INTRODUÇÃO
Considera-se oportuno, contextualizar que a proposição de reflexões sobre a unidade epistêmica corpo no domínio da Enfermagem é desafiadora e se vê cercado por uma variedade de contornos teóricos e filosóficos. Na busca de fundamentos sobre corpo o primeiro questionamento é meramente conceitual: como o corpo vem sendo pensado no contexto dos cuidados realizados pela enfermagem?
Nessa perspectiva, o corpo tem sido concebido como a ciência do cuidado, espaço mínimo que é humano-livre, humano-ativo, dono de suas próprias ideias, opiniões, valores, ambições e visão de mundo. Corpo fonte e mediação de conhecimentos e saberes mediante memórias nele fixadas. Lugar de expressão e criação, de sentido e representações, de escuta-mítica, de cognição, da produção de imagens. Poder e produtos de subjetividades; instituído e instituinte, que faz movimentos políticos de mudança1.
Para além do reducionismo orgânico coloca-se em destaque diversos significados, significantes, símbolos e códigos que influenciam (in)diretamente o saber-fazer da enfermagem nos ambientes de cuidar. O que se compreende como corpo é produto de uma construção social, política, econômica, cultural, biologicamente em constantes inter-relações.
Essa forma de conceber o corpo nos cuidados de enfermagem implica entendê-lo não apenas como um elemento biológico, receptáculo de doenças, mas, sobretudo, como produto de um intrínseco inter-relacionamento entre pensamento e movimento. Em outras palavras ele resulta de uma construção social sobre a qual são conferidas diferentes marcas em espaços, tempos, conjunturas econômicas, éticas, políticas, históricas e expressivas de uma dada cultura2.
Cuidado de enfermagem conceituado como expressão da profissão aplicada e irrestrita à especialidade de enfermagem hospitalar, significando um conjunto de ações dirigidas à pessoa sadia ou adoecida, às demais pessoas a ela ligadas, às comunidades e aos grupos populacionais, visando promover e manter conforto, bem-estar e segurança, no máximo limite de possibilidades profissionais e institucionais. É uma ação incondicional do corpo que cuida, envolvendo impulsos de amor, ódio, alegria, prazer, esperança, desespero, energia, por ser um sujeito em situação que envolve disponibilidade do corpo para tocar, manipular humores e odores1.
Fala-se de um cuidado situado na relação entre o profissional de enfermagem e os clientes. Cuidado atravessado por dimensões humanas e (bio)éticas. Sendo assim, deve ser pautado na preocupação com o sofrimento humano e no compromisso social. É importante ensinar as pessoas como tratar os fatores relativos aos estilos de vida, como cuidar de si mesmo e como lidar com os assuntos de saúde antes deles se tornarem problemas crônicos. É o compromisso social traduzido em uma maneira de cuidar, de berço e responsabilidade principal dos profissionais de enfermagem.
Por conseguinte, cuidar é por definição uma construção também social. Diga-se que o cuidar envolve indissociavelmente o próprio corpo, tanto o que cuida quanto o que é cuidado. Ainda, a relação entre esses dois últimos corpos é uma díade, representado por diversas relações de força e poder3. Com essas noções elementares, percebe-se que há um forte substrato clínico representado pelas ciências básicas, e também por uma dimensão subjetiva, caracterizada pelo uso da filosofia, antropologia, sociologia e psicologia aplicada aos corpos que cuidam e são cuidados.
Nesse prisma, a ampliação sobre a forma de pensar conceitualmente o(s) corpo(s) nos processos de cuidar da enfermagem é necessário. Isso porque o cuidado praticado pelo corpo destes profissionais em pleno século XXI exige novas decodificações, integração de conhecimentos de múltiplas áreas e formulações que toquem temas-problemas, tais como, tecnologias da inovação e seu posicionamento no ambiente de cuidar.
Dado que o interesse deste ensaio está centrado em reflexões que beneficiem a produção de conhecimentos para prática de cuidar em enfermagem, emerge o seguinte objetivo: refletir sobre corpo e cuidado no domínio da enfermagem. A partir disso, as reflexões sobre a unidade epistêmica corpo em interface aos cuidados de enfermagem apresenta um caráter teórico, exploratório e descritivo organizado em duas linhas reflexivas postas em desenvolvimento.
DESENVOLVIMENTO
A primeira linha reflexiva considera nos referenciais da subjetividade uma origem possível para pensar o corpo como elemento do cuidado desenvolvido por profissionais de enfermagem. O corpo como vetor de emoções pelo qual os riscos nas relações sociais cotidianas são assumidos, traz à tona reflexões sobre a construção do sistema sensorial desenvolvido a partir do que é sentido nas representações da vida nos planos individual e coletivo4.
A posição freudiana é clara quando descreve que o corpo não se reduz ao puramente orgânico, nem se desfaz de seus engajamentos na dimensão da linguagem. Ele é o lugar do qual emerge o representacional-pulsional e seu meio de chegar à satisfação, seja ela no prazer ou no desprazer5.
Pensar nessas premissas do corpo visto pela psicanálise na produção dos cuidados de enfermagem convida a pensar na vitalidade dos encontros para individuação de ações que contemple as necessidades humanas básicas de quem é cuidado, e, por conseguinte, produzindo efeitos agradáveis ou desagradáveis na vida do cliente, família e comunidade.
Outro aspecto, diz respeito ao corpo ser considerado como o grande receptor de sensações que modulam a psique e dão origem ao ser. A sensação, associada ao corpo constitui um mapeamento do ambiente externo em relação com o interno, desencadeando como efeito experiências e distintas realidades6.
Tal entendimento é de extrema importância para compreensão dos cuidados de enfermagem. Embora as ações de cuidar tenham uma dimensão técnica padronizada quando colocada em prática elas podem ser produzidas e sentidas de diferentes formas na relação profissional de enfermagem-cliente. Diga-se que a representação do cuidado corporificado é resultado de uma série de sensações percebidas previamente, analisadas, correlacionadas e interpretadas.
Por isso, acredita-se que o ensino do cuidado de enfermagem precisa ser recheado de sensações produzidas numa relação entre dois corpos: do professor e do estudante. Dessa forma, busca-se a promoção em ambos os protagonistas de ferramentas para a ciência do cuidar alicerçados na tomada de decisão frente aos dilemas que permeiam o exercício da profissão7,8.
É preciso considerar nesta linha que a bússola para a ciência do corpo é a própria comprovação de que o material biológico, representado por células, tecidos, órgãos, sistemas e aparelhos; é na verdade resultado de diversas construções sensoriais prévias associadas entre si, que confluem para um ser único e social. Isto é, o corpo, aqui pensado no domínio do cuidado de enfermagem, é uma construção social produzida por uma associação de fatores sensitivos e representadas por uma transferência dessas associações para um material biológico: o próprio corpo.
Desse modo, entende-se que as sensações não são descartadas pelo corpo, mas armazenadas e resgatadas por circuitos internos em uma memória corpórea importante para a produção de cuidados de enfermagem responsáveis em configurar uma expressividade/gestualidade corporal dos enfermeiros nas cenas de cuidar. Isso encaminha a segunda linha reflexiva que trabalha especificamente elementos reflexivos da corporeidade em ressonância com o cuidado de enfermagem.
As análises teóricas sobre a semiologia das expressões corporais dos enfermeiros corroboram para acepção que considera o corpo do enfermeiro instrumento da ação do cuidado9. A expressão do ser no mundo é um complexo resultado de construções corporais internas que confluem para um fazer existir por meio de suas ações que dão forma à existência, integram trajetórias e tecem um campo de significados expressos na cultura10.
Diante disso, a corporeidade indica a presença do corpo próprio com seus aspectos perceptivos como um dos polos da experiência, estabelecendo o seu mundo com o do outro no encontro do cuidado humano11. Dessa forma, chama-se atenção para o valor dos sentidos corporais para (re)significar as ações em saúde no contexto das interações humanas protagonizados pelos corpos dos enfermeiros/técnicos de enfermagem com os seus clientes12.
Diga-se que a condução de uma prática corporal sensível não é levar o outro a viver na intimidade de um corpo do qual ele se crê separado. Consiste em despertá-lo para a inteligência que anima seu corpo por meio de uma conscientização da supressão das separações corpo-pensamento e organismo-ambiente. O trabalho corporal é um trabalho de absoluta ecologia13.
Baseado nisso, o ensino do cuidado aos estudantes de enfermagem deve ser feito de maneira a não excluir a própria existência do corpo que aprende. O corpo deve ser incluído no processo pedagógico. Desse modo é possível construir no futuro profissional de enfermagem um corpo sensível; no sentido de está atento as sensações envolvidas no cuidar14. Nesta perspectiva, espera-se que estudantes e profissionais da enfermagem sintam em seus corpos as memórias de um cuidado de enfermagem que se dobra para o ambiente e está alicerçado pelas notas produzidas por Florence Nightingale15, fundadora da Enfermagem Moderna.
Com a certeza do inacabado, acredita-se que as contribuições para a enfermagem incidem na incorporação de saberes que permeiam as ciências humanas e da saúde; numa tentativa arriscada de pensar o corpo dos profissionais da enfermagem em interface a implementação de condutas clínicas de cuidar1,4,7,9. Assim, os conceitos utilizados pedem passagem para expansão científica junto à realização de pesquisas interventivas, que utilizem referenciais teóricos e metodológicos orientadores de produção de subjetividades presentes nos corpos que se encontram em interação nos ambientes de cuidar.
CONCLUSÃO
O corpo pensado em interface aos cuidados de enfermagem ainda é enigmático no plano investigativo, sobretudo quando se considera o atual momento pós-moderno, que insiste em propor emergentes formas de concepção corporal numa dimensão virtual projetada em aparelhos celulares, smartphones, tablets e outras tecnologias da comunicação.
Refletir sobre as unidades epistêmicas corpo e cuidado possibilitou a produção de argumentos que transcendem os limites biológicos e biomédicos para adentrar em leituras sociais, filosóficas, psicanalítica com reverberações para cuidar e ensinar no domínio da enfermagem sem perder de vistas as notas nightingaleanas da profissão.
A base material das formulações, não completam as totalidades teóricas postas, mas deixam pistas para se pensar em formas de investigar esses objetos de modo menos protocolar e prescritivo. Assim, acredita-se que estas argumentações abram passagem para reflexões práticas que tocam os corpos dos enfermeiros, técnicos, estudantes de enfermagem sensíveis as necessidades de cuidados integrais as pessoas em situações de saúde e doença nos diversos serviços de saúde.
Declaração de conflito de interesse: os autores do manuscrito declaram que não há conflito de interesse de tipo pessoal, econômico, interinstitucional, nem de outra natureza.