Introdução
As implicações decorrentes da Agenda 2030 para alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio na saúde materno-infantil demonstrou a necessidade de melhoria de sistemas de saúde mundiais e de construção de políticas de saúde materno-infantil amplas, acessíveis e equitativas.1
Países desenvolvidos apontam uma taxa de mortalidade materna de 12 óbitos para cada 100.000 nascidos vivos, com grande diferença quando comparado com países subdesenvolvidos que demonstram índice de até 239 óbitos maternos para cada 100.000 nascidos vivos.2 No Brasil, observando-se os indicadores de saúde materna nos últimos anos, percebe-se evoluções importantes na diminuição desses indicadores, no entanto ainda há muito a avançar, sendo que a taxa geral no país se apresenta atualmente em 64,8 mortes para 100.000 nascidos vivos.3
Uma das maiores estratégias brasileiras para dirimir índices materno-infantis consiste no cuidado no pré-natal (PN) implementado através da atenção primária à saúde (APS), mais especificamente da Estratégia de Saúde da Família (ESF), e da efetivação do modelo de saúde materno-infantil Rede Cegonha nos municípios.4 Entretanto, apesar do aumento da cobertura do pré-natal e de melhoria da acessibilidade aos serviços em saúde, percebe-se que a qualidade do cuidado se mostra insatisfatória em diversos aspectos, como na identificação de gestações de risco através de integração de programas e atividades nas redes de atenção, e no desenvolvimento de ações de educação em saúde como orientações sobre cuidado diante de dor dentária, tratamento de gengivites e periodontites para melhoria de qualidade da saúde bucal.5, 6,7
Do mesmo modo, o acompanhamento odontológico no PN como programa de saúde bucal que atua conjuntamente às estratégias de acompanhamento e desenvolvimento da gravidez, vem a partir da necessidade de assegurar qualidade no tratamento odontológico de mulheres gestantes, que diversas vezes não têm informações adequadas de cuidados assim como apoio na gravidez, e ainda postergam as consultas bucais em virtude da acessibilidade limitada, falta de informação, elementos culturais e práticas populares.6,7
Neste contexto problemático, a adoção de práticas interdisciplinares se apresenta como ferramenta para superar a fragmentação da atenção em saúde e do processo saúde-doença relativo aos processos assistenciais e de cuidado, e conseguir melhoria nos índices de saúde. De modo concomitante, o conhecimento descontextualizado e a segmentação na formação em saúde comprometem a compreensão ampliada do processo de saúde e adoecimento, assim como no desenvolvimento das habilidades necessárias para atuar colaborativamente e interprofissionalmente.8
As práticas interdisciplinares no acompanhamento da saúde bucal das gestantes possibilita união de competências de cada profissional que realiza o acompanhamento na gravidez, seja médico, enfermeiro ou cirurgião-dentista, interrelacionando habilidades, conhecimentos e práticas para oferecer cuidado bucal de qualidade, diminuição de possíveis complicações habituais do período gestacional, promoção de educação em saúde bucal e oferta de tratamento dentário adequado.6,8
Neste contexto, apesar de debates consistentes desde os anos 1970 na área de formação e ensino, a interdisciplinaridade e sua relação com a ciências da saúde e enfermagem é precária especialmente relativo à formação docente deficiente, falta de afinidade entre docentes e resistência às mudanças. Apesar desses contrapontos, avanços também são apontados especialmente na articulação com outros cursos, com visão ampliada, que propicia conhecimento agregado e trabalho em grupo.9
Conhecendo as associações entre saúde bucal e gestação e o enfermeiro sendo um dos profissionais responsáveis pelo pré-natal de risco habitual juntamente ao médico, torna-se veemente discutir e aprofundar questões relacionadas ao cuidado bucal com outros profissionais responsáveis como o cirurgião dentista.
Devido às fragilidades relativas a modelos de assistência materno-infantil no Brasil e da qualidade do cuidado insatisfatória, seja no pré-natal, parto, puerpério e acompanhamento infantil, é necessário desenvolver habilidades interdisciplinares e integrar profissões de saúde para qualificar índices e indicadores em saúde.4,5,8,10É relevante que as práticas integradas entre equipe do pré-natal e equipe odontológica sejam fundamentadas na interdisciplinaridade para ampliação da qualidade desse cuidado no pré-natal odontológico e desmistificação profissional e das mulheres sobre o acompanhamento odontológico para potencializar o alcance das gestantes.11
Ademais, percebe-se insuficiência de pesquisas que explorem as nuances do pré-natal e do acompanhamento odontológico desenvolvido pelos profissionais de saúde de atenção primária e suas interrelações para o desenvolvimento de práticas integrais e efetivas no cuidado à mulher.6,11
Diante desse cenário, surgiu o seguinte questionamento: Como ocorre a interdisciplinaridade das ações do enfermeiro e cirurgião-dentista na efetivação do acompanhamento odontológico do pré-natal da gestante? Desse modo, o estudo objetiva analisar a interdisciplinaridade no acompanhamento odontológico no pré-natal na perspectiva do enfermeiro.
Metodologia
Estudo com abordagem qualitativa fundamentado na Hermenêutica-dialética de Gadamer e Habermas. Pesquisas sociais com abordagem qualitativa são recursos que possibilitam a identificar significados, sentidos e valores culturais implícitos na organização social e processos de vida.12,13,14
Utilizou-se para manter rigor metodológico dentro do desenho do estudo, o Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ).15
A pesquisa foi realizada no período de junho a agosto de 2018, em seis Unidades de Atenção Primária à Saúde (UAPS) de uma metrópole do Nordeste do Brasil de um total de 115 UAPS, selecionadas por serem referências em atenção primária para cada Coordenadoria Regional de Saúde (CORES), e com grande número de gestantes adscritas à esses espaços. Cada CORES abrange respectivamente: I com 18 bairros, II com 20, III com 17, IV com 20, V com 15 e VI com 29 bairros; possuem diversidades demográficas, econômicas e socioculturais distintas, com 134 equipes de ESF e população total do município de 2.643.247 habitantes no ano de 2018.16,17Foi escolhida uma de cada CORES do município, de forma aleatória por sorteio, a partir da lista fornecida pela secretaria municipal com as unidades que possuíam equipe de saúde integrada à equipe de saúde bucal. O sorteio foi realizado manualmente através de números de um a seis com nomes correspondentes de cada unidade descrito em planilha do Microsoft Excel® e a escolha dos locais do estudo foi feita por um dos pesquisadores não envolvido na elaboração do sorteio.
Para determinação do número de participantes, fez-se uso da amostragem guiado pelo poder da informação conforme Malterud, Siersma e Guassorra, em que, quanto mais elementos das informações a amostra contém, mais relevante mostra-se, sendo dependente do objetivo do estudo, da especificidade da amostra, da teoria utilizada, da qualidade dos diálogos e da estratégia de análise empregada.18 Diante disso, as informações colhidas com cada enfermeiro das suas respectivas UAPS apresentou-se como relevante para entender o fenômeno em estudo: acompanhamento odontológico no pré-natal. Não ocorreram recusas à participação da pesquisa.
Participaram do estudo seis enfermeiros que realizavam o PN na APS. Os critérios de inclusão foram: atuar por um período mínimo de seis meses na unidade de saúde sorteada, assim como a UAPS participante estar em funcionamento por pelo menos um ano. O critério de exclusão foi: profissionais que estivessem de férias ou licença no período da visita da pesquisadora.
Entrou-se em contato por intermédio da coordenação da unidade de saúde sorteada com profissionais para convite à pesquisa e, posteriormente, pactuou-se horário e local, de preferência em período tranquilo e com disponibilidade de tempo na unidade de saúde, que permitiu privacidade para a realização da entrevista conforme disponibilidade no dia da visita da pesquisadora.
Os dados foram coletados a partir de entrevista individual em profundidade, sendo uma técnica que proporciona a obtenção de informações por meio dos discursos dos entrevistados e que pode envolver questionamentos em nível objetivo e subjetivo.11 As entrevistas duraram em média 30 minutos, utilizando-se gravador de áudio para o devido armazenamento das informações coletadas e facilitação da transcrição para análise dos depoimentos dos participantes.
Foram aplicados questionários contendo perguntas abertas e fechadas acerca de dados sociodemográficos e do acompanhamento odontológico no PN pelos entrevistados, entre as quais, qual a importância da interdisciplinaridade dentro do acompanhamento odontológico no pré-natal? Como é realizado o encaminhamento da gestante ao cirurgião-dentista? É realizado orientações de cuidado bucal da mulher e para o bebê?
A transcrição ocorreu em detalhes, sendo realizado por duas pesquisadoras. Para manter o anonimato dos entrevistados foi empregado código alfanumérico utilizando as letras (E) e números correspondentes de um a seis.
As entrevistas transcritas foram organizadas a partir da Análise Temática proposta por Minayo. Esse tipo de método organizativo apresenta a ideia de tema como uma afirmação sobre um assunto específico, cujo mesmo pode ser representado por um resumo, frase ou palavra. A análise temática é dividida em três etapas gerais: pré- análise, exploração do material ou codificação e tratamento dos resultados obtidos/ interpretação.11 Os temas identificados derivaram das informações obtidas.
Relativo à análise, utilizou-se a Hermenêutica-dialética de Gadamer e Habermas.12,13A hermenêutica possibilita interpretar os sentidos contidos nos discursos dos sujeitos, através da busca de diferenças e semelhanças, do confronto e da oposição, associando-se à dialética, para uma crítica do diálogo, da linguagem e dos símbolos, e compreensão dos sujeitos a partir de seu contexto histórico e cultural.11
A pesquisa seguiu a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que orienta as pesquisas efetuadas com seres humanos, com assinatura de todos os participantes do termo de consentimento livre e esclarecido.19 O estudo obteve parecer do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), através do n° 2.690.258 de 04 de junho de 2018.
Resultados
Caracterização dos participantes
A caracterização sociodemográfica dos participantes da pesquisa evidenciou predominância do sexo feminino (80%), com maioria das depoentes de raça parda (64%), casadas (80%), de religião católica (64%), com maioria na faixa etária de 42 anos (32%) e todos com formação profissional de pós-graduação em saúde da família (100%).
O processo resumido de organização das temáticas está indicado na Figura 1.
O cuidado interdisciplinar do médico, odontólogo e enfermeiro.
Relativo à primeira categoria temática emergida, as falas dos participantes se mostraram semelhantes na maioria das entrevistas, evidenciando que a interdisciplinaridade à gestante é relevante para a realização de uma assistência qualificada e multiprofissional:
(...) com relação à importância de cada um é extrema porque eu tenho que saber até onde é que eu posso ir, até onde entra o papel do médico, até onde é importante o técnico de enfermagem (...). O dentista ele se torna essencial por conta da prevenção de todos os fatores que ele atua na área dele (...) (E1)
(..) Realmente a gente precisa trabalhar na interdisciplinaridade, né? Médico, enfermeiro, odontólogo (...) O enfermeiro tem a parte do cuidado dele, o odontólogo a parte do cuidado dele, o médico e aí a gente soma e o cuidado acontece de forma integral. (E3)
Eu acho muito importante, né? Porque cada um tem a sua visão, tem o seu olhar, cada um tem o seu cuidado. Isso é importante tanto pra gestante como para todos os outros pacientes (...). (E4)
(...) quando ela é vista por todos os membros da equipe, ela acaba sendo vista como um todo, né! (...). (E6)
Outros discursos evidenciaram que práticas interdisciplinares somente acontecem com algumas profissões específicas, como o médico e o enfermeiro, sendo confirmado pelo contato direto desses profissionais com a gestante, tendo em vista que o PN é guiado por eles, como descrito:
Fonte: Construção dos autores.
Assim o que funciona aqui é só o atendimento mesmo do médico e do enfermeiro, certo. É muito difícil da gente tá fazendo esse trabalho junto aos profissionais da odontologia. Por quê? Primeiro nunca foi construído um fluxo pra gente está encaminhando o paciente. (E4)
(...) na prática né, existe essa interdisciplinaridade, porque dentro da unidade de saúde nós temos dentistas, enfermeiro, médicos... (...) Mas na verdade deixa muito a desejar porque aqui, o que a gente tem é médico, enfermeiro e dentista nessa questão do atendimento interdisciplinar, integral também da gestante. (...) Então eu posso dizer que deixa muito a desejar (...). (E5)
Encaminhamento do enfermeiro durante o acompanhamento odontológico no pré-natal.
Quanto às ações de enfermagem durante o PN em relação à saúde bucal, a maioria dos participantes da pesquisa afirmaram encaminhar às gestantes para avaliação odontológica na primeira consulta de PN. Referiram também encaminhar mesmo as gestantes não referindo dor ou qualquer outro desconforto com relação à saúde oral, como relatado a seguir:
(...) a gente encaminha elas (...) e é já na primeira consulta.''(...) ''Todas, todas na primeira consulta, porque já foi um hábito. (E1)
Geralmente na primeira consulta, a gente já pergunta quando ela teve a última consulta odontológica. Independente de quando ela teve a gente já encaminha na primeira consulta para o dentista.''(...) ''Sempre (encaminha), na primeira consulta. E durante o pré-natal se houver necessidade novamente. (E2)
Todas, todas. Até quando elas falam assim. 'Ah, mas eu faço acompanhamento em outro lugar'. Tem umas que tem aparelho, né. (...) Não, mas vamos passar aqui no dentista aqui do posto que ele vai avaliar direitinho e vai ver se tem alguma coisa ainda por fazer e até pra gente saber se está tudo bem mesmo. Eu mando todas. (E3)
(...) eu pergunto se ela tem alguma queixa odontológica, se ela está sentindo alguma dor (...) eu encaminho para dentista da equipe mesmo que seja só para passar por uma avaliação porque, às vezes, também ela não está sentindo nada, mas tem alguma coisa mascarada (...). (E6)
Diante dos relatos, observa-se que a saúde bucal na gestação encontra precária atenção integral dos profissionais constituintes da equipe de saúde do cuidado pré-natal convencional efetuado pelo enfermeiro e médico e o acompanhamento odontológico efetivado pelo cirurgião-dentista. Assim, houve relatos em que os participantes somente encaminhavam as gestantes ao acompanhamento odontológico diante de algum tipo de desconforto, alguma queixa.
Não obstante, diante da importância do acompanhamento odontológico e das políticas de saúde construídas para ampliar sua assistência, alguns depoimentos de enfermeiros retrataram deficiências na comunicação e interação com o cirurgião-dentista para desenvolvimento de ações conjuntas e no encaminhamento da gestante, como por exemplo quando questionados acerca do encaminhamento somente ao sentir dor dentária:
''Exatamente. Eu nunca encaminho assim: vai para o dentista. Porque que eu nunca fiz assim? Porque nunca teve vaga. Sempre tem problema na odontologia aí a gente não tem esse costume, eu acredito que é isso. (E4)
Não. Assim a gente aborda as questões de alimentação, sono, repouso, essas questões odontológicas mesmo, especificamente, eu não abordo, certo. Só se elas me perguntam alguma coisa, se elas têm alguma dúvida e elas me questionam aí eu respondo se eu sei. (...) (E4)
Um dos relatos descreve a colaboração e participação do profissional enfermeiro nesse entendimento:
Orientações, encaminho. Encaminho e oriento sempre. A importância de cuidar, da saúde bucal (...).''(...) ''Sim, sim eu sempre faço. Eu li um pouco, enfim eu não tenho conhecimento sobre a área não, mas aí eu leio um pouco, explico e converso que é importante e tudo. (E3)
A questão da orientação foi um ponto bem debatido entre os entrevistados, evidenciando que a educação em saúde é fundamental para uma qualidade de vida adequada. Muitas das orientações com relação à saúde bucal como limpeza da cavidade bucal do recém-nascido, cuidados com a primeira dentição assim como cuidados orais da gestante para evitar potenciais problemas dentários na gravidez não são abordadas nas consultas com os enfermeiros e com os médicos, como descrito a seguir:
(...)assim, a gente orienta a questão da amamentação, (...), da criança que pode ter o problema em relação a dentição. Isso aí poderia ser feito pelo dentista com mais precisão, entendeu? mais do que a gente. Eu acho que pro bebê seria importante e pra mãe também, aprender essas questões certo? Encaminhar pro dentista. (...) (E4)
(...)desde a gravidez pelo que eu sei, o dentista já fala com relação aos cuidados lá da cavidade oral, do recém-nascido, limpeza de gengiva, língua, essa questão e ele vai acompanhando até nascerem os primeiros dentinhos (...) O dentista ver a questão até do frênulo lingual, né? (E5).
Discussão
A interdisciplinaridade nos processos de atenção à saúde é indiscutivelmente necessária para consolidação de práticas integradas e da qualidade do cuidado e assistência. Nesta analítica, Gadamer traduz as compreensões das dinâmicas de saúde através do ato do diálogo e do estudo aprofundado da realidade, buscando o sentido do ser que todos somos no mundo: o Dasein13. Ademais, o compreender é um elemento do Dasein, em que o ser analisado no modo como existe no mundo remete a compreensão pertinente nas diversas nuances da vida, da saúde e da doença.20
Estudos atualmente destacam que a assistência à saúde da gestante deve ser prestada por uma equipe interprofissional, com prática interdisciplinares, buscando a integralidade na atenção ao indivíduo através de ações de promoção e prevenção nos inúmeros níveis de saúde. No entanto, também se evidencia fragilidades nos modelos de atuação da equipe de saúde interdisciplinar nos cenários de saúde, impactando nas ações direcionadas a gestante em inúmeras regiões do Brasil e do mundo, corroborando com os depoimentos dos participantes,8,21,22
Uma das principais competências descritas nos depoimentos, o diálogo como ato comunicativo, recebe destaque na atuação interdisciplinar efetuado através de argumentos, construção de interações e contatos entre inúmeras disciplinas. A argumentação consiste no discurso tematizado em que os sujeitos reivindicam validade em meio a dúvidas e tentam executar ou desafiar sua viabilidade por meio dos argumentos. Conforme Habermas, é no seio da argumentação do diálogo que a cooperação intersubjetiva linguisticamente mediada para a coordenação de ações de saúde é efetivada.14
O desvelamento da comunicação e sua compreensão pela equipe de saúde consiste de um dos elementos para desenvolvimento de práticas interdisciplinares, utilizando elementos hermenêuticos como a subjetividade, historicidade, correntes de pensamento, tradições, cultural e temporalmente condicionados para interpretar as nuances reflexivas da realidade social.23
Nesta dinâmica, a interdisciplinaridade vem sendo desenvolvida desde os anos 1960 como proposta contra a dicotomia das práticas e do conhecimento simplificado e disciplinar, surgindo como modelo multiconceptivo. Destarte, envolve a troca de saberes entre distintas áreas disciplinares, como campo teórico questionador da fragmentação do saber disciplinar nas instituições, surgindo como alternativa no desenvolvimento de pesquisa e tecnologia ou ainda como estratégia para formação profissional com visão amplificada para atuação em equipe.24
Neste contexto de debate, evidencia-se nos depoimentos relatados precariedade na atuação interdisciplinar no pré-natal, não havendo prática integrada de enfermeiros, médicos e odontólogos. Além disso, a comunicação e cooperação não ficou evidente, embora os entrevistados salientem a importância da interdisciplinaridade para efetivação dos cuidados em APS e, especialmente, no PN.
Há nos discursos diversos momentos em que a atuação do enfermeiro restringisse aos encaminhamentos diante de queixas como dor dentária ou outras queixas odontológicas, embora também ressaltem-se orientações como cuidados bucais no período gestacional e após o parto com o bebê. As relações com outros profissionais, especialmente o cirurgião-dentista, são mínimas conforme descritas.
Intrinsecamente, as práticas profissionais fundamentadas em interdisciplinas remetem ao desenvolvimento de novos olhares, novas percepções no campo da saúde e novas práticas de cuidado direcionadas ao paciente.25
Gadamer elenca que há necessidade do equilíbrio entre a capacidade de fazer e o querer assim como a habilidade de fazer responsável que resulta no cuidado em saúde, envolvendo tomadas de decisão diante dos contextos de saúde, possibilidades e limites na aplicação das práticas de saúde.20
Evidencia-se assim, a ineficiência no desenvolvimento das práticas interdisciplinares assim como nas interações interprofissionais, o qual não há uma comunicação entre a equipe de saúde da unidade e não se evidencia o desenvolvimento de um fluxo de acompanhamento, assim como atividades de supervisão e avaliação das ações de saúde.
Entretanto, é veemente a importância da interprofissionalidade e interdisciplinaridade nos cuidados pré-natais para alcançar ações efetivas na gestação, sobretudo no tocante a participação do cirurgião dentista, visto que aproximadamente 40% das grávidas apresentam algum tipo de doença periodontal que cursa com risco de perda dentária e de respostas inflamatórias exageradas das estruturas periodontais de suporte, podendo induzir partos prematuros26. Especialmente em países em desenvolvimento, em que a prematuridade é o principal responsável pela morbidade e mortalidade neonatal, torna-se premente a prevenção de fatores de risco como a doença periodontal.27
Neste contexto, a assistência odontológica ainda encontra obstáculos que envolvem medo, ansiedade e crenças populares relativas à gestação e o desconhecimento científico e insegurança dos profissionais de saúde para o planejamento e articulação das ações de tratamento das gestantes, com pouca utilização de serviços odontológicos por mulheres grávidas inclusive em países desenvolvidos como Estados Unidos, Reino Unido, Grécia e Austrália.26,28
Da mesma forma, fragilidades macroespecíficas representadas por mudanças no sistema de saúde para promoção de colaborações interprofissionais, desenvolvimento de programas educacionais inovadores de disseminação e implementação de protocolos para saúde bucal na gestão e consolidação de modelos de atendimento odontológicos específicos para o pré-natal evidenciam as vulnerabilidades existentes para consolidação de atenção em saúde bucal na gestação.28,29
Destarte, nos últimos anos avanços foram efetuados nas políticas de saúde bucal no Brasil. Os serviços odontológicos, após a Política Nacional de Saúde Bucal de 2004, ampliaram-se para garantir integralidade e efetividade de atenção odontológica para população, através do conhecimento da realidade de saúde.30
Há evidências de fatores que contribuem para pobre integralidade e interdisciplinaridade na saúde bucal. Em um estudo de simulação conduzido nos Estados Unidos com estudantes de enfermagem e odontologia sobre habilidades de ação em equipe interprofissional evidenciou comprometimento nos papéis profissionais, na ética, responsabilidade, comunicação e no desenvolvimento de estratégias em equipe, sendo elencadas como essenciais para implementação de cuidados.31
Nos relatos há abordagem à educação envolvendo o profissional cirurgião-dentista e o enfermeiro, no entanto desarticuladas e individuais, denotando deficiência na colaboração interprofissional para qualidade do cuidado pré-natal.
Habermas discorre entre suas discussões teórico-filosóficos a ação comunicativa como importante base para pensar as ações de saúde complexas. A ação comunicativa é construída através de consensos e leva ao entendimento consensual, viabilizada através da união sem coações de distintos participantes que superam subjetividades iniciais e se asseguram da unidade do mundo objetivo e da intersubjetividade do círculo da vida social em que estão inseridos.14
Nos depoimentos, há referência a atuações descontextualizadas entre os profissionais da equipe, e percebe-se que não há interações efetivas entre os mesmos, inclusive sobre delimitação de papéis profissionais no acompanhamento odontológico no pré-natal. No entanto, essa parcialidade também vem com elementos de educação, promoção do cuidado e de medidas de prevenção em saúde bucal.
Ao analisarmos os relatos na perspectiva da enfermagem, deve-se ter noção que o enfermeiro não deve se limitar as situações de doença, mas sim exercer sua prática em diferentes situações, como na educação em saúde, sendo importante estratégia de prevenção de agravos e promoção da saúde. Nessa perspectiva, o enfermeiro se apresenta como educador, propondo diversos caminhos para o alcance de uma melhor qualidade de vida individual e coletiva.32
A educação interprofissional resulta da análise integrada das situações de saúde e da colaboração da equipe em saúde, empregando também elementos da Educação Popular através de participação ativa dos envolvidos, valorização do diálogo e desenvolvimento do processo de autonomia.33 Diante disso, Gadamer elenca que as diretrizes que direcionam a vontade humana não é a universalidade abstrata da razão, mas a concretude universal, sendo representativa da comunidade de um grupo, povo, nação, conjunto da espécie humana.13
Neste contexto, as ações educativas na gestação capacitam as mulheres e estimulam a autonomia feminina, como protagonista do seu próprio cuidado, possibilitando assim uma participação de forma ativa e efetiva da mulher na sua gestação, processo de parto, no nascimento do bebê e puerpério.34
Diante disso, a saúde bucal mostra-se como espaço promissor para educação e colaborações interprofissionais no contexto do pré-natal da gestante como comunicação interprofissional, disseminação de informações consistentes e encaminhamentos entre profissionais de saúde para melhores resultados de saúde.35
As limitações do estudo envolveram ser uma realidade circunscrita a uma região especifica do país, mas que apresenta similaridades com a égide de cenários do sistema de saúde de todo Brasil, contribuindo para repensar as práticas de trabalho em saúde bucal e materno-infantil.
Conclusões
Os achados do estudo evidenciam a realização de interdisciplinaridade no acompanhamento odontológico da gestante entre enfermeiro e cirurgião dentista, no entanto há fragilidades importantes como interações comprometidas entre os profissionais e falta de encaminhamento diante das situações em saúde bucal referidas pelas gestantes.
Neste contexto, também ocorreram relatos dos enfermeiros informando importantes práticas em educação em saúde com orientações sobre cuidado bucal com a gestante e seu bebê, práticas entre profissionais da atenção primária em saúde para atendimentos de complicações bucais e percebe-se a relevância de cada categoria profissional para práticas interdisciplinares e alcance de qualidade no acompanhamento odontológico no pré-natal, embora parcial.
Sugere-se o desenvolvimento de estudos sobre o acompanhamento odontológico e o pré-natal abordando-se aspectos socioculturais. Os dados apontam a necessidade de ampliação da interdisciplinaridade entre a assistência do enfermeiro na APS e o acompanhamento odontológico no PN, criando fluxos de cuidado em saúde bucal, maior integralidade com outros profissionais como cirurgião dentista e cuidados gestacionais integralizados para qualidade da saúde da gestante, puérpera e recém-nascido.
DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES
As autoras afirmam não haver nenhum conflito de interesses.