar, médicos, juristas, economistas, dentre outros aparatos e profissionais. Diante desse contexto, D. João VI adota duas medidas que terão ampla repercussão no futuro do Brasil: procede à abertura dos portos e cria inúmeros cursos superiores destinados a suprir as necessidades da corte. Cabe ressaltar que esses cursos superiores não eram universidades, na maioria dos casos nem mesmo cursos estruturados, mas configuravam aulas com objetivos estritamente profissionalizantes. (Farias, 2013; Slemian e Pimenta, 2008 e Kenneth, 2008). Foram criadas a Academia de Marinha em 1808 e a Academia Real Militar em 1810. Instalaram-se um curso de cirurgia no Hospital Militar da Bahia e um curso de Economia em 1808. Um de Agricultura em 1812, outro de Química em 1817 e ainda um de Desenho Técnico em 1818. Na cidade do Rio de Janeiro, em 1809, foram criados cursos de Anatomia, Cirurgia e Medicina. Um laboratório de Química em 1812 e um curso de Agricultura em 1814 (Cunha, 1979).

Autores como Fernando Azevedo (1958) assinalam a importância desse período, pois, como já pontuado, apesar de cumprirem uma função imediatista e assumirem um caráter utilitarista, esses cursos quebram com a tradição de ensino escolástico e literário. Principalmente, eles vêm a se constituir em alicerce de inúmeras instituições nacionais educativas e culturais. Entretanto, preocupa-nos nesse tipo de afirmação o fato de que nela não é analisada a permanência do caráter elitista da educação, já que esses cursos eram destinados à elite da colônia e somente foram criados devido às necessidades da corte.

O ensino primário e secundário, que nesse período também eram destinados à elite, praticamente não sofrem alterações substanciais. O ensino primário continua com seu caráter de ‘escola de ler e escrever’, sendo criadas algumas cadeiras de primeiras letras, e o ensino secundário continua com o sistema de aulas régias.

Nesse período, com a sociedade brasileira firmemente estratificada e dividida entre pessoas dominantes e dominadas, a função da escola era a de atender às elites, formando os futuros quadros dirigentes. Assim, não havia a demanda para que ela funcionasse como agente ideológico junto às camadas populares, visto que estas não tinham acesso à escola, e isto explica o total descaso das autoridades e do governo em relação à educação.

Com a desocupação das tropas francesas do território português em 1809 e a demora por parte da corte em retornar a Portugal, verifica-se um crescente descontentamento, que culmina com a Revolução Constitucionalista Portuguesa, em 1820. Em decorrência de tal situação, a corte e a família real se veem forçadas a retornar a Portugal e a elite portuguesa passa a insistir no fechamento dos portos brasileiros, assim como na perda da condição de Vice-Reino conferida ao Brasil (Norton, 2009).

Nesse momento, temos o ápice de um processo que vinha se arrastando há anos: a quebra da aliança estabelecida entre as elites portuguesa e brasileira, bem como o estabelecimento de uma nova aliança entre Portugal e Inglaterra.

Para explicitar os motivos do rompimento entre as elites portuguesa e brasileira, vale ressaltar as afirmações feitas por Xavier (1980) de que, por ocasião do início da colonização brasileira, predominava nos países europeus o modo feudal de produção. Porém, com o crescente surto de industrialização decorrente da Revolução Industrial e o advento do sistema capitalista de produção, com a suplantação do capital comercial pelo capital industrial, a burguesia em ascensão subjuga os senhores feudais em alguns países europeus, notadamente na Inglaterra.

Portugal não acompanha a mudança efetuada na nova ordem econômica, permanecendo sua economia dependente da exploração das colônias que exportavam matérias-primas. Nesse momento, sua necessidade de importação de produtos manufaturados leva o governo português a uma crescente dependência da Inglaterra.

Conforme já apontamos anteriormente, nos primórdios do período colonial, as relações da elite portuguesa com a elite brasileira não enfrentavam maiores problemas, visto o entrelace de seus interesses. Entretanto, com a perda de seu poderio econômico, Portugal passa a exercer uma forte ação centralizadora e controladora sobre o Brasil, haja vista a necessidade do primeiro em sustentar sua decadente elite. Essas ações controladoras, que envolviam a proibição do livre comércio brasileiro com outros países e a proibição da produção de determinados produtos, impedem o acesso brasileiro a novos mercados e a venda direta de matérias-primas a outros países. Quando ocorre a abertura dos portos, a elite brasileira experimenta as vantagens do livre comércio, em especial com a Inglaterra, sendo que a esta última interessava sobremaneira a conquista do mercado brasileiro e a derrubada do monopólio português (Vianna, 1970).

É possível encontrar nesse contexto as principais causas econômicas da quebra de aliança entre as elites brasileira e portuguesa e também o surgimento de interesses comuns entre Inglaterra e Brasil. Essas mesmas causas serão os fatores propulsores da independência brasileira, independência essa realizada pela classe dominante com o apoio da nascente classe média nacional e da classe dominada, embasada na concepção liberal.

A introdução da ideologia liberal no Brasil ocorreu com os ventos liberalizantes que sopravam da Europa, sob a influência da Revolução Francesa. Os intelectuais e políticos foram atraídos por essas novas concepções de mundo e forma de organização da sociedade. Porém, eram principalmente as pessoas do Brasil que estudavam na Europa e que ao retornarem, traziam na bagagem os ideais de liberdade e de defesa da propriedade privada.

É necessária a compreensão da ideologia liberal e da sua ascensão no contexto da época para depreendermos os novos rumos tomados pela educação sob sua égide. O processo da ideologia é analisado por Chaui (2004), que dedica parte dos seus estudos a trabalhar a leitura que Marx e Engels (1982) fizeram desse processo no seu entrelace com a alienação. Segundo a autora, para compreender a ideologia é necessário recorrer aos aportes dos estudos de Marx e Engels, pois esses autores desenvolvem a leitura sobre o Estado como centralizador do poder na sociedade, bem como apontam a questão da classe social como fundamental na hierarquia e na dominação presentes na sociedade. Conforme destaca Chaui (2004), para Marx e Engels, a ideologia envolve um processo que abarca aspectos subjetivos e objetivos associados às condições concretas de vida das pessoas. Ou seja, as condições concretas de vida das pessoas induzem-nas à imersão em práticas e representações que não lhes possibilitam se reconhecerem como produtoras dessas mesmas práticas e representações.

Assim, entendemos por ideologia o conjunto de concepções produzidas por uma classe social - no caso, a classe dominante - que busca oferecer explicações e leituras acerca da realidade da sociedade e das pessoas. Essas concepções oferecem determinados sentidos à realidade que são originários do modo de vida da classe dominante e buscam preservar o poder e o status quo desta classe. Nessa perspectiva, as concepções que conformam a ideologia operam ao produzir leituras fictícias da realidade, pois não apresentam as desigualdades e as contradições que compõem a organização social e operam subjugando as pessoas através dessas leituras abstratas (Chauí, 2004; Chauí e Franco, 1985).

Segundo Munakata (1981), o liberalismo pregava a igualdade de todas as pessoas (perante a lei) e o livre acesso às oportunidades. Ele se assenta na defesa da sociedade contratual, pois um contrato só pode ser celebrado entre livres e iguais, sendo um dos contratantes o proprietário ou a proprietária dos meios de produção e a outra pessoa apenas detentora da sua força de trabalho. São palavras do autor:

Todo indivíduo tem a propriedade do seu corpo, de suas capacidades e, por isso mesmo, todos os homens considerados individualmente são iguais entre si, são todos proprietários. E como cada um tem plenos direito sobre a sua propriedade, ele pode usá-la como bem entender, de acordo com a sua livre vontade: o indivíduo é livre, por exemplo, para empregar o seu corpo no trabalho, cujos frutos tornam-se sua propriedade privada, só dele. (Munakata, 1981, p. 11)

É possível entender a ideologia liberal como um conjunto de representações e concepções sobre a realidade e sobre as pessoas, elaborado pela classe dominante. Essas representações apresentam sentidos e explicações sobre a realidade que se disseminam e ganham status de verdade, sendo apropriadas pelas pessoas que compõem a classe dominada e sendo por elas entendidas como representações verdadeiras acerca da sua realidade. Assim, as concepções do liberalismo envolvem uma teoria econômica e social que não aponta as contradições e as impossibilidades de manter a igualdade, a liberdade e o livre contrato em uma sociedade formada por classes diferencias em que detentores ou detentoras dos meios de produção exercem seu poder sobre aqueles ou aquelas que vendem sua força de trabalho.

Mediante a disseminação dos pressupostos liberais no solo nacional, ocorre a necessidade da modificação, ou aparente modificação, efetuada pelos novos grupos dirigentes do Brasil independente em relação à educação, já que esta passa a ser entendida como direito de todos os cidadãos e cidadãs. Foi essa fachada liberal que levou parlamentares da Assembleia a demonstrar seu interesse pela promoção e instrução das pessoas do povo. Fazia-se necessária a demonstração dessa preocupação e isto foi efetivado a partir de longas discussões e debates sobre a educação na Assembleia, pela apresentação de leis que visavam à instauração do ensino primário no território nacional, entre outras medidas.

Estas discussões serviam como forma de mascarar a realidade da independência brasileira, isto é, a efetivação dos interesses econômicos e políticos de uma minoria. A chamada Assembleia Constituinte e Legislativa é convocada em 1823 e funciona durante seis meses. Nesse ínterim, produz dois projetos de lei: o Tratado de educação para Mocidade Brasileira e o Projeto de Criação de Universidades.

Em relação ao primeiro, entendia-se como necessária a criação de um tratado que abrangesse a educação brasileira, sendo instituída uma condecoração a quem apresentasse o melhor tratado. Com tal projeto, os constituintes descartavam sua participação efetiva na resolução da questão, pois colocavam a criação de um tratado sobre educação como primeiro passo, protelando as medidas concretas para efetivação de um sistema educacional no Brasil. E, quando a Comissão de Instrução apresenta o primeiro projeto, este é amplamente discutido, convenientemente esquecido e não aprovado.

Em relação ao projeto de Criação de Universidades, este é aprovado, porém a Assembleia é fechada em 12 de novembro de 1823, e o projeto não é efetivado.

Acreditamos que neste momento se explicita a diferença de tratamento oferecido ao Projeto das Universidades, que é aprovado, pois era de interesse das elites dominantes a criação de universidades para bem servir aos seus filhos e suas filhas. Em contrapartida, o primeiro projeto relativo ao ensino elementar serviu para demonstrar os propósitos liberais dos constituintes e do governo ao pugnarem em favor do direito da maioria ter acesso à educação.

Com a reabertura da Assembleia, as discussões retornam, dessa vez girando em torno do ensino primário (escola de primeiras letras), que começa a ser encarado como panaceia para os males brasileiros, já que a concepção que predominava era a de que um país só poderá ser realmente independente com um povo culto instruído, sendo assim aprovado o Decreto das Escolas de Primeiras Letras, no ano de 1827.

Esse decreto legislava sobre a criação dessas escolas nas cidades e vilas, sobre o conteúdo a ser ministrado e regulamentava o salário de professores e professoras, mas, conforme pontua Azevedo (1958, p. 564):

[...] desse movimento político em favor da educação popular e que se manifesta nos debates e nas indicações apresentadas na Assembleia Constituinte, dissolvida em 1823, não resultaram senão a lei de 20 de outubro de 1823, que aboliu os privilégios do Estado para oferecer instrução, inscrevendo o princípio da liberdade do ensino sem restrições; o artigo 179, número XXXII, da Constituição outorgado pela coroa, em 11 de dezembro de 1823, que garante a instrução primária gratuita a todos os cidadãos; e, afinal, a lei de 15 de outubro de 1827 - a única que em mais de um século se promulgou sobre o assunto para todo o país e que determina a criação de escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugarejos (art 1º) [...]. Os resultados, porém, dessa lei que fracassou por várias causas, econômicas, técnicas e políticas, não corresponderam aos intuitos do legislador; o governo mostrou-se incapaz de organizar a educação popular no país.

Com a afirmação acima, o autor evidencia um equívoco de avaliação que, por anos, perdurou com relação ao estudo da história educacional brasileira, pois, apesar de levantar implicações econômicas, técnicas e políticas que estariam ligadas ao fracasso das iniciativas educacionais, em última instância, Azevedo demonstra que a ineficiência e a desorganização do Estado brasileiro, após a independência, foram os principais responsáveis pelos desacertos e abandonos do ensino elementar.

De fato, a educação popular não interessava ao Estado, já que não se fazia necessária ao interesse das elites, dada a situação social e econômica nacional: um terço da população era composto por escravos, outra grande parcela era composta por mulheres e uma pequena parcela pela nascente classe média. As elites estudavam em casa, com preceptores particulares, com os quais completavam seu ensino primário e secundário e, depois, dirigiam-se para os cursos superiores mantidos pelo Estado ou para a Europa.

A análise acima se confirma ao verificarmos, alguns anos depois, a promulgação do Ato Adicional à Constituição ou Ato Adicional Diogo de Feijó (1834), no qual o governo reserva a si a tarefa de educar as elites, deixando a cargo das províncias a educação popular. Ou seja, esse Ato tanto designa ao governo central a organização do ensino superior quanto preconiza a descentralização do ensino primário e secundário, transferindo do governo para as províncias a manutenção e organização destes últimos.

Entretanto, em todo o período é inegavelmente o Ato Adicional o instrumento legal mais importante para a educação popular no Brasil, com consequências que podem ser observadas ainda hoje no país. Ao promulgar a descentralização do ensino elementar, transformando Conselhos Provinciais em Assembleias Legislativas Provinciais com competência para legislar ‘sobre a instrução pública e estabelecimentos próprios para promovê-la’, o Ato Adicional eliminou quaisquer pretensões de uniformização do ensino do primeiro grau em todo o país. (Paiva, 1983, p. 62)

A partir desse momento, a educação passa a assumir as mais diferentes feições dependendo da província e podemos inferir o problema daí advindo, pois as províncias não apresentavam condições para arcar com tal responsabilidade. Essa situação decorria de vários fatos, mas podemos citar que nem o governo central conseguia equilibrar sua política econômica, visto que se encontrava sem recursos e começava a realizar empréstimos estrangeiros.

Data dessa época o início da dependência econômica do Brasil, pois os empréstimos, principalmente da Inglaterra, tornavam-se cada vez mais difíceis de serem pagos devido ao aumento dos juros. Nossa economia não conseguia recuperar-se dada à concorrência enfrentada e à impossibilidade da produção de manufaturados que suprisse o mercado interno, cada vez maior.

Outro aspecto a ser examinado com a promulgação do Ato Adicional é o florescimento do ensino privado, cenário em que a escola secundária passa a constituir-se, basicamente, por iniciativas particulares, nela predominando os métodos tradicionais. Assim, o resultado desse processo evidenciou que

[...] houve um recesso da educação pública, dando oportunidades para que brilhassem alguns colégios particulares [...]. Aliás, o desenvolvimento dos colégios particulares no Brasil deve-se à providência do Ato Adicional e à ausência do governo neste setor do ensino secundário. (Salvador, 1974, p. 196)

Entretanto, mesmo com sua omissão em relação ao ensino primário e secundário, o governo central manteve o sistema de exames parcelados para quem desejasse entrar no ensino superior. Assim, o estrito interesse dos alunos e das alunas pelas matérias concernentes a esses exames, limitando-se sua formação secundária a uma mera repetição de fatos, datas, leis, dentre outros.

Nesse período, o ensino secundário funcionava única e exclusivamente como forma de acesso ao nível superior. A escola era destinada basicamente aos grupos dominantes, começando nessa época o ingresso da nascente classe média na escola como forma de ascensão social. Ainda é possível acompanhar nesse período a configuração de uma classe média, em decorrência da consolidação das atividades administrativas do Estado, gerando o grupo dos funcionários públicos; das atividades comerciais, gerando os pequenos comerciantes; das profissões liberais, produzindo médicos, agrônomos, engenheiros, entre outros; e mesmo a consolidação do exército, com a formação de profissionais nessa área (Lopes, Faria Filho e Veiga, 2000).

São esses grupos de profissionais recém-consolidados que passam a compor o que podemos denominar de nascente classe média, bem como é essa classe que começa a pressionar o governo a fim de obter a ampliação e expansão do ensino, já que a escola começa a constituir-se em meio de ascensão social e forma de alcançar o poder.

Nesse contexto, em 1854, é estabelecida a obrigatoriedade do ensino, norma que não é cumprida por falta de professores e professoras, de escolas, de materiais, dentre outros fatores. Essa situação gera grandes debates entre os intelectuais e políticos. Esses debates perduram, e, nos últimos anos da Monarquia, as questões mais discutidas seriam: a difusão do ensino elementar (gratuidade, obrigatoriedade e participação ou não do governo central nas despesas das provinciais com a educação primária), a educação das pessoas adultas analfabetas, o ensino profissional e a formação dos professores e professoras do curso primário (Almeida, 1989).

Além da consolidação e do início da participação da classe média nos meios políticos, a cultura do café, em franca expansão, assegura a ascensão dos quadros políticos dos senhores do café, que passam a dominar a máquina administrativa, mas sempre em parceria com os fazendeiros ligados à produção da cana. Entretanto, a cana de açúcar era um produto em decadência no mercado econômico mundial e a parceria com seus produtores não interessava as pessoas que detinham a produção do café. Ocorre então a aliança destes últimos com a crescente classe média, em especial com os militares, por aspirações republicanas.

A República interessava as pessoas que detinham a produção do café em razão de seu sistema federativo, o qual promoveria a autonomia das províncias (futuros estados federados) e facilitaria sua concentração de renda. Ainda, interessava aos militares, como meio de acesso ao poder.

Na Proclamação da República, é possível observar a repetição do ocorrido com a Independência, isto é, a classe dominante controla o processo, impedindo que ele vá além dos seus interesses e, apesar de no primeiro momento contar com o apoio de camadas da classe dominada, no segundo momento, alija-as do poder.

No caso da República, temos outros componentes, quais sejam: a participação decisiva dos militares, que também configuram a classe média, e a dificuldade encontrada pelas oligarquias de alijá-los do poder. Nesse contexto, os membros da classe média passaram a funcionar como fiel da balança, pendendo sempre, nos momentos cruciais, para o lado dos dominantes, o que não impede que estes últimos os dispensem quando não são mais considerados necessários.

Nas discussões acerca da elaboração da Constituição de 1891, o governo provisório apresenta ao Congresso um projeto com que procurava devolver ao governo central a iniciativa de criação e manutenção da educação (primária, secundária e superior) nas províncias e no Distrito Federal. Entretanto, esse projeto é rejeitado, predominando a orientação descentralizadora, na qual as províncias se responsabilizavam pelo ensino primário; e o governo central, pelo secundário e superior.

É necessário também contextualizar o fato de que a ideologia liberal anima os ideais de grande maioria das pessoas que se denominam republicanas, porém é possível identificar o avanço da influência positivista. Assim, nesse contexto brasileiro de final do século XIX, tanto liberais quanto positivistas começam a encarar o ensino como forma de resolução dos problemas nacionais. Eles defendiam ainda a separação entre a Igreja e o Estado, e, em 1890, com explícita influência positivista, é decretada a Reforma Benjamim Constant, que preconiza a gratuidade do ensino primário e a laicidade da educação.

A Constituição de 1891 teve inspiração liberal e, como tal, adotou a “[...] ideia de um poder central que, sobre a base de uma organização federativa, haveria de limitar-se ao poder de polícia, garantidor dos direitos e das liberdades individuais, sem intervir no processo econômico e social” (Villalobos, 1969, p. 1). Essa orientação reflete o regime federativo adotado pela República, e, em relação ao ensino, esse regime reflete-se na manutenção da dispersão da competência da educação espalhada entre os estados. Ainda nessa Constituição é conferido o caráter leigo à educação oficial e a proibição do voto à população analfabeta. A proibição do voto dessa população, que foi incorporada à Constituição, existia desde 1882.

Podemos analisar que o preconceito em relação à pessoa analfabeta, concebida como incapaz, que predomina até os dias atuais, encontra algumas das suas raízes nessa proibição. Até o final do Império não havia essa necessidade de instrução para os componentes das elites, pois até alguns membros da família real eram analfabetos. Em linhas gerais:

[...] a Carta de 1891 limitou-se a assegurar à União competência privativa para legislar sobre o ensino superior da capital da República (Art. 34, nº 30), a encarregá-la da instrução militar dos corpos e armas e da ‘instrução militar superior’ (Art. 87, § 2º), e a atribuir ao Congresso a tarefa, não privativa, de ‘animar, no país, o desenvolvimento das letras, artes e ciências’ (Art. 35, §§ 2º, 3º e 4º). (Villalobos, 1969, p. 2)

Segundo Florentino (1997), as últimas décadas do século XIX serão palco de uma tentativa de industrialização no país, oriunda de uma disponibilidade de capitais gerada com o fim do tráfico de escravos e escravas (1850), dado que os capitais empregados na sua compra ficaram disponíveis e, com o surgimento da lavoura do café, proporcionaram uma nova fase de prosperidade à economia.

Esse cenário permite que os liberais industrialistas entrem em choque com a oligarquia agrária após a Proclamação da República, buscando a hegemonia pelo poder. Porém, estes últimos contam com fortes ligações com o capital estrangeiro e, com as crescentes crises enfrentadas pelos industrialistas, recuperam seu poder econômico e político. Assim, temos o restabelecimento do poderio dos fazendeiros e o surgimento da ‘política dos coronéis’ e dos governadores.

No tocante à educação, podemos resumir sua situação nesse contexto da fase pós-republicana da seguinte forma, com a afirmação de Paiva (1983, p. 79): “[...] os primeiros 25 anos do regime republicano não diferem das duas últimas décadas do império”. É apenas a partir da década de 30 do século XX, ou seja, há menos de um século, que as discussões sobre a educação laica, gratuita e obrigatória, bem como as ações para a organização de um sistema nacional de ensino, tornam-se tema dos debates nacionais e recebem uma ação efetiva por parte do governo nessa direção.

Considerações finais

O exposto até aqui permite aquilatar a herança do Brasil Colônia e Império para a constituição da educação nacional: a inexistência de um sistema educacional destinado à população com um todo, além da presença de um forte caráter ideológico. Como observamos nas análises realizadas anteriormente, no início da colonização brasileira a educação foi utilizada como fator ideológico, aculturando e incutindo nas pessoas nativas específicas concepções acerca da superioridade das pessoas colonizadoras. Paralelamente à educação, a religião também cumpriu essa função.

Entretanto, a Igreja passa a atropelar o governo, arrebanhando antes devotos fieis ao invés de servidores da Coroa. Esse fato, acrescido da ameaça temporal que os jesuítas passaram a constituir, determina sua expulsão do Brasil, não sem antes o governo ter-se assegurado de que sua missão estava cumprida. Entenda-se bem: não a missão de ensinar, mas sim a missão de subordinar tanto os nativos e as nativas quanto os colonos e as colonas aos interesses da Coroa e da Igreja.

Ora, essa expulsão reflete também a disputa ideológica entre a Igreja e o governo português na busca pela hegemonia do poder na sociedade brasileira da época, deixando claro que se trata de uma disputa periférica, na medida em que, de um modo geral, os interesses entre Igreja e Absolutismo permanecem.

A partir desse fato, não mais interessa a educação na colônia, já que esta havia cumprido seu papel e as condições internas favoreciam esse desinteresse. Assim, por um lado, a elite deslocava-se à Europa, instruindo-se na Universidade de Coimbra ou congêneres e, por outro, a maioria da população, como visto anteriormente, era composta por escravos, mulheres e pequenos comerciantes. Além do mais, a coroa portuguesa dispunha de outras instituições (na colônia) veiculadoras da sua ideologia (famílias, Igreja), e, diante de tal quadro, essas outras instituições cumpririam essa função, tornando a escola dispensável.

Importa salientar que a situação descrita acima permanece por longas décadas, sofrendo alterações com a vinda da família real para o Brasil, mas são alterações temporárias, nas quais a criação de novas escolas (cursos superiores) obedece a necessidades imediatas do governo, destinando-se à elite colonial.

Em meados do século XIX, com a nascente classe média, impõe-se outra realidade, pois essa classe passa a ver na escola um meio de ascensão social e a reivindicar uma maior atenção, por parte do Estado, a essa instituição. Do mesmo modo, com a consolidação do seu aparelho burocrático, o Estado também passa a ter necessidade de ampliar o número de escolas e popularizá-las, já que precisa agora de um contingente maior de indivíduos que saibam ler e escrever para ocuparem esses cargos burocráticos.

Pressionado frente a uma nova sociedade, na qual a estratificação social já não é tão rígida e permite aos filhos e as filhas da classe média o acesso a cargos dirigentes, o Estado volta sua atenção à escola, buscando-a como possível agenciadora dessa classe.

Não obstante, apesar de partilharmos da análise acima, preocupa-nos nessa análise a concepção de escola por ela veiculada, entendida exclusivamente como transmissora da ideologia dominante. Acreditamos que tal fato se explique por dois motivos. O primeiro é que, dada a rígida estratificação social vigente até meados do século XIX, a escola era uma instituição caracteristicamente burguesa, predominando nela a circulação de ideologias das camadas dominantes, ou seja, predominava na escola, nesse período, a disputa entre ideologias da elite.

O segundo motivo é que, infelizmente, a historiografia nacional é majoritariamente a historiografia daqueles que vencem e apenas nas últimas décadas do século XX é que pesquisadores e pesquisadoras passaram a considerar a história educacional brasileira sob a ótica dos dominados e das dominadas. Nessa perspectiva, pouco se conhece sobre os prováveis movimentos e conflitos ideológicos engendrados nesse período no interior das instituições escolares.

Com a ascensão da classe média à escola, passam a circular nesta instituição ideologias não identificadas com a dominante e este, além dos motivos já citados, é outro fator que leva o Estado a mudar sua postura perante a educação. Assim, acompanhamos nesse período uma crescente onda de discursos e pronunciamentos a favor da educação e da disseminação de escolas.

Como abordado anteriormente, estes discursos caíram no vazio, porém eles cumpriram sua principal função, demonstrando o quanto a ideologia liberal em ascensão era democrática.

Entretanto, o que fica explícito, principalmente nos períodos posteriores ao estudado, isto é, ao longo do século XX, é a consolidação da educação no país, principalmente em relação à sua importância em termos de disseminação e produção de ideologias:

O Estado percebe a importância da educação e sua dimensão política de inculcar a ideologia e práticas educacionais que lhe convém, especialmente a de impor a concepção da naturalidade na divisão do trabalho para a paz social. E como a ‘elite’ é a única capaz de educar a ‘massa ignorante’, e como a ‘elite verdadeira’ é a que perfila com as linhas diretrizes do autoritarismo, será a esta atribuída a missão de educar [...]. (Cury, 1978, p. 124)

Florestan Fernandes, ao discutir a formação política do professorado em um texto publicado em 1987, contribui para a compreensão desse processo. O autor chama a atenção para o fato de que a grande tradição cultural brasileira é de um elitismo cultural fechado, em uma sociedade em que se cultivou, sempre, a filosofia da ilustração, baseada apenas no conhecimento livresco e superficial. Isso prevaleceu no período colonial e não foi desagregada nem como a Independência, nem com a República. O autor caracteriza a sociedade brasileira como uma sociedade altamente hierarquizada, que precisava do intelectual, ao mesmo tempo em que desconfiava dele.

Segundo Fernandes (1987), o interesse pela atividade intelectual estava vinculado à importância das atividades administrativa e política exercida pelos profissionais liberais. No caso, esses profissionais liberais são pessoas que trabalhavam para o Estado. É nesse contexto que o autor identifica qual o papel associado a essas pessoas que exerciam preponderantemente as atividades professoral e intelectual:

O próprio professor interessava à medida que era um agente puro e simples de transmissão cultural. [...]. Nesse contexto, o intelectual era, por assim dizer, domesticado, quer fosse de origem nobre ou de origem plebeia, automaticamente se qualificava como um componente da elite e, quando isso não ocorria, como sucedeu com os professores de primeiras letras, ele era um elemento de mediação na cadeia interminável de dominação política e cultural. (Fernandes, 1987, p. 16)

Fernandes (1987) entende o professorado como um instrumento de dominação, uma categoria composta por pessoas que ficavam muitas vezes nas cadeias mais inferiores do processo social, mas que tinham como responsabilidade socializar as crianças nos moldes dos valores da sociedade dominante. Tais valores constituíam uma cultura cívica restrita, tanto no Império quanto na República, pois a democracia era das oligarquias. O acesso à cultura cívica era restrito a uma minoria privilegiada em termos de riqueza, de poder e de saber. Da mesma forma, a ideia de nação era restrita a essa minoria: “Na carência de uma cultura cívica, a sociedade civil não era uma sociedade civil civilizada. Era uma sociedade civil rústica, uma sociedade civil na qual o despotismo senhorial ou o mandonismo, com outros componentes, tinham um papel vital” (Fernandes, 1987, p. 18).

Nosso objetivo neste ensaio não foi esgotar as análises sobre as relações entre educação, Estado e ideologia no período considerado, mas, sim, oferecer condições para que sejam identificados seus reflexos presentes, até hoje, na sociedade em geral e na educação em particular. Salientamos que muitos aspectos dessa herança se apresentam, ainda, no contexto nacional, no qual o Estado abdica da preocupação com a escolarização como ferramenta fundamental para a construção da democracia. Os recentes cortes de recursos para a educação pública, no Brasil, anunciados pelo atual governo, exemplificam a continuidade desse descaso, consoante com a adoção de uma política liberal que penaliza principalmente as classes populares.

Entendemos que continuar a busca por compreender como tais relações se desenrolam ao longo dos séculos XX e XXI é um trabalho urgente e necessário para os pesquisadores e as pesquisadoras atuais. Esperamos ter dado nossa contribuição!

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Recebido: 28 de Março de 2019; Aceito: 15 de Julho de 2019

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