Introdução
O processo de doação de órgãos e tecidos é definido por ações a fim de transformar um Potencial Doador (PD) em doador efetivo, com o objetivo de proporcionar melhor qualidade de vida aos portadores de doenças crônicas ou incapacitantes, sendo inclusive, considerado um ato de solidariedade e amor ao próximo.1
Este processo inicia-se com o diagnóstico de Morte Encefálica (ME), o qual é obrigatório para que seja efetivado. Os procedimentos para identificar a ME são iniciados nos pacientes que apresentem: coma não perceptivo, ausência de reatividade supraespinhal e apneia persistente, além disso, precisam atender a alguns pré-requisitos: apresentar lesão encefálica de causa conhecida, sem reversão e capaz de causar ME; ausência de fatores que possam ser tratados e que possam confundir o diagnóstico de ME; estar em tratamento hospitalar pelo período mínimo seis horas, entre outros requisitos.2
Na suspeita desse diagnóstico, é iniciado o protocolo, onde ocorre a realização de dois exames clínicos e um complementar para que, desta forma, o diagnóstico supracitado seja consumado. Confirmada a ME, dar-se-á início às estratégias terapêuticas de manutenção dos órgãos, pleiteando uma possível realização de transplante.3 Essas se baseiam no controle de parâmetros respiratórios e cardiovasculares além do uso da terapia medicamentosa, buscando favorecer a manutenção funcional dos órgãos entre o período do diagnóstico e da captação destes órgãos.4
O Brasil se destaca mundialmente na regulamentação e coordenação de transplantes, além disso é o segundo país que mais realiza transplantes renais.1,2,3O país com maior número de doação é a Espanha, o que deve ao fato de a pessoa falecida ser presumidamente doadora de órgãos, a menos que tenha manifestado opinião contrária em vida.5 No Brasil, de acordo com sua legislação vigente, não há nenhum tipo de manifestação por parte da pessoa em vida, a qual seja válida. Assim, é necessário o consentimento familiar, na pessoa do cônjuge ou parente de maior idade, até segundo grau, obedecendo a linha sucessória.6 Isto posto, é imprescindível o acolhimento da família pela equipe de saúde, a fim de informá-la desde a suspeita da ME, alertando-a para a grave situação do quadro clínico, além de atualizá-la acerca dos resultados dos exames que confirmam a morte encefálica. 1,7
No ano de 2020, houveram 7.725 notificações de PD's em território nacional. No que concerne ao número de doações efetivas, o país ainda enfrenta desafios, ocupando a 25º posição, com 2.438 doadores efetivos, onde o principal entrave no processo de doação é a recusa familiar totalizando 1.619 (37%) notificações. 8
Independentemente do desfecho do caso, as etapas precisam ser seguidas rigorosamente, mesmo em situações onde os órgãos não são elegíveis para doação, ou quando ocorre a recusa familiar. O processo encerra-se com a entrega do corpo à família, ocorrendo ou não a retirada dos órgãos. Muitos fatores podem interferir na doação, como a instabilidade clínica do potencial doador, causa do óbito, tempo de protocolo, contraindicação clínica e principalmente a entrevista familiar. Os profissionais de saúde precisam entender o processo de doação de órgãos e conhecer os fatores que influenciam na sua realização, para que assim possam criar estratégias que minimizem as perdas de órgãos ofertados.1,3,7
O presente estudo tem como objetivo caracterizar o processo de doação de órgãos e fatores influenciadores deste processo.
Metodologia
O estudo segue os preceitos metodológicos da pesquisa transversal, retrospectiva, correlacional e analítica, na qual se observa a frequência e distribuição de um evento e de seus fatores. 9
O local de estudo foi uma macrorregião de transplantes, a qual engloba o atendimento a cerca de 30 munícipios e fica sediada no Interior do Nordeste brasileiro. Esta Macrorregião iniciou seu funcionamento em 2012, sendo composta por uma equipe multiprofissional a qual atua desde a identificação de um potencial doador até o consentimento familiar para a doação.
Foram coletados dados de prontuários de pacientes com diagnóstico de Morte Encefálica (ME) entre os anos de 2012 e 2017, sendo incluídos todos os prontuários de pacientes que foram diagnosticados com ME, exceto aqueles com informações incompletas que inviabilizaram a coleta dos dados, sendo então, totalizados 455 prontuários.
A coleta ocorreu no período de outubro de 2017 e janeiro de 2018 e foram utilizados como instrumentos de coleta de dados um formulário estruturado, elaborado pelos autores para essa pesquisa que continha questões objetivas, baseadas nos dados dos seguintes documentos: Notificação de abertura de protocolo para diagnóstico de morte encefálica, termo de declaração de morte encefálica e roteiro de acolhimento e entrevista familiar.
Foram estudadas as variáveis independentes: sexo, faixa etária, causas da morte encefálica, se houve entrevista familiar, motivo da não realização da entrevista e doações efetivadas. Como variável dependente considerou-se o resultado da entrevista familiar, à saber: positiva para doação de órgãos ou negativa para doação de órgãos.
Os dados foram transcritos para o programa Excel for Windows/2013 e, em seguida, para o software Data Analysis and Statistical (STATA) versão 12.0. a fim de realizar as análises descritivas e inferência estatística, com confecção de tabelas de frequência (absolutas e relativas), medidas de posição para os dados do instrumento de caracterização social e clínica.
Para as associações entre as variáveis independentes e dependentes, utilizou-se o teste qui-quadrado de Pearson, uma vez que todas são categóricas e apresentaram distribuição normal. A normalidade das variáveis foi testada utilizando Shapiro-Wilks. O intervalo de confiança foi estabelecido em 95% e o valor de p<0,05 como significativo.
Destacando-se a importância ética do estudo, a fim de contemplar as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos propostas pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde10,o presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado da Bahia sob parecer nº 1.984.075, CAAE n. 65496017.3.0000.0057.
Resultados
No período de 2012 a 2017 foram notificados 487 pacientes com diagnóstico de morte encefálica e destes, 455 (93,4%) prontuários foram elegíveis a participar da pesquisa. Os outros prontuários apresentaram registros incompletos o que os impossibilitou de serem analisados. Dos 455 prontuários, a maioria era do sexo masculino, as faixas etárias de 21 a 40 anos e 41 a 60 anos foram as mais prevalentes. No que se refere a causa do óbito, o Trauma cranioencefálico (TCE) destacou-se com seguido do Acidente vascular encefálico (AVE) (Tabela 1).
Nesta pesquisa, dos familiares de 455 pessoas com diagnóstico de em ME, 379 (83,3%) passaram pela entrevista familiar. Nos casos de não realização das entrevistas, ocorreram principalmente por falta de condições clínicas para a realização da cirurgia de retirada de órgãos (71%). Considerando as entrevistas familiares realizadas, 203 (53,5%) destas foram positivas e 196 (96,5%) destas foram efetivadas (Tabela 2).
Tabela 1: Perfil dos potenciais doadores de órgãos. Brasil, 2019 (n=455)
N | % | IC95% | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Sexo | ||||||
Masculino | 292 | 64,1 | 59,6% | 68,4% | ||
Feminino | 163 | 35,9 | 31,5% | 40,4% | ||
Faixa etária | ||||||
Até 20 anos | 87 | 19,2 | 15,7% | 23,1% | ||
21 - 40 anos | 154 | 33,8 | 29,6% | 38,3% | ||
41 - 60 anos | 154 | 33,8 | 29,6% | 38,3% | ||
A partir de 61 anos | 60 | 13,2 | 10,3% | 16,6% | ||
Causa da ME | ||||||
TCE | 166 | 36,5 | 32,1% | 41,1% | ||
AVE | 124 | 27,3 | 23,3% | 31,5% | ||
Tumor SNC | 7 | 1,5 | 0,7% | 3,1% | ||
Perfuração por arma de fogo | 10 | 2,2 | 1,1% | 4,0% | ||
Hemorragia Subaracnóidea | 82 | 18 | 14,7% | 21,8% | ||
Outras causas | 66 | 14,5 | 11,5% | 18,0% |
Fonte: Dados da pesquisa
A figura 1 apresenta a evolução da efetividade da doação de órgãos ao passar dos anos, no período de estudo. Em 2013 foram concluídos 61 protocolos e 18 (29,5%) doações efetivadas, com uma taxa de negativa familiar de 63,6%. Em 2017, foram 104 protocolos concluídos, com uma taxa de 54,8% (57) de efetivação e uma taxa de negativa familiar de 33,7%.
Em relação às entrevistas familiares realizadas, os PD do sexo masculino resultaram em 59,01% de entrevistas positivas para doação, em contrapartida, entrevistas familiares com PD do sexo feminino foram favoráveis em 43,70% dos casos. Ao avaliar tais entrevistas por sexo do PD, o sexo masculino foi maioria nas duas categorias, com 70,94% de entrevistas favoráveis à doação de órgãos e 56,82% nas entrevistas negativas (Tabela 3).
Tabela 2: Dados das entrevistas realizadas com familiares dos PD. Brasil 2019.
N | % | IC95% | ||
---|---|---|---|---|
Realização da entrevista familiar | ||||
Sim | 379 | 83,3 | 80,3% | 87,1% |
Não | 76 | 16,7 | 12,9% | 19,7% |
Total | 455 | 100 | ||
Motivo da não realização da entrevista | ||||
Sem condições clínicas | 54 | 71 | 57,6% | 79,2% |
Comorbidades | 7 | 9,2 | 4,6% | 19,3% |
Sorologia Positiva | 5 | 6,6 | 2,9% | 15,9% |
Neoplasias | 4 | 5,3 | 2,1% | 14,2% |
Disfunção múltiplos órgãos | 4 | 5,3 | 2,1% | 14,2% |
Infecção | 2 | 2,6 | 0,6% | 1,1% |
Total | 76 | 100 | ||
Resultado das entrevistas | ||||
Positiva | 203 | 53,5 | 48,5% | 58,5% |
Negativa | 176 | 46,4 | 41,5% | 51,5% |
Total | 379 | 100 | ||
Doações efetivadas | ||||
Sim | 196 | 96,5 | 92,9% | 98,3% |
Não | 7 | 3,45 | 16% | 7,1% |
Total | 203 | 100 |
Fonte: Dados da pesquisa
Quando comparado o sexo ao resultado da entrevista familiar, identificou-se que o número de entrevistas positivas confrontado a entrevistas negativas foi maior no sexo masculino, com diferença significativa entre os grupos (p=0,00). Em relação à faixa etária e o resultado da entrevista familiar, não foram encontradas diferenças significativas (p=0,08) (Tabela 3).
A Tabela 4 apresenta os resultados da entrevista familiar de acordo com a causa da ME. Do total de entrevistas realizadas, sua maioria tinha como causa de óbito o TCE, seguido do AVE. Dentre as categorias, são descritas como outras causas situações como hipóxia pós-PCR e outros tumores. Pacientes que faleceram de TCE tiveram em sua maioria a doação autorizada, por outro lado, na segunda maior causa de ME, o AVE, representou um índice menor de entrevistas positivas (Tabela 4).

Fonte: Dados da pesquisa
Figura 1: Evolução da efetivação de doação de órgãos 2013-2017, Brasil. 2019
Tabela 3: Relação entre sexo, faixa etária e entrevista familiar para doação de órgãos. Brasil. 2019
Entrevista positiva | Entrevista negativa | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | Total | p | ||
Sexo dos PD | |||||||
Masculino | 144 | 70,94 | 100 | 56,82 | 244 | 0,00 | |
Feminino | 59 | 29,06 | 76 | 43,18 | 135 | ||
Total | 203 | 100 | 176 | 100 | 379 | ||
Faixa etária dos PD | |||||||
Até 20 anos | 43 | 21,18 | 28 | 15,91 | 71 | 0,08 | |
De 21 a 40 anos | 80 | 39,41 | 59 | 33,52 | 139 | ||
De 41 a 60 anos | 67 | 33,0 | 67 | 38,07 | 134 | ||
Acima de 60 anos | 13 | 6,40 | 22 | 12,50 | 35 | ||
Total | 203 | 100 | 176 | 100 | 379 |
Fonte: Dados da pesquisa
Tabela 4: Associação entre Causa da Morte Encefálica (ME) e entrevista familiar para doação de órgãos
Entrevista Positiva | Entrevista Negativa | ||||
---|---|---|---|---|---|
Causa da ME | n | % | N | % | Total |
Traumatismo Craneoencefálico | 98* | 48,27 | 56 | 31,82 | 154 |
Acidente Vascular Encefálico | 34 | 16,75 | 68 | 38,64 | 102 |
Tumor Sistema Nervoso Central | 1 | 0,49 | 0 | 0 | 1 |
Projetil de Arma de Fogo | 5 | 2,46 | 2 | 1,14 | 7 |
Hemorragia Subaracnóidea | 26 | 12,81 | 41 | 23,29 | 67 |
Outros | 39 | 19,21 | 9 | 5,11 | 48 |
Total | 203 | 100 | 176 | 100 | 379 |
*qui quadrado p= 0.00 para entrevistas positivas.
Fonte: Dados da pesquisa
Os resultados da associação entre a entrevista familiar e as causas da ME evidenciaram diferença significativa entre os grupos TCE e AVE (χ2 (5,379) = 45,489; p=0,000).Observou-se que pacientes que faleceram de TCE apresentaram maior número de positivas familiares (Tabela 4).
Discussão
A predominância do sexo masculino corrobora com dados da literatura nacional e internacional. A Associação Brasileira de Transplante de Órgãos 8, infere que há predomínio de potenciais doadores do sexo masculino no país (60%). O mesmo foi evidenciado em estudos realizados em Portugal, Turquia e Irã, nos quais o percentual de PDs do mesmo sexo correspondiam a 53,7%, 61,7% e 65% respectivamente. 11,12,13
Quando comparados aos achados no cenário nacional, tais dados validam os estudos realizados nos estados de São Paulo (57,39%), Paraná (78,8%), Sergipe (70,3%) e Pernambuco (64%) os quais apontam que a efetivação da doação foi significativamente maior entre os indivíduos desse sexo. 1,7,8,14
O maior número de PD do sexo masculino pode estar associada ao maior risco de desenvolvimento de doenças cardiovasculares, maior vulnerabilidade do gênero para doenças crônicas não transmissíveis, assim como nas causas externas, bem como pela menor busca pelos serviços de saúde por estes indivíduos. O cenário de serviços de promoção à saúde e prevenção de doenças é marcado pela baixa procura desses clientes, que na maioria dos casos, são encontrados em maiores números nos serviços de média ou alta complexidade, com consequente maior risco de morte. 15
Quanto à faixa etária, no Brasil existe maior prevalência de doadores entre 50 e 64 anos, com 34% dos casos. Em estudos internacionais, a faixa etária se mostrou mais elevada 11,16,17 18, no Irã, embora tenha ocorrido um aumento na faixa etária com o passar dos anos, a idade dos doadores variou de 31 a 40.12 Tais fatos desvelam maior aproximação com os achados desse estudo, salientando que a doação de órgãos prevalece em PD jovens.
Na análise das causas primárias que levaram os pacientes a evoluir para ME no Brasil, foi possível observar que 55% são decorrentes de AVE 8, nas regiões do Sul e Sudeste, onde são registrados os melhores índices de doadores efetivos, cujas causas mais frequentes eram de origem vascular. 8,14,19,20Em contrapartida, os achados deste estudo discordam quanto à causa do óbito, sendo o TCE mais frequente.
Convergindo com a realidade encontrada neste estudo, pesquisa realizada em um hospital de referência do estado de PE, mostrou que o TCE é a causa mais frequente em pacientes jovens e vítimas de acidente motociclístico.21 Outro estudo, ao caracterizar os pacientes vítimas de TCE por acidente moto ciclístico, demonstrou que a maioria era do sexo masculino e com faixa de 20 a 29 anos. 20
De acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde22 o AVE é a segunda causa de morte no mundo, enquanto que acidentes de trânsito estão na 8ª posição. Um estudo que avaliou a mortalidade adulta por perfil de causa em 10 países da América Latina identificou que as causas externas têm grande impacto na mortalidade de homens, sendo a principal causa de morte em adultos. 23
As situações de inexequibilidade no processo de doação de órgãos, na morte encefálica, concernem em diversas alterações hemodinâmicas que, se não tratadas precocemente podem resultar na parada cardiorrespiratória precoce ou instabilidade clínica para a realização da cirurgia de retirada dos órgãos, assim como para abertura do protocolo de ME. Nesse estudo, 71% dos potenciais doadores apresentaram essa instabilidade, legitimando diversas pesquisas que associam essa realidade, sobretudo, ao baixo conhecimento da equipe de saúde quanto à manutenção do potencial doador de órgãos e tecidos, o que leva a ocorrência de erros e eventos adversos inviabilizando o processo de doação. 1,24,25
Além da instabilidade clínica do potencial doador, considera-se imprescindível ainda, a observação rigorosa das contraindicações absolutas e relativas eleitas pelas entidades e câmaras técnicas que regulam a prática supracitada. A literatura vigente discorre sobre alguns fatores associados a comportamento que são considerados de risco para doação de órgãos e tecidos, a saber: uso de drogas ilícitas injetáveis, prática de relações sexuais remunerada, com múltiplos parceiros, prática de relações homossexuais, portar tatuagens, dentre outras. 5,27
Para além disso, a Portaria de Consolidação nº 4, de 28 de setembro de 201733, que trata sobre o Sistema Brasileiro de Transplantes, enumera as contraindicações absolutas para doação de órgãos e tecidos, dentre elas, algumas neoplasias e infecções, nas quais a transmissão excede o benefício para os receptores destacando-se, principalmente: sorologias positiva para HIV, HTLV I e II; tuberculose em atividade; tumores (exceto os primários do Sistema Nervoso Central, carcinoma in situ de útero e pele), presença de sepse resistente, infecções virais e fúngicas graves ou potencialmente graves na presença de imunossupressão, exceto as hepatites B e C. 26,27-28
Além das repercussões hemodinâmicas e contraindicações clínicas que interferem no processo de doação, surge ainda uma das etapas de maior complexidade, fundamentada por aspectos éticos, legais e emocionais: a entrevista familiar para o consentimento de doação de órgãos. 1,25,29
Uma vez finalizado o protocolo de ME, é realizada criteriosa avaliação com o possível doador para análise quanto à elegibilidade para doação de órgãos. Caso possua, será oferecida esta opção à família, através da entrevista familiar. Somente após a realização da entrevista seguida da autorização familiar é que a doação poderá acontecer. 25,30
Embora essa pesquisa tenha evidenciado que 53,5% das entrevistas familiares obtiveram consentimento para doação de órgãos, este percentual não é uma realidade unânime no país. Estudos ratificam que a negativa familiar é um dos principais entraves na efetivação da doação de órgãos para transplantes, dentre os elementos que constituem barreiras para a concessão familiar destacam-se: o insuficiente nível de informação da população acerca dessa temática, suporte emocional inadequado, estrutura hospitalar precária, a burocratização do processo de doação, crenças religiosas, comunicação tardia e falta de acolhimento familiar, desejo de manter o corpo íntegro e o processo de luto. 1,22,24,25,29,31
Na Espanha em 2017, legitimando os achados da presente pesquisa , realizou-se um estudo onde das 2.509 entrevistas familiares, 2.183 (87,1%) foram positivas para doação, enquanto apenas 326 (12,9%) foram contrárias à doação 28, entretanto, quando comparado ao cenário mundial, estudos apontam que nos últimos anos as entrevistas negativas ainda são expressivas nos Estados Unidos, Reino Unido, Holanda e Alemanha. 28,32
Com o passar dos anos, foi evidenciado um aumento significativo na efetivação das doações de órgãos no Brasil8, podendo ser também observado neste estudo uma ascendência no número das doações entre os anos de 2013 e 2017, este acontecimento se deu em virtude de uma maior conscientização popular acerca da temática, do acolhimento familiar, o qual ameniza as dúvidas e os estressores vivenciados durante o processo, bem como a capacitação de profissionais de saúde que estão na linha de frente incentivando a doação e captação dos órgãos. 1
A negativa familiar é uma problemática complexa e multifacetada, pois envolve diversos aspectos socioculturais, políticos, econômicos, educacionais e religiosos, frente a isso, considera-se o acolhimento familiar uma ferramenta imprescindível e prioritária durante todo o período de internamento do potencial doador. Sobretudo, o esclarecimento de dúvidas, suporte no enfrentamento do luto e apoio psicológico são atitudes que resultam na segurança da família, o que pode ser positivo no momento da decisão pela doação. 1,5,27,29,31
Ao associar o resultado da entrevista familiar com o sexo do potencial doador, constatou-se que o número de entrevistas positivas foi maior no sexo masculino, todavia, ainda são poucos os estudos que trazem uma relação entre o sexo do potencial doador e autorização familiar para a doação de órgãos. Estudo realizado em Rio Grande-RS 33, com prontuários de 98 pacientes em morte encefálica, houve mais negativa familiar do sexo feminino, corroborando com este estudo. Outro estudo realizado no Hospital das clínicas da UNICAMP 14 não mostrou diferenças entre o sexo e doadores, em contrapartida, estudo realizado nos Estados Unidos, traz diferenças estatísticas entre o sexo e doadores falecidos, em que há predominância de autorizações em pacientes do sexo masculino. 33
Não se tem claro na literatura o que favorece aos familiares autorizarem mais doações de homens, mas sugere-se que estes expressam sua vontade, em vida, de forma mais eficaz, o que faz os familiares acatarem sua opinião. 33Além disso, a tomada de decisão dos familiares surge de práticas sociais assim como lembranças e experiências de vida, em que, quando o sujeito tem o apego pelo corpo com uma conotação carregada de sentimentos e significados, ele não consegue optar pela doação. A maneira como o indivíduo se relaciona com a imagem corporal, pode facilitar ou dificultar a doação. 34,35Essa teoria pode justificar o fato de menos doações do sexo feminino, uma vez que a mulher, culturalmente é a referência do cuidado e vínculo afetivo.
Se tratando da correlação entre a faixa etária e a entrevista familiar, assim como no sexo, essa temática não é vastamente discutida na literatura. Embora não tenha apresentado diferença significativa, houve um maior número de autorizações em pacientes mais jovens. Estudo realizado na Toscana (Itália), com objetivo de conhecer fatores envolvidos na recusa familiar para doação de órgãos, encontrou que a idade tem influência na decisão, onde familiares de pacientes com idades mais avançadas recusam mais o processo. 36
Em outro estudo realizado na França, com 148 prontuários de pacientes não doadores, foi percebido que, só em 4,7% dos casos a idade jovem do doador foi motivo de recusa.37 No Brasil, esses dados corroboram com estudo realizado em São Paulo, onde os pacientes não doadores possuíam idade mais elevada.14 Acredita-se que as pessoas com maior idade não falam muito sobre o desejo de doar, dificultando a decisão familiar. Porém, com as ações de educação em saúde, cada vez mais os idosos estão sendo inseridos neste cenário e fortalecidos a discutir sobre o assunto.
Avaliando a correlação entre a causa da morte e o resultado das entrevistas, percebeu-se uma maior aceitação da doação de pacientes vítimas de TCE, quando comparados com os pacientes vítimas de AVE, corroborando com outros estudos. 3,35A doação em casos de morte trágica, com a perda repentina do ente querido, é vista como uma continuação da vida, sendo um conforto para os familiares. Pode-se dizer que a escolha pela doação os ajuda a lidar melhor com a perda e ter um sentimento de tranquilidade no futuro, com a superação do luto. 37
Este estudo permite uma melhor compreensão e reflexão sobre o processo das doações e transplantes, visando embasar os profissionais de saúde em uma assistência de qualidade aos potenciais doadores bem como acolher de forma humanizada os familiares, tendo em vista que a efetivação das doações alcance um número satisfatório quando comparado a grande demanda das listas de espera no Brasil e no mundo. Além disso, a pesquisa pode motivar o desenvolvimento de processos educativos voltados para a conscientização e incentivo da população a manifestar seu desejo em doar e discutir em família sobre esse assunto, no sentido de melhorar a efetivação das doações minimizando os índices de recusa familiar.
A equipe de enfermagem tem papel fundamental em todo processo da captação e doação, para isso, é importante que esses profissionais estejam sempre buscando o aprimoramento de sua prática profissional uma vez que se faz necessário prestar uma assistência de qualidade na manutenção do PD buscando assim a continuidade da vida através da captação desses órgãos e tecidos.
Como limitações para o estudo, notou-se a ausência de informações nos registros dos formulários analisados, configurando-se como uma problemática uma vez que dificulta uma análise mais aprofundada em relação ao objeto estudado. Desta forma, é necessário enfatizar a importância de um registro de qualidade, objetivando uma melhoria da assistência e pesquisas em saúde.
Conclusão
O estudo possibilitou conhecer o perfil dos potenciais doadores de órgãos, no qual mostrou uma predominância de indivíduos do sexo masculino, com faixas etárias entre 21 e 60 anos de idade. O trauma crânio encefálico se destacou como a principal causa de morte e os resultados das entrevistas familiares em sua maioria foram favoráveis à doação de órgãos.
Constatou-se que entre os anos de 2013 e 2017, ocorreu um crescimento considerável no quantitativo das doações. Familiares do paciente do sexo masculino e de vítima de TCE doaram mais seus órgãos quando comparados com os familiares de pacientes do sexo feminino e vítimas de AVE.
Embora tenha ocorrido uma evolução no índice de doações efetivas e este número estar superior a realidade nacional, ainda não existe órgãos suficientes para a demanda em lista de espera. Assim, é imprescindível compreender os aspectos que envolvem a não efetivação, bem como os fatores que são primordiais para que a doação ocorra, na busca de melhores resultados.
DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES
Todos os autores desta pesquisa declaram que não possuem conflito de interesse de ordem pessoal, comercial, acadêmico, político ou financeiro no manuscrito.