Introdução
De saída, é fundamental localizar que nos últimos anos a posição das minorias perante o Estado se transformou significativamente. Decretos internacionais, bem como a legislação nacional, reconheceram a natureza multiétnica do Estado e a necessidade de assegurar os direitos e o respeito dos diferentes grupos étnicos. No Brasil, essas mudanças legais vieram acompanhadas pelo surgimento de organizações indígenas como força importante dentro da arena política. Maior visibilidade da etnia resultou nas mudanças na política e na organização dos serviços de saúde indígenas1.
Baseado nisso, destaca-se que no território brasileiro a assistência de saúde para indígenas é de responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) que tem sua gestão descentralizada e de responsabilidade dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI)2. Percebidos como espaços territoriais e etnoculturais, um DSEI reflete a cultura dos povos indígenas inseridos nos seus limites espaciais, priorizando a dimensão simbólica e subjetiva, com valorização de um ou mais grupos que nele habitam. Porém, muitas questões relacionadas à saúde extrapolam os limites territoriais e exigem do poder público um espaço para atendimento dos povos indígenas.
Um desses espaços é a Casa de Saúde Indígena (CASAI), responsável pelo apoio, acolhimento e assistência de indígenas para atendimentos complementares e especializados2. Uma CASAI é diferenciada de outras unidades de atendimento à saúde por ser destinada, também, aos acompanhantes dos indígenas em situação de doença, por considerar a cultura e forma de tratamento em comunidades indígenas, onde a família é um componente relacionado à cura.
No extremo norte do Brasil, o estado de Roraima passou a partir de 2017 a contar com duas CASAIs: A CASAI de Boa Vista-RR fundada em 1976 subordinada ao DSEI-Yanomami e Ye’kuana, responsável à época em prestar assistência, também, aos pacientes indígenas do DSEI-Leste de Roraima que em 2017 passa a ter sua própria CASAI.
A CASAI de Boa Vista foi pioneira no país. Em 1976, a partir de uma ação do governo do então Território Federal de Roraima em conjunto com funcionários da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a assistência à saúde de indígenas passou a funcionar em local específico na capital de Roraima. Menos de uma década após, em 1982, é inaugurada a CASAI na capital, com uma arquitetura de módulos circulares, em alusão a uma maloca (local comunitário destinado a reuniões e atividades da comunidade indígena). Uma construção central, também circular, agrupava a parte administrativa, além de ambulatório, enfermarias, consultórios médico e odontológico, farmácia, salas para reuniões, radiofonia e cozinha3.
O espaço que corresponde hoje ao estado de Roraima abriga várias etnias indígenas (Macuxi, Wapichana, Ye’kuana, Yanomami, Wai-Wai, Taurepang, Patamona, Ingaricó e Sapará) e a estrutura da CASAI precisava contemplar essa diversidade. Por isso, ao redor da construção central, encontravam-se aproximadamente quinze malocas comunitárias para abrigar as variadas etnias indígenas; além de três módulos adjacentes. Os serviços de saúde eram ofertados mediante duas Equipes Volantes de Saúde (EVS). O estabelecimento também recebeu apoio da Universidade Federal de Santa Maria, por meio do Projeto Rondon, com estagiários da área da saúde, equipes de enfermagem, fisioterapia e odontologia4.
Outro ponto que merece destaque foi a utilização da CASAI na formação dos indígenas em atendentes de enfermagem que, durante a estadia no serviço de saúde, eram orientados e treinados para atuar em situações de urgência nas aldeias3. Atualmente a CASAI possui 4.820m² de área construída, sendo considerado um dos maiores estabelecimentos de saúde indígena do território3.
No plano macropolítico, especificamente com as orientações postas na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) de 2002, o modelo de Atenção à Saúde do Indígena está pautado no interesse coletivo, visando o diagnóstico e tratamento das doenças e, também, a prevenção de agravos e a promoção da saúde5.
Estas normatizações estão em conformidade com a Lei Arouca nº 9.836 de 1999 que institui o subsistema de saúde e dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde e a organização dos serviços de saúde correspondentes às populações indígenas no Brasil, objetivando atender os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS): universalidade, integralidade e a equidade6,7.
Ao longo da história de constituição da CASAI foi possível observar uma preocupação em aproximar o atendimento em saúde necessário com a cultura desses povos, não apenas no que se refere a forma de abordagem, a presença da família, mas, também, na forma das construções destinadas a internação dos pacientes e acompanhantes, com locais para redes, possibilidade de produção de alimentos conforme a cultura de cada povo.
As localizações históricas preliminares deste estudo sinalizam reflexões sobre os efeitos simbólicos da implantação da CASAI. Um objeto investigativo que requer um compromisso ético e existencial sustentado por discursos teóricos da sociologia em saúde. Dessa forma, a opção em estudar a implantação da CASAI no estado de Roraima - Brasil, invariavelmente coloca pesquisadores e leitores em campos de conhecimentos firmados à luz da história.
A análise de imagens e notícias publicadas em jornais locais no período de 1973 a 1983, reconhecidas aqui como documentos históricos, tem como base o pensamento de Pierre Bourdieu8 sobre comportamentos, estilos de vida que são heranças familiares e expressam o social e a cultura de um grupo que é internalizado no indivíduo e, no caso aqui estudado, refletido em imagens registradas por câmeras fotográficas.
O recorte temporal foi definido a partir da percepção de mudanças e adaptações de estruturas físicas e equipes de atendimento destinadas ao tratamento dos indígenas em situação de doenças na cidade de Boa Vista - Roraima - Brasil, sendo a CASAI o ponto de ligação. Diante do exposto, o objetivo do estudo foi descrever os efeitos simbólicos da implantação da Casa de Saúde Indígena no campo da saúde no período de 1973 e 1983.
Método
Trata-se de uma pesquisa documental histórica9 com abordagem da micro-história balizada pelos conceitos do sociólogo Pierre Bourdieu8. Os dados da pesquisa foram produzidos por meio de fontes documentais contendo imagens (Fac-símile) publicadas em matéria do Jornal Boa Vista do estado de Roraima no período de 1975 a 1983.
A produção dos dados ocorreu nos arquivos da Imprensa Oficial do Estado de Roraima, quando se optou na busca de imagens presentes nas notícias no Jornal Boa Vista. Trata-se do primeiro e único jornal que circulou de maneira contínua durante o regime da ditadura militar.
As buscas das imagens presentes nas notícias foram selecionadas mediante aplicação dos seguintes critérios de seleção, a saber: I. Circunstâncias para a criação da CASAI; II. Visitas com diálogo entre governo e população indígena; e III. Documentos que evidenciassem a articulação do governo com as ações e profissionais de saúde.
Mediante aplicação dos critérios de seleção as matérias jornalísticas contendo imagens foram organizadas no sentido temporal. Estas tiveram por finalidade agrupar os materiais fornecidos pelas fontes imagéticas documentadas no sentido de circunstanciar a construção da narrativa histórica10.
As imagens foram submetidas às regras das críticas de autenticidade, credibilidade interna e externa, quando foi aplicada a técnica de triangulação para análise dos achados. Especificamente, os procedimentos de análise foram três. O primeiro foi a aplicação da matriz de análise nas imagens, o segundo envolveu o teor do texto jornalístico, e o terceiro a aproximação com os conceitos de base de Pierre Bourdieu. Após aplicação da matriz, os dados da imagem, texto e contexto foram organizados de forma narrativa e reflexiva.
Esta investigação utilizou matérias jornalísticas e cumpriu os requisitos ético-legais dispostos na Lei nº.9.610 de 1998 que versa sobre direitos autorais11. Cabe sublinhar, que a resolução nº 466 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde - Brasil, não se aplica nesse estudo, por se tratar de uma investigação com fontes jornalísticas e não envolver, diretamente, seres humanos.
Resultado
Ao todo o corpus documental foi representado por quatro registros imagéticos presentes em matérias jornalísticas publicadas pelo Jornal Boa Vista. As imagens publicadas pelo Jornal Boa Vista no período pesquisado são cópias editoradas - fac-símiles termo do latim, que significa “faz igual” -; ou seja, cópia igual ao documento impresso, sendo obtidas por meios de fotomecânica, eletrônico e/ou eletrostático12. Todos estes achados podem ser evidenciados no Quadro 1.
Discussão
A linguagem bourdieusiana contribuiu para a compreensão das práticas da saúde em seus diversos contextos culturais, sobretudo no que diz respeito a saúde das populações indígenas, os conceitos de base, como campo, habitus, capital cultural e poder simbólico são utilizados para retratar de que modos as relações de poder se manifestaram entre os dominantes representados pelos agentes ocupantes de cargos e funções na esfera governamental, e pelos dominados, representados pelas populações indígenas que no período em tela, habitavam a região Norte do Brasil, onde se concentrava o objeto de interesse dos governantes13.
Nesse prisma, diga-se que o habitus restringe e possibilita a ação social. Ele possui uma capacidade geradora que permite a improvisação e a inovação dentro dos limites das heranças que a produziram. Tende, portanto, a gerar práticas consistentes com o estado anterior do campo em que os atores operam e que podem não ser fácil ou rapidamente adaptáveis as novas circunstâncias14.
Posto isso, os planos de desenvolvimento econômico para o país, em especial da região Norte, foram gerados mediante o Programa de Integração Nacional (PIN) I e II, que estruturou por meio das rodovias o acesso entre os estados brasileiros, trazendo não só o progresso econômico como também problemas ambientais advindos dessas estratégias geopolíticas para o crescimento e povoamento das regiões fronteiriças do Brasil15.
A pretensão do governo à época foi de estabelecer assentamentos ao longo das rodovias, fixando famílias que pudessem desenvolver a agricultura e a pecuária. O incentivo governamental também foi
Fac-símile | Data | Página | Título |
Número 01 | 23/02/1975 | 02 | Secretaria de Saúde e de Obras aceleram a construção da enfermaria do Índio. |
Número 02 | 20/04/1975 | 05 | Governo aprimora a assistência ao índio. |
Número 03 | 30/10/1981 | 17 | O Macuxi - A integração do Índio na sociedade (1ª parte). |
Número 04 | 08/04/1983 | 08 | A assistência e apoio ao indígena. |
Fonte: Acervo da imprensa oficial do estado de Roraima, Boa Vista-RR.
pautado na motivação de atrair investidores nacionais e internacionais para as localidades com intuito de desenvolvimento industrial, tendo como atrativo principal a redução das taxas tributárias15.
Estes empreendimentos mobilizados pelo governo da época fazem perceber o interesse em oferecer à região Norte que se pretendia dominar uma postura desenvolvimentista, e porque não dizer, a intenção de incutir uma nova conduta, uma nova identidade que passaria a concorrer com a cultura já estabelecida. Isso evidencia a manifestação de poder dos agentes dominantes pela força simbólica retratada nas alianças citadas, por meio de estratégias de “dissimulação ou embuste”, que pareciam querer afastar os indivíduos localizados na dita rota de desenvolvimento, de sua identidade legítima, impondo novo habitus, o que serviria aos interesses dos tomadores de decisão na época16.
Desta maneira os órgãos indigenistas ao invés de proteger, como previa a política indígena da época, apresentavam-se apassivados frente ao governo dominador. Efeito simbólico que assevera o poder dos dominantes a partir do capital econômico, que na maioria das situações, legitima a sua dominação. Logo, as entidades que deveriam representar os interesses dos indígenas, ficam subjugadas ao controle dos dominantes16.
Os impactos causados no meio ambiente e nas culturas indígenas, provenientes do processo de desenvolvimento no país, logo repercutiu no cenário internacional como denúncia, o que levou o regime militar a aprovar o Estatuto do Índio no ano de 1973 a partir da Lei n.6.00117, de teor assimilacionista e tutelar, como forma de dar satisfação aos credores internacionais18. Diga-se, que a partir de então, as lideranças indígenas começaram a questionar os políticos e indigenistas, e a se organizarem em movimentos de resistência e luta, para garantia dos direitos previstos na Constituição Federal de 198819.
As inúmeras alterações no habitus dos indígenas e consequentemente, no campo social em que se inserem, provocadas pelas ações políticas conduzem a um comportamento de não concordância e a formação de alianças simbólicas20.
Alianças representadas pela participação de entidades, setores públicos e da iniciativa privada e simpatizantes das causas indigenistas. Emerge o que pode ser chamado de uma revolução que se opunha ao massacre de caráter étnico e cultural imposto aos indígenas.
À luz do constructo teórico e sociológico bourdieusiano, tais imposições tendem a ocorrer com maior intensidade, dentro das estruturas sociais em que há dúvidas acerca de sua ordem e do espaço que ocupam. Embora entre os indígenas a estrutura hierárquica seja clara e definida, compondo veementemente o seu habitus, havia uma situação de poder invisível, que interferia neste contexto e demandou a necessidade de movimentos contundentes15,20.
Desta maneira, os habitus dos agentes indígenas, sujeitos ativos, reagiram às investidas políticas de dominação de seu povo. Reações caracterizadas pela elaboração de estratégias no espaço social e interrelacional onde o poder circula, retomando sua condição de indivíduos potencialmente portadores de autonomia, liberdade e racionalidade21.
Esta organização dos indígenas está estruturada no habitus, ou seja, na capacidade dos sujeitos de agir em um determinado campo, por meio de um senso prático, no qual consiste em um sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e de divisão, e que se afirma por meio de estruturas cognitivas duradouras, com a utilização de esquemas de ação que orientam a percepção da circunstância e a resposta apropriada8.
Segundo o mesmo autor, a medida em que o agente indígena interpreta as imposições do campo, passa a desenvolver estratégias de enfrentamento, calculadas de modo “inconsciente” - revelando as alterações em seu modus operandi a partir do que decodifica do campo22.
Dessa forma, emerge como efeito simbólico a resistência dos povos indígenas, considerada um obstáculo aos planos do governo na época. Isso porque a ocupação dos espaços habitados pelos povos indígenas era parte dos planos ambiciosos dos governantes, na intenção de desenvolver as regiões periféricas e vulneráveis do país mediante as rodovias, facilitando assim o acesso entre os estados brasileiros23.
Este espaço pode ser compreendido como um campo de forças e de luta, que obrigou os indígenas a enfrentarem os governantes. Estas formulações descritivas autorizam o reconhecimento que o estudo histórico, representado pela própria materialidade da história, só se revela quando os agentes envolvidos se revoltam, resistem e agem coletivamente24.
É preciso considerar que com o processo de ocupação dos territórios indígenas, muitas doenças começaram a emergir, como as infecções respiratórias e gastrointestinais agudas, malária, sarampo, tuberculose, infecções sexualmente transmissíveis (IST), anemia e desnutrição, ocasionadas pelo contato entre os indígenas com os não-indígenas no período de desenvolvimento econômico do país, em especial nas décadas de 1970 e 198025,26.
Nesse contexto surge a necessidade de atendimento dessa população que passa a viver um novo contexto de situação de doença, onde a medicina tradicional não conseguia promover a cura. Assim, para atender as demandas de saúde, foi publicada pelo Jornal Boa Vista (p.02, ano II, 59.ª ed.23 fev. 1975) matéria que publicizava a criação da Enfermaria do Índio anexa ao Hospital Coronel Mota, localizada na região central da cidade de Boa Vista-RR, sendo o primeiro espaço específico para um atendimento diferenciado27.
A década de 1970 iniciou o movimento indígena organizado no Território Federal de Roraima, voltado para o reconhecimento dos direitos, principalmente os espaços tradicionalmente ocupados, com reflexos em outras áreas, como o atendimento à saúde. Um olhar diferenciado e de reconhecimento de direitos passa a fazer parte das ações estatais, mesmo que incipiente, e ocorre a transferência da unidade de atendimento em saúde para um espaço diferenciado - a CASAI28.
É possível inferir que tal situação ocorreu devido ao caos da saúde dos indígenas no Território Federal de Roraima devido a ocupação e exploração dos territórios, em vários cenários de abusos e demonstração de poder dos políticos em relação ao assoberbado plano de desenvolvimento da região Norte do Brasil., O primeiro espaço para atendimento específico para os indígenas foi a primeira CASAI construída em Roraima em 1976, para atender as elevadas demandas de saúde referenciadas de área indígena pela FUNAI e Missões religiosas que atuavam com está população.
O Jornal Boa Vista deu visibilidade em dois momentos distintos sobre a primeira enfermaria do Índio no estado de Roraima (Fac-símile número 1). O primeiro quando relata sobre o olhar governamental: “Está sendo construída a Enfermaria do Índio. Preocupação marcante de ajuda e assistência ao brasileiro indígena, precursor dos legados Amazônicos”27. A preocupação referida no texto remete a intenção do governo em minimizar os agravos cometidos à saúde das populações ameríndias devido ao desenvolvimento econômico da época, tal como o processo migratório para estabelecimento de assentamentos e de agrovilas ao longo da rodovia BR-174 que estava em construção, além do garimpo. Tais medidas progressistas oportunizaram a entrada de doenças e que agora precisam ser controladas, sendo a enfermaria do índio um espaço para o tratamento.
O fac-símile número 01 em tons de cinza, de formato retangular, traçado em plano geral e disposição horizontal, traz a informação da construção de alvenaria em andamento, no qual se observa à frente da obra aglomerados de material de construção.
A obra em tela representa espaços para disposição de janelas, portas e local para instalação de ar-condicionado. A imagem retratada e o teor da matéria que a acompanha traduz em efeitos simbólicos, a “preocupação” dos dominantes em justificar para a sociedade que as consequências de suas estratégias políticas e econômicas eram amenizadas pela assistência em saúde prestada ao indígena. (Fac-símile 1)
As obras de construção da Enfermaria do Índio, intenta causar este efeito simbólico. Na linguagem bourdieusiana o poder político, e a forma como podem se transformar em verdades, em função do poder simbólico são representados pelas ações e pelas intenções que estão por trás delas: “Em política, dizer é fazer, quer dizer, fazer crer que se pode fazer, o que se diz...”15. No segundo momento, o Jornal Boa Vista publicou a matéria jornalística sobre a Semana do Dia do Índio em 197527 realizada em Brasília-DF. Nela constam os serviços de saúde prestados na recém-inaugurada enfermaria do índio em Boa Vista - RR pelo Ministro Paulo de Almeida Machado o que reforça a ação dos agentes federais sobre a questão da saúde indígena.
No fac-símile número 02 em tons de cinza, tipo de fotografia instantânea e formato quadrangular, layout fotográfico de plano conjunto, em vertical. O ambiente da enfermaria é composto por um quarto com uma janela aberta, nela uma criança sentada segurando as pernas ao lado da cortina,
demonstrando uma forma diferenciada de apropriação do espaço que deve ser compreendida de acordo com a realidade cultural da etnia indígena em questão.
É possível observar ainda uma cama com travesseiro e um paciente sobre ela coberto por um lençol até a região cervical, e que o paciente está com os membros superiores descobertos e com uma punção venosa no braço esquerdo fletido próximo a face. Ao lado direito da imagem, observa-se uma mulher em pé ao lado da cama entre o equipo pendurado no suporte conectado a bolsa de medicação, a mesma possui cabelos curtos, está de óculos, portando relógio no braço esquerdo, com vestimenta clara, uma camisa de manga curta e saia. Embora não haja elementos para o aprofundamento no debate sobre gênero, é importante considerar a possibilidade de diferenciação dos atributos e papeis do feminino e masculino nas situações de enfermidade.
No que diz respeito à ambientação para a prestação dos cuidados aos pacientes indígenas é importante ofertar um espaço que atenda ou esteja próximo aos seus costumes e cultura, facilitando assim o processo de reabilitação da saúde do mesmo; o fac-símile número 02 é acompanhado do texto jornalístico que retrata o habitus do acompanhante indígena: “Casos interessantes ocorrem na ambientação hospitalar, como é o caso de um índio Yanomami, que preferiu a janela da enfermaria como lugar de repouso ao leito ou a rede (...)”29.
Por mais que se tenha pensado de maneira integral na assistência à saúde dos indígenas, com a construção de um espaço de cuidar específico para os serviços e tratamentos, o ambiente não atendeu ao modo de vida do indígena. Isso porque o ambiente da enfermaria não faz parte do cotidiano existencial em sua comunidade, por melhores que fossem as intenções dos profissionais da saúde em seus atendimentos, o conforto do paciente foi colocado em risco, por não fazer parte dos seus hábitos e costumes.
A título de exemplificação destes campos de controle presentes em Boudieu22,24, verifica-se que: deitar em uma cama, ou ter que acompanhar o outro sentado em uma cadeira ao lado da cama não representa os hábitos circulantes em territórios indígenas substituídos por redes de dormir. Eram inevitáveis as severas mudanças assinaladas no corpo biológico do indígena, devido às situações completamente adversas à sua realidade e seus costumes, e isto fica claro na imagem que apresenta o indígena enfermo e na postura corporal da criança indígena que se posiciona na janela.
Esta força simbólica, refletida na imagem demonstra a estrutura e todo o aparato destinado à assistência em saúde, que insistia em modificar o modus operandi do indígena. Este poder é capaz de operar transformações duradouras nos corpos, muitas vezes permanentes e involuntariamente, esses mesmos corpos sujeitos a este cenário de dominação, passam a integrar-se ao jogo social e pode-se perceber neste particular, um dos objetivos dos dominados sendo atingido de modo eficiente, ainda que a eficácia esteja longe de se concretizar30.
É possível inferir que essas estratégias dos dominantes fazem parte do exercício da violência simbólica no qual Bourdieu31 destaca que, pelo efeito de lugar, agentes são incluídos ou excluídos, aproximados ou distanciados, já que o “espaço é um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce sob a forma mais sutil, da violência simbólica”, cujo imperativo é a força da influência que opera mudanças sem que necessariamente os agentes percebam ou consintam.
Embora haja a narrativa oficial do governo federal a respeito da política indigenista e, consequentemente, da implementação da CASAI, é importante destacar que tal processo resulta do trabalho social de um conjunto de agentes especializados na administração pública e na área de saúde.
Observar este processo a partir da FUNAI remete a considerações sobre improvisações para receber os indígenas em tratamento em Boa Vista. Nesse contexto, a FUNAI, mediante os esforços empreendidos pela servidora Arlete Coelho de Araújo, buscava encontrar um espaço, que pudesse construir um abrigo afastado da Capital, próximo a um igarapé, a fim de garantir aos indígenas condições análogas à sua vida na floresta, durante o período que permanecessem em tratamento na Capital de Roraima4.
Quanto às observações sobre os efeitos simbólicos da implantação da CASAI em Roraima, é preciso colocar em relevo histórico, Anísio Fernandes, que possuía origem indígena (Etnia Macuxi) e ganhou destaque em setores vinculados a cultura e comunicação, na cidade de Boa Vista. Ele era artista plástico e foi membro do Conselho Estadual de Cultura, chefe da divisão de publicação e artes gráficas da imprensa oficial de Roraima e um defensor da visibilidade indígena no estado.
Dentre suas ações pode-se observar que, na qualidade de conselheiro, ele foi relator e defensor do projeto de gravação do CD Orgulho Macuxi, e foi o precursor das histórias em quadrinhos em Roraima. Cabe sublinhar, que em 22 de maio de 1981, criou o primeiro personagem indígena no Jornal de Boa Vista: tratava-se da personagem denominada “O Macuxi”32. Além de fazer alusão à própria etnia, o artista, demonstrava como era a vida cotidiana dos indígenas roraimenses, e valorizava a cultura regional por meio das histórias, lendas e costumes das comunidades indígenas.
Embora esse agente tenha falecido em 25 de junho de 2014 é possível ter ideia de sua versão a respeito da integração indígena na “sociedade nacional” por meio da publicação da página “O Macuxi”32, publicada no Jornal de Boa Vista em 30 de outubro de 1981. Nesse documento, a CASAI é citada em uma historieta em 12 quadrinhos, intitulado: A integração do Índio na sociedade (1ª parte), permitindo transmitir a maneira de ver do cartunista por meio da charge o contato introdutório de um indígena à cultura dos não-índios no interior de Roraima, como demonstrado dos quadrinhos 4 e 5 do Fac-símile número 03.
O relato descreve um indígena chamado Elesbão, que teve seu primeiro contato com os não-índios na vila do Bonfim, local onde iniciou seus estudos. Doente, em 1978, Elesbão chegava a Boa Vista, sendo internado na CASAI (Quadrinhos 04 e 05), local no qual recebeu tratamento em saúde, e com o tempo fez amizades com os funcionários. Após restabelecimento de sua saúde, passou a residir no local, e dia-a-dia passou a ajudar aprendendo a cuidar de outros internos. A notícia é reveladora, pois afirma que Elesbão fez curso de Datilografia e atendente de Enfermagem (Figura 3 / Fac símile 3).
É possível pensar que as ações das funcionárias da FUNAI, na busca de melhores condições de atendimento ao indígena, e do artista Anísio Fernandes, o trabalho de fornecimento de visibilidade da cultura indígena não pode ser dissociados do fato de o governo do Território Federal de Roraima, em 1982 ter cedido uma área para a construção do projeto idealizado pelo Engenheiro Civil da FUNAI Heráclites Macedo, atendendo assim as necessidades dos usuários indígenas, sendo observados os seus costumes e hábitos. Modelo este que mais tarde foi executado na capital do estado do Amazonas, CASAI-Manaus4.
O jornal Boa Vista, em 1983, deu visibilidade à assistência e apoio à saúde dos indígenas, com a publicação de matéria no suplemento especial de 08 de abril, página 08 no qual chama atenção o fac-símile número 4 que traz a imagem da indígena com o filho(a) no colo.
Fonte: Acervo da imprensa oficial do estado de Roraima. Jornal Boa Vista, Suplemento especial, 08/04/1983, p.0833
Legenda: A comunidade indígena, recebendo o tratamento adequado.
A notícia sintetiza as benfeitorias realizadas no governo Ottomar Pinto, sendo uma delas a inauguração da CASAI em 1982 em Boa Vista33. Infere-se que a CASAI simbolizaria o retorno dos agentes governamentais à sociedade e à população indígena.
Após a observação da matéria e do suplemento, fica evidente o trabalho dos assessores de comunicação do governo, e também que o próprio periódico pode ser compreendido como estratégia governamental, pois de acordo com Bourdieu22,31 esta é uma estratégia de modelagem do campo, cujos objetivos invisíveis, são justamente marcar posição hierárquica e ao mesmo tempo, transparecer atenção e cuidado, no qual diversos agentes se posicionam em torno da construção de uma percepção de mundo direcionada aos povos indígenas.
Embora o jornal tenha fornecido espaço para a defesa indígena feita por Anísio Fernandes, o mesmo veículo também é caracterizado por ser tendencioso e de caráter governamental34. Nesta corrente a fotografia age como um produto social e um recurso por meio do qual é possível compreender uma série de atores, redes, subjetividades e sentidos35.
No que tange a fotografia que mostra “A comunidade indígena recebendo tratamento adequado”, traz consigo um conjunto de representações sociais na mediação da relação entre “sociedade nacional” e “indígena”. Demonstra os grupos indígenas por meio da imagem de uma mulher segurando uma criança, agentes sociais que carregam todo um imaginário de fragilidade na sociedade dos “brancos”.
Nesse sentido, a fotografia aguça o imaginário, provocando o fascínio pelo que é “incomum”, e na matéria em apreço, evidencia a já dita fragilidade reforçando o papel do Estado como agente acolhedor e protetor36. Frente ao exposto, o estado por meio da assessoria de comunicação transmite a imagem de um órgão forte que dá “assistência e apoio” ao indígena, deixando clara a forma de relação que é estabelecida com eles, e determinando visualmente a condição de “apoiado” e “frágil”.
A referida imagem reflete a força desses efeitos, por transmitir uma espécie de alento à sociedade e aos índios que mesmo dominados pela força invisível do poder das ações empreendidas pelo Estado, são “acalentados” por um suposto cuidado que provém daqueles que detém o poder legitimado pelos cargos políticos que ocupam11.
As narrativas históricas produzidas a partir das imagens presentes em notícias contribuem para a prática dos trabalhadores da saúde implicados na atenção à saúde indígena. Neste ponto, a CASAI é concebida como serviço de saúde, e, ao mesmo tempo um campo de forças, geradoras de práticas capazes de atender às especificidades singulares e coletivas das populações indígenas no estado de Roraima.
Além disso, espera-se que este estudo motive a reflexão no campo político para idealização e implementação de práticas de saúde inovadoras no atendimento da realidade social do indígena. Por fim, acredita-se que sua narrativa aproximada aos pensamentos de Bourdieu promova profícuos diálogos científicos no âmbito da sociologia e história social dos povos indígenas.
CONCLUSÃO
As narrativas sobre os efeitos simbólicos da implantação da CASAI de Boa Vista - Roraima no campo da saúde no período de 1973 a 1983 emergem como pano de fundo no cenário desenvolvimentista da época, como moeda de troca entre os governantes e os indígenas que sofriam com a entrada de doenças em suas comunidades pela ação direta do processo migratório devido ao garimpo em seus territórios.
A entrada de outros atores sociais, representados por organizações não governamentais e universidades, permitiu que o cenário fosse mudado estrategicamente em favor dos povos indígenas, que passaram a jogar com maior autonomia, o que garantiu no final da década de 1980 mediante a Constituição Federal (1988) seus direitos sobre os territórios, seus costumes, língua, e ainda, saúde e educação, embora persistam nos dias atuais desafios no que tange a produção do cuidado na saúde do indígena, sobretudo o alinhamento antropológico e o respeito às suas crenças, costumes e tradições.
CONFLITOS DE INTERESSE
Os autores do manuscrito declaram que não há conflito de interesse de tipo pessoal, econômico, interinstitucional, nem de outra natureza.
AGRADECIMENTO
In memoriam ao Professor Raphael Florindo Amorim grande idealizador deste estudo.