Introdução
O envelhecer da população, com consequente aumento do número de pessoas idosas, é um processo crescente e contínuo, observado principalmente a partir de meados do século XX. Esta transição demográfica decorre do acentuado declínio na taxa de fecundidade e natalidade, além do avanço científico, que proporcionou melhoria na qualidade de vida das pessoas e aumento de anos de vida.1
O fenômeno de maior expectativa no tempo de vida transcorreu, inicialmente, em países desenvolvidos, porém em um ritmo menos acentuado. Por outro lado, nos países em desenvolvimento, o envelhecimento populacional aconteceu mais tardiamente. No entanto, isso se deu de forma mais acelerada.2 A Bélgica, por exemplo, precisou de aproximadamente 100 anos para que pudesse dobrar sua população idosa, enquanto no Brasil isso sucedeu em apenas 27 anos.1,2
O aumento da expectativa de vida traz consigo a necessidade de maior atenção e cuidado para com a população idosa, com o intuito de proporcionar maior independência e funcionalidade. Com isso, a expansão de políticas públicas voltadas para este público, que atendam às suas particularidades e contemplem o âmbito biopsicossocial, merecem destaque.3,4
Outrossim, a população idosa parece estar mais vulnerável a sofrer algum tipo de violência.5 A Organização Mundial de Saúde (OMS) conceitua este fenômeno como um ato consciente e intencional do uso da força física em ameaçar a integridade de si mesmo ou de terceiros, podendo causar sofrimento psíquico ou físico e déficit no desenvolvimento.6 Esta definição associa a realização do ato com a intencionalidade de cometê-lo, excluindo-se os incidentes não intencionais.7
Para melhor compreender a natureza dos atos violentos, a Organização Pan-Americana de Saúde propôs-se o modelo ecológico, considerando a natureza multifacetada da violência.7 Nesse interim, aponta quatro níveis: individual, pelo qual fatores biológicos como a história pessoal de um indivíduo, atuam no seu comportamento; relações sociais, que podem aumentar o risco de vitimização ou agressão a partir da interação entre os mesmos; comunitários, identificando características dos cenários que circundam as vítimas e/ou agressores; e social, que examina os fatores mais significativos da sociedade que influenciam nas taxas de violência.7,8
A natureza dos atos violentos pode se manifestar de diferentes formas: física; sexual; psicológica; financeira; e relacionada à privação ou ao abandono.7,9Para além do tipo da agressão, as consequências recaem sobre a saúde física e/ou psíquica das vítimas, exigindo a elaboração de mecanismos que permitam combatê-la.9
Pessoas idosas são vítimas de diversos tipos de violência, que vão desde ofensas e agressões físicas executadas principalmente por familiares e cuidadores, até maus-tratos em instituições de longa permanência.5 Fatores como vulnerabilidade, imobilidade e dependência financeira aumentam a sua ocorrência nessa faixa etária.1
A violência voltada aos gerontes acarreta imenso prejuízo à saúde desses indivíduos, desencadeando adoecimento físico, doenças psicossomáticas, diminuição gradual da força física, alterações no sono e no apetite, desidratação, desnutrição, depressão, desordem pós-traumática, agitação, fadiga, perda de identidade e tentativas de suicídio.10 Além disso, resulta em sofrimento mental, lesão, dor, perda ou violação dos direitos humanos e estresse, podendo afetar de forma irreversível a integridade física e mental da vítima, potencializando o declínio cognitivo.1, 11
A triagem dos casos suspeitos pode gerar informações precisas sobre essa questão de alta relevância social no mundo inteiro.12 Apesar das profusas políticas públicas propostas, ainda são escassas as ações para resolutividade de casos que englobam a violência contra pessoas idosas.6 Urge, então, a necessidade de conhecer os fatores associados, estabelecendo ações efetivas e fundamentadas em evidências.1
Na população idosa, há grupos considerados mais vulneráveis que outros. Observa-se que os casos de abusos incidem principalmente sobre as mulheres e pessoas com baixa renda.13,14A chance de idosas sofrerem algum tipo de violência no âmbito familiar supera a dos homens, sendo o gênero um fator de risco importante em várias partes do mundo.12
Tendo em vista que a proposta ecológica enfatiza as múltiplas causas da violência e a interação de fatores que operam no interior das famílias e contextos da comunidade,7 pode-se inferir que ser mulher e idosa atua como um fator de risco importante para sofrer violência. A sua condição de maior vulnerabilidade é explicada através dos estereótipos pré-estabelecidos pela sociedade, que as colocam em lugar de submissão, opressão e fragilidade, o que é potencializado com a chegada da velhice.15
Paradoxalmente, evidencia-se que muitas idosas não se reconhecem enquanto vítimas de violência, o que favorece o isolamento do convívio social e a não realização de denúncias.13
Ademais, ressalta-se a importância de entender mais sobre o tema sob a ótica das mulheres, elucidando questões relacionadas à violência e ao gênero. Com o intuito de compreender o olhar destas a respeito da temática, que pode lhes afetar diretamente, torna-se possível desvelar as construções simbólicas frente à questão. Logo, o estudo objetivou analisar a compreensão da violência contra pessoas idosas segundo mulheres gerontes.
Metodologia
Trata-se de um estudo descritivo, exploratório e de abordagem qualitativa, realizado com 22 idosas usuárias de uma unidade de saúde em uma comunidade no estado da Paraíba, Brasil, escolhidas por conveniência ao buscarem o serviço para atendimento durante o período de coleta de dados. Utilizou-se os seguintes critérios de inclusão: ser usuária cadastrada no serviço de saúde no qual ocorreu a seleção da amostra; ter idade mínima de 60 anos; ser do sexo feminino. Não houve restrições quanto a idade máxima para participação. Excluíram-se as idosas com declínio cognitivo e/ou dificuldade de comunicação. Todas as participantes foram contactadas no próprio serviço de saúde, sendo apresentadas à entrevistadora através da equipe, visto que a mesma encontrava-se desenvolvendo estágio na localidade e, portanto, familiarizada com a comunidade. Não houve recusas para participação.
A partir do aceite, agendava-se previamente o encontro, ocorrendo no domicílio da entrevistada, contando apenas com a presença da pesquisadora e da participante do estudo, sendo realizada de maneira individual. Realizou-se estudo piloto do roteiro de entrevista com três mulheres idosas para calibração do instrumento.
A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista semiestruturada, gravada em aparelho de áudio, com posterior transcrição. O instrumento utilizado continha perguntas fechadas, as quais buscavam informações sobre o perfil das participantes, bem como as seguintes questões norteadoras: “O que a senhora sabe sobre violência contra pessoas idosas?”; Quais fatores contribuem para gerar a violência contra o idoso?; O que deve ser feito para evitar a violência contra idosos?; e como os profissionais podem atuar para evitar ou diminuir a violência contra idosos?
A duração média foi de 30 minutos por entrevista, sendo a coleta encerrada quando da saturação das informações, momento este no qual não se obtém mais novos elementos sobre o fenômeno em estudo.16 A devolutiva às participantes ocorreu mediante diálogo após a finalização da coleta para validação dos dados, havendo concordância entre ambas as partes.
A coleta dos dados somente foi iniciada após aprovação pelo Comitê de Ética da Universidade Federal da Paraíba (CAAE 30672120.5.0000.5188; Parecer 4.003.212) e as participantes foram codificadas de forma aleatória (P1 a P22) para a garantia do anonimato.
Cada entrevista caracterizou um texto, sendo que o conjunto destes constituiu o corpus de análise da pesquisa, construído em um arquivo único de texto, processado no software Iramuteq - Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (Versão 0.7 alpha 2). O programa permite a realização de análises estatísticas sobre corpus textuais e tabelas de indivíduos/palavras. Realiza diferentes tipos de análise, dentre elas a classificação hierárquica descendente (CHD), escolhida neste estudo.17
Através da CHD, os segmentos de texto são classificados em função dos seus respectivos vocabulários, sendo o conjunto deles repartido em função da frequência das formas reduzidas. A partir de matrizes, cruzando segmentos de textos e palavras, obtém-se uma classificação estável e definitiva. Demonstra, assim, as classes dos segmentos de textos que possuem semelhanças entre si, mas que também se diferenciam de outras em que aparecem segmentos de textos de diferentes classes, organizando os dados em um dendrograma, que denota as relações entres as classes geradas.17
O relatório criado pelo programa classificou como relevante 82,72% do material. Para garantir a estabilidade dos resultados, é aceitável classificação acima de 75%, que assegura bom aproveitamento dos dados.18 A partir disso, cinco classes foram organizadas pelo Iramuteq, representando o corpus lexical mais prevalente nas entrevistas.
Prosseguiu-se com a Análise de Conteúdo,19 composta por três fases fundamentais: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, a qual possibilitou a inferência e interpretação dos mesmos.
Resultados
A faixa etária das participantes variou entre sessenta e oitenta anos, com média de setenta anos. No que tange ao grau de escolaridade, pouco mais da metade delas (54,5%) havia concluído o ensino médio/superior. A mesma quantia de mulheres (54,5%) morava com alguém, seja cônjuge ou familiar. 63,6% se autodeclararam pardas/pretas e 95,4% possuíam filhos(as). Cabe destacar que, quando questionadas, nenhuma delas referiu já ter sofrido algum tipo de violência.
A análise dos dados foi constituída por 22 entrevistas ou unidades de contexto iniciais (UCI). Foram verificadas 5759 ocorrências de palavras, sendo 993 formas distintas. O corpus foi dividido em 162 segmentos de texto e, destes, 134 (82,72% do total de palavras) foram equiparados por meio de classificações hierárquicas descendentes, que deram origem ao dendrograma (Figura 1). As palavras com maior destaque em cada classe estão detalhadas no neste. Ressalta-se que o Iramuteq apresenta os trechos de maior relevância para cada classe.
As classes provenientes da organização dos dados por meio do software foram analisadas em seu conteúdo pelos autores seguindo o modelo ecológico da violência. Dessa maneira, percebeu-se no material que emergiram três diferentes núcleos de sentido acerca do tema: o primeiro relacionado a fatores individuais, expressos na Classe 2; o segundo expondo fatores comunitários, revelados na Classe 1, e terceiro abordando fatores sociais, os quais podem ser observados nas Classes 5, 4 e 3.
A classe 2 foi a menor, representando 16,5% do total de segmentos de texto. Denominada Ciclo de violência, expõe claramente os fatores individuais ligados à própria idade que contribuem para a violência neste grupo etário: predomina a ideia de que com a chegada da velhice, algumas pessoas podem estar mais suscetíveis a sofrer diversos tipos de violência, que geralmente aumentam de gravidade à medida em que ocorrem. Com isso, pessoas idosas ficam impedidas de vivenciarem este período de vida de maneira tênue. Estes achados podem ser vistos nos recortes adiante:
“Depois de envelhecer, algumas vezes já me ameaçaram psicologicamente, como me proibir de fazer algumas coisas” (P1).
“Já tentaram se aproveitar de mim para ir atrás do meu dinheiro, mas sou esperta. Porque começa assim, depois piora. Primeiro é o dinheiro e depois vai ficando pior, pelo que eu já vi com pessoas conhecidas” (P5).
“Os fatores que contribuem para gerar violência contra o idoso são a sua situação de fragilidade. Aí acabam se aproveitando porque o idoso não consegue se defender” (P4).
A primeira classe, Rede de apoio ao idoso vítima de violência, abrangeu 17,3% do conteúdo das falas das entrevistadas. São enfatizados os fatores comunitários contributivos para apoiar idosos violentados, negligenciados ou abusados, que acabam necessitando de maior cuidado e suporte ao terem estas situações identificadas. Além disso, descreve maneiras de prevenir a violência, haja vista que este fenômeno pode ser evitado, exaltando o papel de profissionais das unidades de saúde, conforme pode ser verificado nos trechos seguintes:
“Os profissionais de saúde da unidade têm um papel fundamental na transmissão do conhecimento, favorecendo a prevenção da violência contra o idoso” (P4).
“As unidades de saúde, os profissionais, podem e devem atuar para diminuir a violência contra os idosos através da presença nos grupos, coletando informações na consulta para saber se o idoso está precisando de algo ou se está enfrentando alguma dificuldade em casa” (P10).
“Seria necessário que esse assunto fosse mais discutido na televisão. Mostrar como faz mal para os idosos serem vítimas de violência” (P14).
No que tange aos fatores sociais da violência contra pessoas idosas, o material subdividiu-se em três classes (5,4 e 3). A classe 5 foi composta por 17,3% do total de UCE. Através dela, percebe-se a predominância de discursos pelos quais idosas declararam que situações de violência no público senescente ocasionam sofrimento para a vítima e para quem está no seu entorno, demonstrando a necessidade de ações da justiça, como expõem os relatos em seguida. Denominou-se, então, Vivência de situações violentas.
“Quando penso em um idoso sofrendo violência me dá uma tristeza... passam por muita solidão! Ter que ficar calado, não reclamarem para evitar levar mais reclamações e agressões...” (P1).
“A violência contra idosos traz muito sofrimento! Representa muito sofrimento e tristeza pra quem passa e pra quem se importa com a pessoa” (P15).
“A justiça deveria ser mais dura com as pessoas que fazem isso. Deveriam ficar presas por muitos anos! Se fossem punidas mais duramente, essa violência diminuiria” (P16).
A classe 4, Violência Financeira, constituiu-se como a maior de todas (27,5% de UCE), tendo como principais conteúdos a conduta de apropriação ilícita do patrimônio e/ou utilização indevida de bens e valores financeiros por outrem. Observa-se que os discursos contidos nessa classe indicam que a pessoa idosa que sofre violência patrimonial geralmente é vítima de pessoas próximas, como os filhos.
“Eles querem o dinheiro dos idosos e estes não dão. Eles vão e maltratam... Isso é o que eu vejo por aí. Querem tomar o que os idosos têm, brigando até por herança” (P18).
“Eu conheço uma senhora bem idosa que tem uma aposentadoria muito alta e o filho mais novo ainda mora com ela. Quando ela não quer dar a quantidade de dinheiro que ele pede, ele se estressa muito e já chegou a bater nela” (P13).
“Há idosos que não tem direito nem de saber o dia que recebe a aposentadoria. O cartão é administrado por filhos, netos... isso deveria ser fiscalizado e punido para não acontecer” (P10).
Por fim, a classe 3, composta por 22,9% do total de UCE, exprime compreensões acerca do fenômeno em questão como emblemáticas, demonstrando a simbologia que carrega socialmente. A expressão da violência dirigida ao idoso vem a corroborar com ideias de que esta fase da vida pode ser bastante cruel, revelando preconceito e desprezo familiar para com gerontes. Foi, então, intitulada de Simbologia da violência na sociedade.
“A violência contra o idoso representa desprezo. É muito triste! Para mim, é a mesma coisa que praticar violência contra uma criança indefesa” (P9).
“É um ato de covardia. Nenhuma pessoa idosa merece passar por isso, pois é uma das piores maldades que existe no mundo. As pessoas idosas trabalharam a vida toda, criam os filhos e depois acontece isso...” (P13).
“É falta de temor à Deus, já que muitos acham que isso é besteira e não obedecem. Além de ter muita ruindade no coração, índole má, se aproveitam da fraqueza por ser uma pessoa idosa e agem com violência” (P21).
Discussão
De modo geral, a partir da análise dos dados obtidos, compreende-se que a violência perpetrada contra pessoas idosas assume, para as entrevistadas, simbologias partilhadas que são relacionadas a fatores individuais, sociais e comunitários. Tais significados incluem a vivência de situações que potencializam a vulnerabilidade, demonstrando o quanto o envelhecer pode ser uma ameaça.
As participantes, ao considerarem que os abusos ocorrem principalmente no domicílio, avaliam que geralmente estas ocorrências logram de forma sutil, até que adquirem formatos mais densos. Embora o foco desse estudo não tenha sido a violência contra a mulher idosa, é importante destacar que agressões por meio de uso de força corporal ou espancamento ocorrem mais em mulheres do que em homens 8,20. Esse fato, por sua vez, coloca em pauta a fragilidade que se pode estar exposta ao envelhecer, observando a senescência como um momento em que eclodem debilidades, sendo a violência fortemente influenciada por fatores individuais, como a idade e o gênero. De tal modo, relataram casos não somente relacio¬nados a elas mesmas, mas também de pessoas do seu convívio social.
Mesmo assim, as narrativas expressas na Classe 2 revelaram um olhar restrito acerca do tema, na maior parte dos casos, associado à violência física e psicológica. Vale destacar que se trata de um grave problema de saúde pública, que ocorre independentemente da cultura, crença, religião, etnia ou status socioeconômico e assume formatos múltiplos, não somente estes.
Nesse aspecto, o gênero pode ter influência significativa. Historicamente, as mulheres têm sido vítimas mais frequentemente de situações violentas. Sendo estes dois tipos de violência (física e psicológica) muito mais presentes em casos ocorridos em mulheres8, é de se esperar que façam ligação entre os saberes partilhados socialmente àqueles estereotipados, revelado pelos índices que tratam sobre tal acontecimento na construção das suas significações.
Estudos realizados recentemente no Brasil comprovaram que a incidência da violência contra idosos no Brasil corresponde a cerca de 10%11. Destes, 60% ocorrem nas residências e têm a mulher como vítima21. Para a população idosa, assim como para os outros grupos etários, seus lares deveriam ser lugar de conforto, descanso, segurança e cuidados. Paradoxalmente, alguns se tornam espaço de sofrimento, dor e impotência.
No que tange ao assunto, a violência implica na concepção de superioridade, exibida através de atos que comprometem a integridade da vítima, estabelecendo uma relação de submissão entre esta e o abusador/agressor10,13. Adicionalmente, os estigmas sociais referentes ao envelhecimento acabam por respingar no seio familiar, potencializando que a terceira idade seja vista com desvalorização e inutilidade. Estes aspectos, somados a interações conflituosas e tensas na família, contribuem para ações violentas impetradas por parentes e/ou por aqueles que compartilham a mesma casa10,22.
Complementando estas ideias, os achados dispostos na Classe 1 evidenciam a importância dos cuidados direcionados aos idosos na identificação precoce de casos pelos profissionais de saúde, formando redes de apoio para assegurar assistência, acolhimento e sigilo. Destaca-se a necessidade de informar à população sobre este assunto e o importante papel de oferecer suporte aos mais velhos, sendo a rede de apoio ao idoso vítima de violência um contributo ímpar para auxiliar na interrupção das situações ocorridas. Desse modo, os fatores comunitários atuam positivamente quando auxiliam casos suspeitos, ou negativamente quando não atuam para acabar com casos de violência na comunidade.
Através dos relatos, percebe-se que é fundamental lançar um olhar diferenciado sobre a questão, abrindo espaço para que vítimas em potencial sejam ouvidas e ajudadas, interrompendo ciclos de agressão e violência. Além disso, a rede de apoio pode contribuir para restaurar a vivência de uma velhice bem-sucedida.
Os profissionais de saúde, por sua vez, devem reconhecer este fenômeno como de atribuição do campo da saúde, abandonando definitivamente a posição de expectadores do mesmo11. Os enfermeiros ocupam uma posição de destaque pelo processo de trabalho inerente à sua prática, com grande possibilidade de identificação e investigação de casos em idosos comunitários. Deste modo, são peças importantes no reconhecimento de casos de violência e notificação requerida.
Todos os profissionais de saúde necessitam atentar-se para o menor sinal que seja de qualquer violência contra a pessoa idosa. É imprescindível que utilizem dos subsídios necessários para oferecer atendimento e assistência adequada, com acompanhamento integral, ainda que o idoso não relate situações violentas ocorridas15,23. Necessitam, ainda, alertar a comunidade para o reconhecimento de abusos, como também sobre a omissão de informações, que pode afetar diretamente a vida e saúde11,23.
Vale também destacar que a violência se constitui como uma violação de direitos. Não é apenas centrada nas relações interpessoais e, mais especificamente, da esfera doméstica13. Esta concepção pode facilitar o diálogo de profissionais acerca do tema em grupos operativos, visitas domiciliares e atendimentos regulares, colocando em pauta situações ocorridas e realizando educação cidadã e em saúde à população.
Adicionalmente, percebe-se a confiança depositada nos profissionais de saúde por parte das idosas, inclusive, para dirimir a violência dirigida ao geronte. Nota-se, portanto, que aqui também a questão de gênero impera, já que ao longo da vida a mulher costuma ser mais adepta dos cuidados prescritos ou orientados por estes profissionais, valorizando a atuação da equipe24.
Por conseguinte, deve-se investir na capacitação profissional, reforçando o estudo das questões inerentes ao envelhecimento, de modo a possibilitar a identificação das especificidades da violência neste grupo etário13. Além disso, é indispensável a programação de ações e intervenções em saúde com um olhar sensível, integral e humanizado, tornando possível modificações na realidade das possíveis vítimas23.
Em consonância com estas informações, a Classe 5 apontou a situação em que se coloca o idoso quando este é vítima de tais circunstâncias. Além das vulnerabilidades e fragilidades a que ficam expostos e que, de certa maneira, potencializam os danos, necessitam lidar com os sentimentos e anseios que envolvem todo o contexto. Achados semelhantes também foram relatados em outro estudo13.
Embora o processo de senescência naturalmente torne a pessoa idosa mais dependente para a realização de suas Atividades de Vida Diária (AVD) com o decorrer da idade, em alguns casos, requere auxílio na realização destas, principalmente àqueles que possuem algum déficit cognitivo ou limitações. Tal comprometimento, além de diminuir o poder de defesa contra agressores, torna-se um fator negativo para as famílias ou responsáveis justamente por ocasionar maior dedicação e cuidado1,6, embora isso não justifique a adoção de medidas violentas.
Outrossim, quanto menor for o grau de autonomia, maior será o estado de vulnerabilidade perante agressões. As vítimas tendem a minimizar situações impetradas por parentes, mostrando lealdade ao agressor e não compartilhando vivências de abuso. Além disso, se veem sozinhos e desamparados, pois aqueles que deveriam ser próximos são mais comumente os provocadores25.
No que tange aos fatores sociais, enfatizaram a necessidade de ações dos poderes públicos, especialmente o judiciário que, ao aplicar penas mais duras podem contribuir com a minimização de casos. Sinalizaram igualmente sobre a obrigação dos legisladores em cumprir o dever de proteger direitos dos gerontes, gerindo políticas efetivas para tal. De acordo com o Estatuto do Idoso26, instituído no Brasil a partir da Lei nº 10.741/2003 para ampliar a resposta do Estado e da sociedade no que se refere aos direitos da população idosa brasileira, a Justiça deve dar prioridade ao andamento das ações em que seja parte a pessoa com mais de 60 anos.
No caso de situações violentas, é imprescindível desenvolver um sistema de denúncia, conscientizando a população idosa de que ela pode contar com serviços de apoio e acompanhamento. Além disso, ao receber denúncias, os órgãos competentes carecem encaminhá-las e articular ações para proteção e defesa, contribuindo com a prevenção e enfrentamento da violência13.
No decurso da Classe 4, as participantes evidenciaram a violência financeira como a mais prevalente em idosos. Ligaram-na diretamente a abusos praticados por familiares próximos que, muitas vezes, tentam se apoderar de benefícios patrimoniais sobre os quais a vítima tem direito.
A violência financeira consiste no uso indevido de bens financeiros ou patrimoniais da pessoa idosa, podendo ser efetuada por familiares, não familiares e instituições públicas e/ou privadas. O ambiente domiciliar é o local onde o idoso mais sofre com esse tipo de violência. No mundo, estima-se que cerca de 14,4% da violência dirigida à pessoa idosa é patrimonial27.
A apropriação do cartão de crédito, de seus bens sem o consentimento devido; desvio de dinheiro referente à pensão e aposentadoria são as formas mais prevalentes de violência financeira27,28. Alguns estudos revelam que quando variáveis como gênero não são consideradas, este tipo de violência pode ser o mais prevalente, respondendo por mais de 60% do total de casos notificados. Vale destacar, ainda, que episódios de denúncias ocorrem em idosos mais jovens, com idades entre 60 e 69 anos29.
Analisando estas informações, depreende-se que idosos jovens geralmente apresentam melhores condições de saúde e menor grau de dependência, estando mais expostos a tipos de abusos divergentes daqueles mais fragilizados. Isso condiz com a média de idade das participantes, que foi de 70 anos, apoiando suas falas nas vivências pessoais e de pessoas próximas.
No entanto, ainda há elevado índice de subnotificação de todos os tipos de violência, com destaque para a financeira27. Com a grande desigualdade social que é vista no Brasil, muitas situações podem passar desapercebidas.
A subnotificação de casos de violência contra a pessoa idosa é um fator decorrente da violência intrafamiliar, tendo os filhos como principais agressores, que acaba impossibilitando estatísticas reais30. Além disso, as circunstâncias tendem a se repetir, principalmente quando esta é a principal fonte de renda familiar31.
Estudos internacionais também reafirmam como a violência econômica sofrida se sobressai perante os demais tipos. Em Portugal, 47,5% das pessoas idosas sofreram abuso financeiro 28. No Peru, esse número foi ainda maior (53,7%)32. Dessa forma, deve-se considerar que esta violação fere não somente a autonomia, mas também a integridade emocional da vítima, que perde o direito de estar à frente de suas finanças. Também há relação da exploração financeira com diminuição das funções cognitivas e sociais ocasionadas pelo sofrimento psíquico desta ocorrência33, demonstrando a importância de ser combatida.
Para tanto, não se deve permitir que casos notificados fiquem sem o devido encaminhamento. É imperioso propiciar a interação entre setores que atuam na saúde, assistência social e segurança, bem como fortalecer ações na defesa e proteção de idosos vítimas de violência. Profissionais atuantes na atenção básica, especialmente enfermeiros, devem realizar educação em saúde a fim de contribuir para a visibilidade desta violência, que compromete emocional e materialmente quem a sofre.
Já as ideias expressas na Classe 3 denotam que, embora cultural e socialmente tenha-se noção de respeito aos mais velhos, são muitas as ocorrências que infringem este código ético e moral. É inegável que o ciclo perpetrado começa na própria ideação de velhice. Muitos ainda acreditam ser esta etapa cheia de limitações, impossibilidades e dependência. Isso acaba fortalecendo a imagem de idosos insignificantes e sem perspectivas, fator que culmina com a sua subjugação.
Simbolicamente, a violência foi delimitada como inaceitável pelas participantes, exprimindo a omissão com que se trata quem a sofre, sendo que a família contribui sobremaneira para tal. O fato de serem tratados com desigualdade é exacerbado pelos conflitos intergeracionais, o que permite inferir que a sociedade exclui os mais velhos, não os considerando como seres que contribuem com o grupo e, ainda, que podem dificultar a vida dos mais jovens8. Sendo crescente tanto quanto a transição demográfica, o abuso do idoso é um fator vertiginoso, originado na sociedade e que coloca em risco a ética das práticas sociais34.
As participantes reconheceram que a violência é fruto de múltiplos fatores que, à sua maneira, influenciam o comportamento humano, principalmente entre as relações interpessoais do geronte com a sua família e/ou cuidadores. Desse modo, contemplaram aspectos abarcados pela Organização Pan-Americana de Saúde no modelo ecológico da violência, que se baseia em questões individuais e situa-cionais conectadas ao contexto no qual o indivíduo está inserido, que podem influenciar no comporta-mento violento8, demarcando os significados do fenômeno para elas.
Como limitações do estudo, percebeu-se a dificuldade de as idosas retratarem violências dirigidas a elas mesmas. Desse modo, não foi possível elucidar como lidam pessoalmente com situações de violência, quando for este o caso, e nem sobre o apoio recebido pelos órgãos competentes e/ou profissionais da área da saúde.
Conclusões
Os resultados revelaram que as participantes compreendem a violência contra pessoas idosas e os fatores a esta relacionados como algo inerente à terceira idade, ocasionada pela dependência a partir da capacidade funcional diminuída, tornando os mais velhos vulneráveis, como perpassado cultural e socialmente. Ressaltaram a violência financeira como grande protagonista das ocorrências.
Fatores individuais, sociais e comunitários que contribuem para a manutenção do ciclo de violência emergiram nos discursos, incluindo alguns familiares como os principais agressores. Sendo o domicílio o principal lócus da ação violenta, referiram dificuldades para adoção de medidas que o interrompam. Cabe destacar que os fatores relacionais foram observados como intimamente ligados aos sociais, não estando explanados separadamente nos discursos.
Assim, a violência foi expressa como uma questão social, envolta por fatores econômicos e familiares, além de problemas culturais no que tange ao desrespeito pela pessoa idosa. Nesse contexto, acreditavam que o poder público, especialmente o judiciário, deve atuar punindo mais severamente os agressores. Também houve ênfase na necessidade de modificação do quadro atual, que consideraram inadmissível, através de ações educativas e multisetoriais para o enfrentamento e prevenção da violência.
As questões de gênero, especialmente no que concerne ao olhar lançado sobre a violência física e psicológica, bastante comum em casos dirigidos a mulheres idosas, foram imperiosas. Além disso, denotaram a relevância das equipes de saúde na identificação de ocorrências e prevenção de possíveis danos, fato que se associa a maior aproximação delas com os serviços de saúde.
Por fim, apesar da implementação das ações para proteção do sênior já estarem ocorrendo na prática há anos, com apoio e respaldo de grande parte da sociedade, mudanças importantes devem ser implementadas vislumbrando o cumprimento dos direitos garantidos por lei a este grupo etário. Nesse sentido, a capacitação e atuação profissional, bem como utilização da mídia para educar a população no que tange ao tema devem ser incentivadas, auxiliando na identificação e resolução de situações violentas.
CONFLITO DE INTERESSE
As autoras declaram a inexistência de conflitos de interesse.