Introdução
O câncer é uma doença que envolve significativas repercussões, tanto na vida da pessoa que adoece quanto na dos familiares que acompanham todo o processo desde o diagnóstico, passando pelo tratamento e recuperação, demandando a atuação de uma equipe multiprofissional de saúde no que tange à avaliação e ao suporte à pessoa e sua família1. No contexto do câncer infantil, os tumores mais frequentes na criança e no adolescente são as leucemias, os do sistema nervoso central e linfomas2.
Assim como em países desenvolvidos, no Brasil, o câncer já representa a primeira causa de morte (8% do total) por doença entre crianças e adolescentes de 1 a 19 anos. Estima-se que ocorrerão cerca de 12.600 casos novos de câncer em crianças e adolescentes no Brasil por ano, em 20172. Os impactos causados pelo câncer envolvem aspectos físicos, psicossociais e financeiros sobre a vida do paciente e seus familiares. Frequentemente é a mãe quem acompanha o processo de hospitalização da criança que, apesar dos sentimentos de ansiedade, emoção, angústia e depressão, se submete a mudanças em seu estilo de vida3.
A mãe assume o pilar central da estrutura familiar, e é sob a sua administração que estão a criação e a educação dos filhos, o cuidado com a casa e com a saúde dos integrantes da família. A atribuição de cuidadora é uma perspectiva que se tem dela e que ela tem de si mesma. Para desempenhar esta atribuição, a mãe acaba criando meios, como o ajustamento do horário de trabalho e a renúncia do emprego em favor das rotinas domésticas e das demandas dos filhos4.
As mães, ao se depararem com a notícia do câncer de seu filho, sofrem o primeiro impacto do diagnóstico, seguida das grandes mudanças que irão interferir na sua vida. Desse modo, as mães ficam vulneráveis diante de momentos de temor, incertezas, ansiedades e acabam por abdicar de seu convívio social para viver a rotina do diagnóstico e do tratamento de seu filho, aceitando ficar longe de seu domicílio, com pessoas estranhas a sua família ou amigos5.
Este estudo procura dar visibilidade aos sentimentos, anseios e expectativas de mães que vivenciaram o diagnóstico de câncer dos seus filhos, a fim de contribuir com o bem-estar social da criança e de sua família e subsidiar a ação dos profissionais da saúde, em especial do enfermeiro, quanto à necessidade de aprimorar a assistência à saúde da criança, mediante uma atuação profissional que ultrapasse o fazer técnico por meio de procedimentos para um agir sensível no cuidado.
Diante dessa perspectiva, este estudo tem como objetivo apreender as vivências de mães que acompanham os filhos no tratamento de câncer.
Materiais e método
Trata-se de um estudo descritivo de abordagem qualitativa, realizado com mães de crianças com diagnóstico de câncer e que foram acolhidas em uma casa de apoio à criança com câncer, da cidade do Recife, Pernambuco, Brasil. A referida casa tem a função de fornecer hospedagem, transporte, alimentação, suporte psicossocial, atendimento multiprofissional, dentre outros programas educativos, durante o período de tratamento da criança, no serviço hospitalar de referência.
As participantes do estudo foram selecionadas por amostragem do tipo conveniência, no período de permanência dos pesquisadores na casa de apoio. Os critérios de inclusão foram: ser a mãe cuidadora e responsável pela criança em tratamento de câncer; ter idade igual ou superior a 18 anos, estar acompanhando o tratamento do filho há três meses ou mais. A definição do número e do tamanho da amostra foi determinada por procedimentos de saturação teórica dos dados6.
A coleta de dados ocorreu nos meses de junho a julho de 2014, por meio de entrevista semiestruturada, cujo roteiro pesquisava dados de caracterização das participantes e apresentava três perguntas disparadoras: (a) Relate sua vivência no tratamento de um filho com câncer. (b) O que mudou na sua vida e da família, após o diagnóstico do câncer de seu filho? (c) Como foi a relação com os profissionais de saúde e o convívio no ambiente hospitalar, durante o tratamento?
As participantes foram abordadas com o apoio do serviço de psicologia da casa que disponibilizou uma sala privada, onde as mães foram esclarecidas sobre o objetivo da pesquisa e convidadas a participar. Somente após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foram realizadas as entrevistas, por duas das pesquisadoras que receberam as mesmas orientações. Foi empregado o recurso de gravação de áudio, e cada entrevista durou, em média, 20 minutos, com posterior transcrição na íntegra dos depoimentos.
Para a análise dos dados, utilizou-se o método de interpretação de sentidos, baseado em princípios hermenêutico-dialéticos que buscam interpretar o contexto, as razões e as lógicas de falas, ações e inter-relações entre grupos e instituições7. Na trajetória analítico-interpretativa, cumpriram-se os seguintes passos: leitura compreensiva das transcrições, com vistas à visão de conjunto e à apreensão das particularidades do material empírico; identificação e recorte temático dos elementos que emergiram dos depoimentos; identificação e problematização das ideias explícitas e implícitas nos depoimentos; busca de sentidos mais amplos (socioculturais), subjacentes às falas das mães, sujeitos da pesquisa; diálogo entre as ideias problematizadas, informações provenientes de outros estudos acerca da temática; e elaboração de síntese interpretativa, procurando articular objetivo do estudo e dados empíricos7.
Considerações éticas
Para assegurar o sigilo, as participantes foram identificadas com a palavra Mãe, seguida do número arábico correspondente à ordem das entrevistas. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Geral Otávio de Freitas, com parecer de nº 613.109 e registro CAAE: 30305613.2.0000.5200.
Resultados
Caracterização das participantes
Participaram da pesquisa oito mães, todas acompanhavam seus filhos, durante o período de tratamento do câncer. O perfil das participantes pode ser identificado na Tabela 1. Verificou-se que as mães não conseguiram terminar seus estudos, inclusive a escolaridade básica, bem como baixas condições socioeconômicas e ocupações que requerem baixa qualificação e pouca escolaridade.
Quanto aos tipos de câncer infantil, houve predominância das neoplasias do sistema hematológico (leucemia linfocítica aguda) e do sistema ósseo (osteossarcoma). A faixa etária das crianças diagnosticadas com câncer variou entre 1 e 10 anos.
Tabela 1 Perfil das mães cuidadoras de crianças com câncer entrevistadas. Recife, 2014.(frequência absoluta = fi, frequência relativa = FI)
Variáveis | fi | FI |
---|---|---|
Faixa Etária 21 - 31 32 - 41 | 3 5 | 37,50 62,50 |
Estado Civil Casada | 8 | 100,00 |
Escolaridade Ensino fundamental incompleto Ensino médio incompleto Analfabetismo funcional | 3 3 2 | 37,50 37,50 25,00 |
Renda Familiar < 1 salário-mínimo 1 a 2 salários-mínimos | 5 3 | 62,50 37,50 |
Número de filhos 1 2 a 4 | 1 7 | 12,50 87,50 |
Moradia Casa própria Casa alugada Profissão Agricultora Doméstica Do lar Religião Católica Evangélica | 3 5 3 3 2 4 4 | 37,50 62,50 37,50 37,50 25,00 50,00 50,00 |
Fonte:Elaboração dos autores
As principais dificuldades apontadas pelas mães, diante do diagnóstico e tratamento do câncer pediátrico, envolveram questões desde o acesso aos serviços de saúde local, que pudessem suprir as necessidades de informações e direcionar o diagnóstico precoce, até as condições precárias de transporte fornecidas pela gestão do município, como pode ser identificado na Tabela 2.
Tabela 2 Dificuldades vivenciadas pelas mães. Recife, 2014. (frequência absoluta = fi, frequência relativa = FI)
Dificuldade | fi | FI |
---|---|---|
Acesso à medicação | 01 | 12,5 |
Informação sobre o tratamento | 01 | 12,5 |
Prioridade nas consultas e exames | 02 | 25,0 |
Relacionamento com os profissionais | 02 | 25,0 |
Apoio familiar | 02 | 25,0 |
Financeira | 02 | 25,0 |
Diagnóstico inicial | 02 | 25,0 |
Transporte | 04 | 50,0 |
Mudança de rotina pessoal | 08 | 100,0 |
Fonte:Elaboração dos autores
A partir dos dados das entrevistas, emergiram quatro núcleos de sentidos que traduzem a vivência materna no cuidado ao filho com câncer infantil, como mudanças na vida pessoal e familiar e o relacionamento prolongado com os profissionais de saúde.
Vivência com um filho em tratamento de cáncer
Ao vivenciar aconfirmação do diagnóstico de câncer do filho, a mãe sofre com o impacto da notícia, emergindo sentimentos de desespero, aflição, angústia, medo, tristeza, choque e incertezas que as colocam em situações-limite para encarar as peculiaridades que envolvem o diagnóstico do câncer infantil.
[...] pra mim foi como se tivesse desabado o mundo, fiquei sem chão, em estado de choque [...] eu nunca imaginei, fiquei muito desesperada![Mãe 1]
[...] sofri muito, chorava bastante eu não queria aceitar [...] eu não tinha vontade de comer, eu ficava muito pensativa. [...] fiquei muito abatida né [...] eu tô mais, é vamos dizer, mais conformada [...] mas é muito difícil [...] pra mim tinha acabado o mundo foi muito triste. [Mãe 5]
[...] É muito difícil [...] até o momento é duro, você nunca sabe lidar com isso e de repente você se ver, convive com tudo isso [...] você entra em desespero. [Mãe 7]
[...] passaram um remédio que não era para ele tomar, porque que não sabiam o problema [...] Aí internou ele, foi quando a gente descobriu o que realmente era [...][Mãe 8]
Mudanças na vida pessoal e familiar
O câncer impõe ao indivíduo perdas de diferentes naturezas, com alterações na saúde física e mental, na liberdade e na rotina diária. Os depoimentos das mães revelam mudanças nas atividades de vida diária, com a necessidade de delegar a outros os cuidados com os demais filhos, pelo distanciamento do lar e dos familiares; como também por necessitar interromper compromissos empregatícios e/ou com sua formação.
Das oito mães entrevistadas, cinco destacaram que deixaram de trabalhar para se dedicarem, exclusivamente, ao tratamento do filho.
[...] Mudou muitas coisas, agora me dedico mais a ele [...] deixei de trabalhar. [Mãe 1]
[...] É muda, muda que é como diz o ditado: Eu tô vivendo mais por ela [...] trabalhava, eu tive que deixar pra me dedicar a ela [...][Mãe 4]
[...] eu tava trabalhando [...] aí tive que entregar, porque como era que eu ia trabalhar e cuidar dele. [Mãe 6]
[...] eu trabalhava nos finais de semana e de repente me vi sem poder trabalhar. [Mãe 7]
A Mãe 3 relatou a falta de liberdade após o diagnóstico de câncer de seu filho, relacionando uma sensação de aprisionamento à necessidade de conduzir o filho aos serviços de saúde, devido ao tratamento prolongado.
[...] a liberdade que a gente tinha não tem mais [...] mudou porque eu passo mais tempo aqui que em casa. [Mãe 3]
As Mães 5 e 6 expressam o sentimento de abandonar a família, além da preocupação de ter de delegar a outras pessoas o cuidado com os demais filhos.
[...] Então, mudou assim, a rotina né [...] tive que abandonar a família e tudo. [Mãe 5]
[...] Mudou, porque agora eu tenho outros filhos que são menores e praticamente eles estão abandonados. [Mãe 6]
Por outro lado, os depoimentos das Mães 1 e 2 demonstram o quanto é significativa a estrutura familiar. A experiência de ter um filho com diagnóstico de câncer ocasionou mudanças nas relações interpessoais e intensificação dos laços de afeto e solidariedade.
[...] ficou todo mundo preocupado, nos dão mais atenção, mais carinho, ficamos mais presentes [Mãe 1]
[...] a família já era unida, graças a Deus ficou mais [...][Mãe 2]
A mãe que não tem o suporte familiar enfrenta uma lacuna de apoio essencial para atravessar a experiência de ter um filho com diagnóstico de câncer, conforme relatos das mães 7 e 8.
[...] a gente não é uma família unida e agora não mudou muita coisa. [Mãe 7]
[...] ninguém da família mesmo ligou pra saber como tá [...][Mãe 8]
A rede de apoio social é constituída de várias maneiras, com pessoas sensibilizadas e que se identificam com o sofrimento da mãe. O apoio de amigos é mencionado na fala da mãe 8.
[...] não parei mais em casa, não tenho ninguém com quem contar [...] mas a única ajuda que tenho é de amigos. [Mãe 8]
Vale destacar que o apoio dado pelos familiares e pelos amigos, certamente, poderá ajudar no enfrentamento do tratamento do câncer em seu filho, permitindo amenizar o sofrimento. Quanto mais ampla e consistente for a rede de apoio, mais favorável será a adaptação damãe à situação a que está exposta.
Dificuldades vivenciadas pelas mães para o tratamento do filho
O fato é que muitas delas residem em cidades distantes do centro hospitalar de referência para tratamento oncológico do filho, é frequente a mãe vivenciar dificuldades com o transporte, porém ainda houve relatos de outras situações adversas, como poucos recursos financeiros, impossibilidade de conciliar o trabalho; afastamento da família, passando a conviver com outras pessoas estranhas; e o desgaste físico e emocional gerado por longa espera para o atendimento da criança.
[...] arranjar um transporte é uma dificuldade [...] porque o certo é a prefeitura dar o transporte, mas eles não querem dar. [Mãe 2]
[...] eu não tinha onde ficar [...] em relação ao transporte no começo não tinha facilidade. [Mãe 3]
[...] Tinha a questão da passagem né [...] para voltar, muitas vezes os motoristas não nos esperam. [Mãe 6]
Identifica-se, no relato da Mãe 3, o cansaço físico e mental gerado pela demora na espera pelo atendimento no hospital, mesmo com a consulta marcada. Ela sugere que as crianças diagnosticadas com câncer deveriam ter prioridade no atendimento.
Eu só achei dificuldade no dia da consulta [...] o atendimento era cedo [...] aí você fica o dia todinho no hospital. [Mãe 3]
Já a dificuldade relatada pela Mãe 5 está relacionada à manutenção do equilíbrio financeiro da família, já que a mesma parou de trabalhar para assumir o cuidado integral do filho.
[...] a questão financeira agora é mais difícil [...] já peguei dinheiro emprestado pra poder vir para cá, para não vir sem dinheiro. [Mãe 5]
O depoimento da Mãe 7 destaca sobre a adaptação à nova rotina com a necessidade de estabelecer interações, durante a convivência com os profissionais e com outras mães que se encontram na casa de apoio, durante a permanência do tratamento hospitalar, na capital.
[...] quando você chega, você se sente uma pessoa estranha, um pouco perdida, porque está no meio de pessoas que você nunca viu, e de repente você tem que aprender a conviver no dia a dia. [Mãe 7]
Relacionamento com os profissionais dos serviços de saúde
Foram identificados, nos depoimentos, uma preocupação com a qualidade do atendimento à criança, durante a permanência no serviço hospitalar, e o reconhecimento da competência dos profissionais envolvidos. São fatores que, somados à dedicação da mãe, proporcionam a construção de relações terapêuticas que subsidiem o cuidado humanizado e promovam conforto nos momentos delicados do tratamento.
[...] Enfermeiros, médicos, eles foram muito legais, assim, davam apoio tudo, tratavam eu e ela muito bem, graças a Deus. [Mãe 2]
[...] Tinham enfermeiras bem atenciosas com a gente, que ajudava [...] sempre que tínhamos alguma dúvida pedia e elas explicam claramente. [Mãe 4]
[...] fui bem atendida desde o começo até hoje [...] todas as doutoras já chamam a minha filha, chegam abraçando ela e beijando, as enfermeiras vem tudinho, se dão bem comigo e com ela. [Mãe 5]
[...] alguns profissionais trabalham com amor [...] porque quem tá aqui precisa de muita atenção e carinho [...][Mãe 6]
Em seu relato, a Mãe 7 desabafa quanto à importância de fortalecer o papel da mãe no processo de cuidar. A mãe busca entender e compreender o que acontece e precisa adquirir confiança na equipe de saúde, o que concorre para harmonizar a comunicação e abrir espaço no afloramento da esperança e do desejo de o filho alcançar a cura.
[...] há dificuldade com algumas enfermeiras porque não reconhecem a gente como mãe e o nosso esforço [...][Mãe 7]
Discussão
O relato das mães, quanto às dificuldades vivenciadas no diagnóstico de câncer dos filhos, demonstrou que as mesmas vivenciam repentinas modificações na sua vida e de sua família, pois vivem momentos de ameaça à vida de seus filhos pela gravidade da doença, ainda tão obscura e incerta. Na literatura, é destacado que a experiência de tornar-se mãe de uma criança com câncer é repleta de intensos significados quanto ao desempenho do papel materno no processo de adoecimento5, pois além de se comportar como acompanhante de seu filho na jornada do tratamento, ela também é mãe o que leva à construção de sentimentos mais profundos e expectativas positivas ou negativas, diante da doença.
No presente estudo, foram identificadas dificuldades que abordam a vida afetiva, convívio social e comportamental das mães. Foi evidenciado que lidar com o diagnóstico de câncer gera diversos sentimentos como desespero, medo e tristeza para a mãe, especialmente por ser o familiar que passa a assumir as funções de cuidador. Nesse tocante, percebe-se que o adoecimento da criança acarreta sofrimento físico e psíquico, em função da longevidade do tratamento, do distanciamento dos familiares e da solidão durante a sua peregrinação em busca de tratamento e, consequentemente, da condição de privação dada pela hospitalização8.
No núcleo de sentido que diz respeito à vivência de ter um filho com câncer, tem-se, na dimensão emocional, a predominância dos sentimentos de dor, tristeza, choque e impotência. Esses sentimentos estão relacionados com o fato de o diagnóstico de câncer estar fortemente ligado com a situação de morte. A palavra câncer apresenta o estigma e a ameaça de uma morte antecipada, o que resulta em um intenso sofrimento por parte das pessoas envolvidas9.
É importante mencionar a dificuldade vivenciada pelas mães na falta de rapidez do diagnóstico inicial e a ausência de uma rede de assistência à saúde local que garantisse a acessibilidade da criança, o que concorreu para que houvesse o deslocamento até a capital para obter tal confirmação. Essa falta de resolutividade também foi apontada em outro estudo, mostrando que o diagnóstico de câncer da criança não foi imediato, o que levou à peregrinação exaustiva das famílias10.
Ao observar os caminhos das políticas de atendimento na área oncológica, percebem-se lacunas a serem preenchidas, a fim de garantir a dignidade dessas crianças que vivenciam este processo. Embora existam normativas que garantam o acesso equitativo à saúde, encontram-se defasadas principalmente por problemas estruturais que merecem uma maior atenção11. A consolidação das redes de atenção à saúde é uma proposta inovadora do Sistema Único de Saúde (SUS), e poderiam corrigir as lacunas existentes no atendimento inicial da criança com câncer, com resolutividade e articulação efetivas entre as instituições de saúde em nível primário, secundário e terciário e o reconhecimento dos demais órgãos e serviços de apoio social.
Referindo-se ao núcleo de sentido das mudanças na vida pessoal e familiar, as mães relatam alterações em sua rede afetiva e social, marcadas por afastamento dos amigos e vizinhos, desvinculação com a escola e o trabalho, e o mais importante mudanças nos vínculos familiares, muitas destas mães tiveram de enfrentar a situação do diagnóstico e do tratamento sozinhas, ou pelo distanciamento dos membros familiares, ou pela falta de apoio e/ou abandono do companheiro. Na literatura, é evidenciado que a intensificação dos conflitos relacionais é um fator de estresse para mãe, pois muitos maridos e filhos cobram a sua ausência, em algumas situações expressando ciúmes da criança8,12.
A sensação de abandono é bastante recorrente, tanto no aspecto de que as mães sentem-se sozinhas, desamparadas, quanto no sentido em que se mescla a culpa de terem de deixar suas casas, cônjuges e outros filhos13. O período de tratamento da criança envolve outros sentimentos ligados ao seu papel social e familiar, como: culpa e angústia, já que muitas destas mães tiveram de abdicar do convívio com os outros filhos, alguns deles recém-nascidos, para se dedicarem integralmente aos cuidados do filho com câncer.
Cabe ressaltar que a condição oncológica do filho abrange várias perspectivas da vida da mãe cuidadora e se define como sobrecarga, pois requer que ela coloque, a si mesma, em segundo plano e assuma um papel complementar àqueles já executados14. Existem fatores que aumentam a sobrecarga de cuidados, como: ausência de informações sobre o diagnóstico da patologia e o tratamento, apoio inadequado dos profissionais de saúde e dos serviços de saúde e as estratégias de enfrentamento inadequadas15.
Assim, faz-se necessário o fortalecimento das redes afetivas e sociais da mãe e da criança com câncer, composta por amigos, familiares, instituições e serviços de saúde, como estratégia para assegurar as condições mínimas para a mãe obter o tratamento da criança, com suporte para minimização dos sentimentos traumáticos, diante do adoecimento do filho. A intensificação de relações afetivas familiares é fundamental e constitui uma estratégia de enfrentamento eficaz do câncer infantil, pois possibilita conforto, alívio para o sofrimento e é um indicativo para a superação de problemas, pois há uma percepção do valor e da capacidade para enfrentar e superar qualquer obstáculo na luta pela vida do filho16-17.
É evidenciado, na literatura, que a fé e a crença religiosa e espiritual constituem um elemento de fortalecimento interior, possibilitando conforto e apoio diante do enfrentamento do processo de adoecimento e morte9 do filho. No entanto, essas questões precisam assumir corpo na condução da prática clínica, cabendo ao enfermeiro o desafio de ressignificar as diversas expressões humanas que, aliadas ao tratamento convencional, possam favorecer a produção de cuidados promotores da saúde integral e holística. O contexto da assistência à criança com câncer, permeado pela imprevisibilidade e sofrimento silencioso, requer que os enfermeiros estejam sensíveis e abertos para atender às necessidades das mães, inclusive em sua dimensão emocional e espiritual, de modo a atribuir uma perspectiva positiva diante da assistência de enfermagem e a instauração de um ambiente acolhedor e de bem-estar.
Considerando o núcleo de sentido e as dificuldades vivenciadas pelas mães, durante o tratamento, é percebida nessa fase, entre as mães, uma série de dificuldades, tais como: abandono de emprego e, consequentemente, a perda de autonomia financeira. As mães priorizam as necessidades dos filhos com câncer, cabendo a elas, em algumas situações, a renúncia do emprego para dedicar-se aos cuidados requeridos pela criança com câncer. Essa alteração na prática familiar gera restrição do orçamento, podendo aumentar os níveis de estresse no relacionamento da família18. Ademais, as precárias condições e/ou ausência do transporte municipal, somada a carência de recursos financeiros para suprir os gastos com alimentação e moradia, intensificaram o desgaste emocional dessas mães.
A respeito do relacionamento com os profissionais de saúde do serviço hospitalar, as mães destacaram a importância do apoio do serviço e o desejo do fortalecimento de relações mais afetivas, durante o período de tratamento da criança. A perspectiva do cuidado nesse ambiente envolve, além da presença física da mãe ao lado da criança, a percepção das vulnerabilidades, a confiança na equipe de saúde atuante e sentir-se incorporada a essa equipe, sendo aceita e respeitada pelos profissionais5. Sabe-se que o processo de hospitalização é muito doloroso, tanto para a mãe como para o filho, pois está relacionado a lugares, pessoas e situações desconhecidas. Esse sofrimento é intensificado, quando se relaciona ao tratamento de um filho com diagnóstico de câncer, doença que envolve procedimentos diagnósticos e terapêuticos muitas vezes dolorosos e com efeitos colaterais que podem resultar em elevados níveis de estresse e exposição a sintomas de ansiedade3,19. Assim, faz-se necessário que o enfermeiro amplie as possibilidades de cuidar da criança com câncer, para além da implementação de protocolos de tratamento, percebendo a rede afetiva e social da criança e os desejos e expectativas da mãe cuidadora que contribuam na minimização da dor, do medo e da desesperança.
Como limitações: o estudo envolveu um grupo particular de mães acolhidas em uma casa de apoio. Devido ao pequeno tamanho da amostra, os resultados não podem ser generalizados à população. No entanto, o desenho qualitativo extraiu importantes significações que revelaram dificuldades não só na dimensão física, mas também social, emocional e mental. Sendo assim, é recomendável o desenvolvimento de outras pesquisas que enfoquem tais dimensões e suas relações com as diversidades culturais, educacionais e étnicas.
Conclusões
Este estudo revelou os diversos sentidos que permeiam a vivência da mãe, frente ao diagnóstico e ao tratamento do câncer de seu filho. A experiência das mães foi carregada de sentimentos de medo, impotência e incertezas que as fazem sentirem-se sozinhas diante da situação vivida, mas que se entrelaçam com a esperança pela cura e a certeza da importância de seu papel. Essa dualidade de sentimentos faz com que a mãe encontre a fortaleza e se esforce para seguir adiante, sem aceitar serem substituídas na sua função de cuidadora, superando as fragilidades advindas do tratamento e do processo de hospitalização.
O estudo destaca que a existência de uma rede de apoio social e afetiva e de profissionais capazes de dar suporte emocional funciona como importantes recursos na minimização dos sentimentos e expectativas negativos, bem como da sobrecarga e do cansaço imposto pelo tratamento. Todas as vezes que a mãe é acolhida e amparada, ela se sente mais encorajada para lidar com o processo de adoecimento do filho e preparada para elaborar estratégias de enfrentamento.
Quanto ao relacionamento com os profissionais de saúde, as mães desvelam sentidos divergentes, ora convivem com profissionais sensíveis, acolhedores que dialogam e as escutam, ora se deparam com a indiferença de outros, sentindo-se ignoradas e sozinhas, já que muitos deles são os únicos presentes na rede de apoio dessa mãe. Desse modo, o estudo revela que, no contexto do câncer infantil, as mães também requerem cuidados, diante do impacto físico e psicológico presente.
Por fim, reconhecer os sentimentos e expectativas das mães, tornando-as visíveis no contexto da assistência à criança com câncer, permite ressignificar seu papel de cuidadora a se comportarem como aliadas dos profissionais. Nesse contexto, os profissionais enfermeiros necessitam trabalhar a escuta ativa e estabelecer comunicações terapêuticas, no intuito de abrir espaço para a expressão das emoções humanas, de uma pessoa que para além de acompanhante é mãe, e que carrega todo um sentimento de proteção, amor, zelo, mas também de despreparo para enfrentar a situação do filho. Assim, o cuidado numa perspectiva holística e integral exige do enfermeiro fortalecimento do acolhimento, amorosidade, solidariedade e disponibilidade para a escuta qualificada à criança e à mãe, e a corresponsabilização oriunda de uma relação de vínculo entre criança, enfermeiro e mãe (família).
Declaração de conflito de interesses.
Os autores declaram que não têm conflito de interesse de natureza econômica, social, pessoal ou trabalhista.