Introdução
A colonização no continente Abya Yala (hoje América) iniciou-se no ano de 1492 e na região andina em 1532. Para Mamani (2010), neste momento se inicou um processo de genocídio e etnocídio que teve continuidade através da exclusão, segregação e racismo extremo, expressando uma tragédia histórica para os povos indígenas originários do continente que continua até os dias atuais. Quijano (1997, 61) destaca que apesar do fim do colonialismo, “[...]segue sendo uma relação de dominação colonial [...] uma colonização das outra culturas”.
A dificuldade de imaginar uma alternativa ao colonialismo reside no fato de que o colonialismo interno não é somente uma política de Estado, mas uma “gramática social muito grande que atravessa a sociabilidade, o espaço público e o espaço privado, a cultura, as mentalidades e as subjetividades” (Santos 2010, 14). Neste contexto, as comunidades indígenas do continente latinoamericano, procuraram construir suas lutas baseando-se em conhecimentos ancestrais, populares e espirituais que sempre estiveram fora do cientificismo próprio da teoria eurocêntrica.
Os discursos voltados ao desenvolvimento humano e ao bem-estar da sociedade, ampliaram-se a partir da diversidade das culturas expressas nas Constituições de países latino-americanos, como Equador e Bolívia. Destaca-se a contribuição da Organização das Nações Unidas (ONU), especificamente da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO), em documentos publicados, apresentados e debatidos sobre o tema destacando a urgente necessidade,
[...] de respeitar e promover os direitos intrínsecos dos povos indígenas, que derivam de suas necessidades políticas, econômicas e sociais e de suas culturas, de suas tradições espirituais, de sua história e de sua concepção de vida, especialmente dos direitos a suas terras, territórios e recursos (ONU 2007, 2).
O Bem Viver emerge como um discurso no final de 1990, impulsionado por três atores importantes: movimentos sociais latino-americanos da época (particularmente o movimento indígena contra o neoliberalismo final do século XX); convergência entre os referidos movimentos e as ideologias de determinados movimentos globais (especialmente anti/alter-globalização e movimentos ambientais); e desencanto generalizado com a ideia de desenvolvimento (Vanhulst e Beling 2014, 56).
Neste contexto, o tema do Bem Viver, expõe críticas à teoria clássica do modelo de desenvolvimento ocidental e apresenta alternativas ao desenvolvimento embasadas nas tradições indígenas, repousando seu pensamento na lógica de (con)vivência dos grupos sociais (Yampara 1995). Ao mesmo tempo, remete à teoria de decrescimento de Serge Latouche, à noção de convivência humana de Iván Illich, à ecologia profunda de Arnoldo Naes e as propostas de descolonização de Anibal Quijano, Boaventura Santos e Edgardo Lander (Dávalos 2008).
Em um sentido genérico, entende-se o Bem Viver, como um campo semântico, onde podem ser colocadas experiências emancipatórias como a da ecossocioeconomia, cuja origem do termo é atribuída ao economista alemão Karl Willian Kapp (1950), quando trata de impactos ambientais relacionados às organizações. Estas experiências apontam uma transição da compreensão reducionista do mundo, resultante da dominação da natureza pelo homem, para o entendimento sistêmico e complexo da dinâmica socioambiental.
A ecossocioeconomia ocorre no mundo da vida, nas comunidades, nos povoados, nas organizações, onde os problemas e as soluções acontecem e raramente são qualificados (Sampaio Cioce, Etxagibel Azkarraga e Gabilondo Altuna 2009). Trata-se de uma teoria pensada, partindo das experimentações e da complexidade do cotidiano (Sachs, 1986).
De acordo com Acosta (2016), o Bem Viver se afirma na simetria na relação entre indivíduo para com ele mesmo; entre indivíduo e sociedade e; entre indivíduo e planeta com todos seus seres, por mais equivocadamente insignificantes que possam parecer. A partir da harmonia destes três pressupostos é que se consegue estabelecer conexão e interdependência com a natureza da qual somos parte. Neste sentido, os povos indígenas demonstram um profundo respeito nestas relações, rompendo com a lógica capitalista e seu individualismo inerente. Este artigo tem por objetivo realizar um estudo sobre o tema “Bem Viver” na perspectiva das comunidades indígenas1.
Bem Viver - gênese e fundamentos conceituais
Bem Viver, ou “Bien Vivir” ou “Vivir Bien”, encontra-se na região andina da América do Sul - desde o sul da Venezuela ao norte da Argentina - e deriva por um lado, do Quechua (runa simi) e por outro, do Aimara (aymará jaya mara aru), que são idiomas pré-hispânicos da região dos Andes (Estermann 2012).
Para Teijlingen e Hogenboom (2017), o conceito surgiu menos de uma década atrás e tem sido referido como uma filosofia de vida (Acosta, 2010), cosmologia (Walsh, 2010), atitude de vida (Cortez 2011), ontologia (Thomson 2011), modelo de desenvolvimento (Radcliffe 2012), e alternativa ao desenvolvimento (Gudynas 2011).
Apesar de suas expressões mais conhecidas referirem-se ao "Sumak kawsay" do Kichwa do Equador e do Peru hoje, e a "Suma Qamaña" do Aymara da Bolívia, expressões similares são encontrados no "Ñandereko" do Guarani, os "Waras Shiir" do Ashuar, o "Küme Mongen" do Mapuche, e em praticamente todos os povos indígenas, não só na América Latina, mas em todas as culturas antigas do mundo, que não dispensam a abordagem de controvérsias internas sobre a verdadeira extensão e formas de relacionamento entre os povos indígenas (Jiménez 2011). O Bem Viver supõe uma profunda transformação na relação sociedade-natureza, pelas mesmas razões e no mesmo grau que exige mudanças nas relações étnicas e culturais de poder.
Em termos ideológicos, o conceito implica a reconstituição da identidade cultural de herança milenária, a recuperação de conhecimentos e saberes antigos; uma política de soberania e dignidade nacional; a abertura de novas formas de relação de vida (não individualista senão comunitária), a recuperação do direito de relação com a Mãe Terra e a substituição da acumulação ilimitada individual de capital pela recuperação integral do equilíbrio e a harmonia com a natureza (Mamani, 2010, 13).
O conceito do Bem Viver recebeu relevância no Equador quando começaram os debates na “Asamblea Constituynte del Ecuador” em finais de 2007, pela iniciativa dos equatorianos Fernando Vega e Alberto Acosta (Hidalgo Capitán 2012). No ano de 2011, o “Programa Interdisciplinario de Población y Desarrollo Local Sustentable (PYDLOS)” da Universidade de Cuenca, formulou seu “Plan de Desarrollo Académico e Institucional” para os anos 2011-2015, estabelecendo como prioridade a construção de novos enfoques, metodologias e instrumentos que permitissem melhorar os processos de planificação participativa e gestão do território até a consecução do Bem Viver (Hidalgo Capitán 2012).
Nos últimos anos, o Bem Viver passou a ser mencionado em várias publicações como sinônimo de vida saudável, combinado a projetos de desenvolvimento dos governos equatoriano e boliviano, associado à qualidade de vida. Neste sentido, estudiosos apontam o Bem Viver a uma natureza polissêmica, passível de diferentes concepções, como viver melhor, bem-estar, qualidade de vida e desenvolvimento humano (Lacerda e Feitosa 2015). Entende-se porém, que a melhor forma de sua compreensão, esteja na tentativa de compreensão de suas raízes ancestrais, considerando suas origens e os sentidos atribuídos por povos originários na construção do seu conceito.
Segundo Hidalgo Capitán (2012a, 16; 2012b, 49) existem três correntes do Bem Viver: (1) a indigenista e a pachamamista, (2) a socialista e estadista, e (3) a pós-desenvolvimentista e ecologista.
A primeira e originaria seria a corrente indigenista e pachamamista, caracterizada pela relevância que se dá a autodeterminação dos povos indígenas na construção do Bem Viver, assim como aos elementos mágico-espirituais (la Pachamama). […] Estaria vinculada com o pensamento indígena pré-moderno. […] A segunda seria a corrente socialista e estadista, caracterizada pela relevância que dá a gestão política-estatal do Bem Viver, assim como aos elementos relativos a equidade social. […] e a terceira seria a corrente post-desenvolvimentista e ecologista, caracterizada por relevância que se dá a construção participativa do Bem Viver, com a inclusão de aportes indigenistas, socialistas, feministas, teológicos e, sobretudo, ecologistas. Falam do Bem Viver como uma alternativa ao desenvolvimento, como uma utopia em construção […].
Os povos originários tradicionais pertencem a primeira corrente por possuírem modos de vida sustentáveis, distanciados da visão hegemônica ocidental de sociedade de consumo. Acosta (2010) assinala que o Bem Viver, enquanto filosofia de vida sustentável, consiste em alternativa à visão utilitarista e antropocêntrica de desenvolvimento. Para Eduardo Gudynas o tema nos remete a uma perspectiva biocêntrica onde “[...] a boa vida dos seres humanos só é possível se a sobrevivência e integridade da teia da vida da natureza pode ser garantido" (Gudynas 2009, 52).
A abordagem do Bem Viver contraria a visão individualista, o que contraria o senso de comunidade. Implica reconhecer a vida a partir de uma cosmovisão - concepção ou visão de mundo - que integra o ser humano à Natureza, esta entendida como sujeito de direitos, independentemente de sua utilidade prática e imediata para os seres humanos.
Trata-se de reconhecer que o planeta possui uma capacidade de carga limitada, o que sugere regulação do consumo e descarte atual e futura, de maneira a não prejudicar irreversivelmente os ecossistemas e a biodiversidade planetária (Acosta 2010 e Gudynas 2009). As consequências do desenvolvimento, segundo Dávalos (2008), e seu legado de destruição ambiental, degradação humana, violência social, colonização das consciências, são vistas como naturais e inevitáveis.
Neste contexto, o “Bem-Viver” engloba um conjunto de ideias surgidas como reação e alternativas aos conceitos convencionais de desenvolvimento, como as da ecossocioeconomia, explorando perspectivas criativas tanto no plano das ideias como no campo da prática.
Colonialidade, Interculturalidade e descolonização do saber
A promessa de desenvolvimento, modernidade, progresso, fazem crer que se pode alçar um “melhor nível de vida” e que os recursos naturais são condição chave para se lograr este intento. Esta visão reducionista, antropocêntrica e individualista, reduziu a crise estrutural a uma crise econômica. A urgência de uma resposta ao modelo econômico vigente, desde a cosmovisão dos povos indígenas origináriosnada mais é que uma nova forma de vida sustentada no equilíbrio, harmonia e respeito à vida.
Frente a esta conjuntura política e conflitiva, entre lutas históricas e interesses políticos e econômicos, emergem tensões e paradoxos das compreensões, usos e projetos de interculturalidade como,
[...] um projeto que por necessidade convoca a todos os preocupados pelos padrões de poder que mantêm e seguem reproduzindo o racismo, a racionalização, a desumanização de alguns e a sobre-humanização de outros, a subalternização de seres, saberes e formas de viver. Seu projeto é a transformação social e política, a transformação das estruturas de pensar, atuar, sonhar, ser, estar, amar e viver (Walsh 2009, 15).
O passado colonial dos países resultou do modelo hegemônico (e global) de poder “instaurado desde a conquista, que articula raça e trabalho, espaço e pessoas, de acordo com as necessidades do capital e para o benefício dos brancos europeus” (Escobar 2003, 62).
As relações de poder e as estruturas e instituições que mantêm estas relações, naturalizam as assimetrias e desigualdades sociais. Para Walsh (2013, 66-67) “[…] o trabalho de aprendizagem, (des)aprendizagem e reaprendizagem implicados e até formas “muitas outras” de estar, ser, pensar, fazer, sentir, olhar, escutar, teorizar, atuar, conviver e reexistir ante momentos políticos complexos caracterizados por violências crescentes, repressão e fragmentação”.
Para Quijano (2000, 342), a “colonialidade”2 é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Funda-se na imposição de uma classificação racial e ética da população. “[...] como pedra angular deste padrão de poder que opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e de escala societal”.
A relação de dominação com a natureza se impõe nos modos de vida. Neste sentido, descolonizar nosso imaginário, implica imaginar outra maneira de viver, que permita uma certa qualidade de vida e também, uma maneira de relacionamento com a natureza, respeitando a biodiversidade (Walsh, 2009).
Neste sentido, há outra dimensão de resistência e construção de alternativas de ordem política colonial de submissão e exclusão desta população, que implica em renunciar sua cultura, identidade, os modelos de vida próprios, e seus valores culturais, negando a possibilidade de incorporarem-se ao modo de vida “moderno” (Lander 2012).
Para Escobar (2010, 1) “[...] é necessário reconhecer a presença de uma “dupla conjuntura”: a da crises do projeto neoliberal das últimas três décadas, por um lado, e simultaneamente, a crise do projeto da modernidade que vem desde o momento da conquista”. Para o autor,
[...] o socialismo do século XXI, plurinacionalidade, interculturalidade, democracia direta e substantiva, revolução cidadã, desenvolvimento endógeno centrada no Bem Viver do povo, projetos territoriais e autonomia cultural e (de)coloniais no sentido pós-liberal e sociedades são alguns dos conceitos que procuram para nomear as transformações em curso (Escobar 2010, 2).
Walsh (2009), acredita que nas comunidades indígenas, a “colonialidade” tem operado um nível intersubjetivo e existencial, permitindo a desumanização de alguns, a sobre-humanização de outros e a negação dos sentidos integrais da existência da humanidade.
Os sistemas comunitários são um caminho em direção ao futuro, não apenas para a população indígena, mas podem também funcionar como um modelo para uma organização global, na qual muitos mundos irão coexistir, sem serem dominados em nome de uma simplicidade e de uma reprodução de oposições binárias. Os sistemas comunitários oferecem uma alternativa para ambos ossistemas: os liberais e socialista-comunistas [...]. O sistema comunitário é, ao contrário, baseado na que coexistiu com as instituições ocidentais imperiais/coloniais, desde o momento em que os espanhóis invadiram os Andes. [...] No sistema comunitário, o poder não está localizado no Estado ou no proprietário individual (ou corporativo), mas na comunidade (Mignolo 2008, 319-320).
A matriz colonial-cultural de estruturação social foi feita e assumida com o objetivo de civilização, modernidade e desenvolvimento. Entretanto, apesar da persistência da matriz colonial de dominação e seus padrões de poder, os povos indígenas podem empregar e aproveitar esta colonialidade sem perder necessariamente, sua identidade. “As possibilidades reais de viver em comunidade, parte essencial do “bem viver”, passam primeiro pela possibilidade de construir essa comunidade” (Caovilla Lucca 2015, 126).
Apesar da situação de dominação e exploração de vários séculos, resultantes da colonização europeia, muitos povos se mantêm fieis ao modo de vida alternativo em substituição àquele desenvolvimento assumido pelas sociedades ocidentais. Neste contexto, a descolonização representa um projeto de desprendimento epistêmico da esfera social, política e cultural. Para Quijano (1992, 442):
A descolonização epistemológica dá passo a uma nova comunicação intercultural, a um intercâmbio de experiências e de significações, como a base para outra racionalidade que possa pretender, com legitimidade, a alguma universalidade. Pois nada menos racional, finalmente, que a pretensão de que a específica cosmovisão de uma etnia em particular seja imposta como a racionalidade universal, ainda que tal se chame Europa Ocidental. Porque isso, na verdade, é pretender para um provincianismo o título de universalidade.
Neste sentido, é necessária uma desconstrução das ideias dominantes sobre o Estado, a economia, a educação e, principalmente, sobre o Direito; exigese superar a colonialidade constitucional para assentar as bases de uma comunidade política inclusiva e democrática, que permita nutrir-se de cosmovisões, saberes, epistemologias e práticas culturais diversas.
Direitos territoriais e humanos dos povos indígenas originários
Destacam-se as lutas ainda vigentes, conflitivas e presentes dos povos indígenas, particularmente em torno dos direitos territoriais e fazer efetivo. Neste contexto, faz-se necessário a implementação de políticas públicas voltadas a população indígena, como o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1989. Este convênio, sobre Povos Indígenas e Tribais, foi ratificado no Brasil somente em 2002 com vigência a partir de 2003. Neste Convênio, os povos indígenas adquiriram o direito de escolha de integrar-se ou manter sua cultura, suas tradições e integridade política. Possui 7 partes e 44 artigos, que incentivam os povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e de seu desenvolvimento econômico e a manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do marco dos Estados em que vivem (OIT 1989). Neste sentido, o artigo 8 reconhece as culturas, tradições e circunstâncias especiais dos povos indígenas e tribais.
Estes povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, sempre que estas não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que seja necessário, deverão estabelecer procedimentos para solucionar os conflitos que podem surgir na aplicação deste principio (OIT 1989).
Este convênio enfatizou os direitos de trabalho dos povos indígenas e tribais e seu direito à terra e ao território, saúde e educação. Determinou também a proteção dos valores e práticas sociais, culturais, religiosas e espirituais próprias dos povos indígenas, e definiu a importância do território e seus valores espirituais. Assim como a importância das atividades tradicionais para manutenção da cultura. No que tange aos serviços de saúde para indígenas, este poderão organizar-se de forma comunitária, incluindo os métodos de prevenção, práticas curativas e medicamentos tradicionais. A parte V, sobre Segurança Social e Saúde, Artigo 24, item 2 garante que:
Os serviços de saúde deverão organizar-se na medida do possível, em nível comunitário. Estes serviços deverão planejar-se e administrar-se em cooperação com os povos interessados e ter em conta suas condições econômicas, geográficas, sociais e culturais, assim comoseus métodos de prevenção, práticas curativas e medicamentos tradicionais (OIT 1989, 15).
Os programas de educação devem abordar sua história, seus conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e deverão adotar disposições para preservar a língua indígena. O artigo 7, tem 2 do Convênio 169 dispõe:
O melhoramento das condições de vida e trabalho e o nível de saúde e educação dos povos interessados, com sua participação e cooperação, deverão ser proprietários nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde habitam. Os projetos especiais de desenvolvimento para estas regiões deverão elaborar-se de modo que promovam este melhoramento (OIT 1989,8).
A Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) aprovou a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas em setembro de 2007. Afirma que os povos indígenas são iguais a todos, reconhecendo o direito de todos os povos a serem diferentes, a considerarem-se a si mesmos diferentes e a serem respeitados como tais. Igualmente, afirma que todos os povos contribuem com a diversidade e riqueza das civilizações e culturas, constituindo-se em patrimônio comum da humanidade. O artigo 3 indica: “os povos indígenas têm direito a livre determinação. Em virtude deste direito, determinam livremente sua condição política e perseguem livremente seu desenvolvimento social e cultural” (ONU 2007).
Apesar destes direitos enfatiza “uma urgente necessidade de respeitar e promover os direitos intrínsecos dos povos indígenas que derivam das estruturas políticas, econômicas e sociais e da cultura, tradições espirituais, a história e concepção de vida” (ONU 2007).
As Constituições de Equador e Bolívia estabelecem o “Buen Vivir” e o Vivir Bien” e o conceito de “Estado Plurinacional”3, que emerge da cosmovisão indígena originária, descrevendo as diferentes nações da “Abya Yala”, onde convivem diversas identidades de forma complementar (Mamani 2010, 12). No Equador, “[...] se optou por uma ideia de nação que bem se confunde com a de cidadania, reconhece três dimensões - política, jurídica e cultural - que deixa aberta a porta da noção indígena de nacionalidade, entendida em términos de vínculo com uma comunidade histórica”(Correa 2009, 438).
O “Plan Nacional para el Buen Vivir 2013-2017” do Equador tem um conjunto de objetivos que expressam a vontade de continuar com sua transformação histórica, que vão além das metas fixadas pelas Nações Unidas nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, ratificada pela SecretaríaNacional de Planificación y Desarrollo (ONU 2011 e SENPLADES 2013). Entre estes objetivos estão: consolidação de um estado democrático, inclusão e equidade social e territorial na diversidade, melhora da qualidade de vida da população, fortalecimento das capacidades e potencialidades da cidadania, construção de espaços comuns e fortalecimento da identidade nacional, incentivo a plurinacionalidade e a interculturalidade, garantia dos direitos da natureza e promoção da sustentabilidade territorial e global, consolidação do sistema econômico social e solidário de forma sustentável, garantia da soberania alimentar, entre outros (SENPLADES 2013).
Especificamente no Brasil, em 1967, sob o regime Militar, o governo substitui o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e criou a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), como órgão gestor e executor da política indigenista oficial. Este órgão mantém a política integracionista do Estado, com o objetivo explícito no artigo 1. da Lei 6001 do Estatuto do Índio: “[...] integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional” (BRASIL 1973). O direito de manter a língua e costumes é garantido pela Constituição Brasileira de 1998 pelo Artigo 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-los, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Também está garantido por lei constitucional o direito de preservação e estudo das línguas nas escolas, pelo artigo 210: “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. Ao mesmo tempo, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas integra a Política Nacional de Saúde, compatibilizando as determinações das Leis Orgânicas da Saúde com as da Constituição Federal, que reconhecem aos povos indígenas suas especificidades étnicas e culturais e seus direitos territoriais.
Os sistemas tradicionais indígenas de saúde são baseados em uma abordagem holística de saúde, cujo princípio é a harmonia de indivíduos, famílias e comunidades com o universo que os rodeia. As práticas de cura respondem a uma lógica interna de cada comunidade indígena e são o produto de sua relação particular com o mundo espiritual e os seres do ambiente em que vivem. Essas práticas e concepções são, geralmente, recursos de saúde de eficácias empírica e simbólica, de acordo com a definição mais recente de saúde da Organização Mundial de Saúde (BRASIL 2002, 17).
Entre as políticas, estão as que se relacionam com o uso da biodiversidade e do etnoconhecimento para fins medicinais, ou seja, os saberes tradicionais que regulam o entendimento, prática e uso que se tem sobre um objeto ou evento (Dansac 2012).
[...] autonomia dos povos indígenas quanto à realização ou autorização de levantamentos e divulgação da farmacopeia tradicional indígena, seus usos, conhecimentos e práticas terapêuticas, com promoção do respeito às diretrizes, políticas nacionais e legislação relativa aos recursos genéticos, bioética e bens imateriais das sociedades tradicionais. [...] Devem também compor essas ações as práticas de saúde tradicionais dos povos indígenas, que envolvem o conhecimento e o uso de plantas medicinais e demais produtos da farmacopeia tradicional no tratamento de doenças e outros agravos a saúde. Essa prática deve ser valorizada e incentivada, articulando-a com as demais ações de saúde dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (BRASIL 2002, p.18).
Esta proposta foi regulamentada pelo Decreto n.º 3.156, de 27 de agosto de 1999, que dispõe sobre as condições de assistência à saúde dos povos indígenas, e pela Medida Provisória n.º 1.911-8, que trata da organização da Presidência da República e dos Ministérios, onde está incluída a transferência de recursos humanos e outros bens destinados às atividades de assistência à saúde da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para a Fundação Nacional da Saúde (FUNASA), e pela Lei nº 9.836/99, de 23 de setembro de 1999, que estabelece o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL 2002).
Metodologia
Conforme o Ministério de Educação (MEC), o Programa de Ações Afirmativas pressupõe um conjunto de medidas especiais voltadas a grupos discriminados e vitimados pela exclusão social ocorridos no passado ou no presente (MEC, 2016). Este programa estabeleceu reserva de vagas para estudantes do ensino público, com porcentagem para negros (pretos e pardos) e vagas extras para índios nas Universidades Federais.
Nesta pesquisa foram entrevistados dez estudantes universitários indígenas deste Programa, todos recém ingressados na Universidade, mediante prévia autorização e concordância dos mesmos. Apesar da importância de dialogar com outros membros das comunidades, as dificuldades de logística não permitiram a realização destas entrevistas. Ressalta-se que os estudantes após o término do curso de graduação, retornam as suas comunidades de origem, colocando em prática os conhecimentos apreendidos (explícitos) na Universidade sem deixar de lado os conhecimentos tradicionais (tácitos). Os entrevistados pertencem as seguintes etnias: Warequena, Baníwa, Xukuru do Orurobá, Tariána, Terena (Bananal e Cachoeirinha), Arapaso e AtikumUmã (Figura 1).
Esta pesquisa utilizou-se de pesquisa descritiva e exploratória-qualitativa, com análise comparativa, sendo que a metodologia se deu em três fases: (a) pesquisa bibliográfica e documental sobre os temas do Bem Viver, interculturalidade, direitos territoriais e humanos; (b) etapa exploratória com entrevistas semi-estrutradas (formulário qualitativo de coleta de dados) com dez acadêmicos de comunidades indígenas originárias; e (c) análise dos aspectos socioeconômicos, culturais e ambientais relacionados ao Bem Viver.
Tessitura das comunidades indígenas originárias: Bem viver ou mal viver?
Ainda que se pressuponha a equidade na distribuição de riquezas, povos indígenas não consideram o Bem Viver como estando associado à acumulação de bens materiais e sua abundância, mas a uma convivência humana sem desigualdade ou discriminação. Para os povos indígenas originários, a vida não se mede unicamente em função da economia, mas de fatores que se relacionam com a essência da própria vida, como a harmonia com a natureza, consigo mesmo e com outros; nos modos de vida e na oposição ao conceito de acumulação.
Caracterização das comunidades pesquisadas
O Brasil tem 896,9 mil indígenas em todo o território nacional, somando a população residente tanto em terras indígenas (63,8%) quanto em cidades (36,2%), de acordo com o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE 2015).
Conforme o Instituto Sócio Ambiental (ISA 2016), Podemos agrupar os povos indígenas no Brasil, no tronco linguístico Aruák, de acordo com a região que habitam. Para Bittencourt e Ladeira (2000), estes povos apesar de apresentarem diferenças entre si, possuem a mesma língua de origem. Além disso, tem semelhanças na forma de organização social (tradicionalmente agricultores e conhecedores das técnicas de tecelagem e cerâmica).
Entre eles, os Baníwa da comunidade Macedônia - Rio Içana (afluente do Rio Negro), que possuem em torno de 5 mil habitantes; Warekena da comunidade Vila Nova - Rio Xié com apenas 595 habitantes e Tariána da comunidade Ilha de Duraka, rio Uapés (Camanaus), possui em torno de 2 mil habitantes distribuídos nas comunidades Médio Uaupés, Baixo Papuri e Alto Iauiari, o centro do povoamento fica entre as cachoeiras do Iauareté e Periquito. A etnia dos Arapáso da Comunidade Ilha de Duraka com 497 habitantes, está classificada no tronco linguístico dos Tukano. Estas comunidades estão localizadas no Estado do Amazonas (IBGE 2010).
Considerado o município mais indígena do Brasil, cerca de 90% dos habitantes são indígenas e além do português, existem mais três idiomas oficiais: Nheengatu, Tukano e Baníwa. Das 23 etnias, pelo menos 3 mil anos ocupam as margens do rio Negro e de seus afluentes e correspondem a 80% da população (IBGE 2015). Os cerca de 43 mil habitantes se dividem entre a área urbana - ocupada a partir da margem do rio desde a fundação do forte São Gabriel pelos portugueses, em 1761 - e as centenas de comunidades espalhadas pelo interior da floresta, algumas a dois ou três dias de barco dentro do maior mosaico de terras indígenas do país, com 100 km² de área. Um território maior do que Portugal, onde vivem os Baniwa, Kuripako, Dow, Hupda, Nadöb, Yuhupde, Baré, Warekána, Arapáso, Bará, Barasana, Desana, Karapanã, Kubeo, Makuna, Mirity-tapuya, Pira-tapuya, Siriano, Tariana, Tukano, Tuyuca, Wanana e Yanomami (Viana 2015).
O Estado do Mato Grosso do Sul abriga a segunda maior população indígena do país, que são compostas pelas seguintes nações: Ofayé Xavante, Kadiwéu, Guató,Guarani, Kaiowá e os Terena (Vieira 2004). Os Terena também pertencem ao grupo dos Aruák. Constituem hoje, população estimada de 28 mil habitantes (IBGE 2010). A aldeia de Cachoeirinha está localizada no município de Miranda (MS). A aldeia Bananal fica a 75 km do Município de Aquidauana, no sentido Aquidauana/Miranda, BR 262.
Ambas tiveram suas reservas delimitadas entre 1904 e 1905. Esta demarcação permitiu que o governo liberasse o restante das terras para frentes expansionistas de criação de gado e, posteriormente, a plantação de soja (Vieira 2004). O povo Terena tem uma das maiores populações indígenas do Brasil, tendo a agricultura uma de suas principais culturas, juntamente com a produção de cerâmica, instrumentos musicais e objetos de cipó e palha de palmeira.
A etnia Xucuru da aldeia Couro Dantas esta localizado Pernambuco. Falam português, apesar de conhecerem 800 palavras que remetem ao antigo léxico de sua língua original. O aldeamento dos remanescentes Xucuru está situado na Serra do Ororubá, a cerca de 6 km da cidade de Pesqueira. Ao todo, são 27 mil hectares de território indígena, ocupados por 2.100 famílias, totalizando 12 mil índios (IBGE 2010). São agricultores e vendem seus produtos na feira livre em Pesqueira. Depois de muitos conflitos, na década de 1950, conquistaram o direito às suas terras por meio de reconhecimento oficial, com a implantação de um Posto do Serviço de Proteção aos Índios SPI na Serra do Ororubá (Silva 2008).
Os Atikum-Umã conhecidos como “caboclos da Serra do Umã” possuem uma população estimada de 7.499 habitantes e não pertencem a nenhuma família ou tronco linguístico (IBGE 2010). Falam a língua portuguesa e poucas palavras no léxico que deu origem a sua etnia, que remetem a nomes a elementos da natureza. Sua área está localizada na região da serra das Crioulas e Umã, nos limites do atual município de Carnaubeira da Penha, sertão de Pernambuco (ISA 2016).
História oral das comunidades
Antigamente as comunidades cultivavam suas tradições, rituais, religião e cultura. As casas, segundo os Terena (Bananal), eram feitas de capim e barrote de macaúba. Atualmente, possuem uma estrutura urbana, com escolas, igrejas, posto de saúde e casas de alvenaria. As religiões predominantes é a evangélica e/ou católica. Eram caçadores e coletores, predominantemente agricultores, como perderam muitas áreas de terra, e comunidade diminuiu de tamanho. Estão cercados por fazendas de pecuária.
A comunidade de Cachoeirinha possui hoje pouco mais de 5.000 habitantes. Foi na década de 80 e 90 que chegou o chamado “desenvolvimento” na região, com postos de saúde, escolas, energia elétrica, etc.
Na comunidade Baníwa, o artesanato tem uma produção em pequena escala e é comercializado pelo sistema de troca entre as comunidades indígenas e a população urbana por produtos de pouco valor para as comunidades. A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) de São Gabriel da Cachoeira (Amazonas) procura formar na comunidade, lideranças indígenas que incentivam o resgate das tradições, principalmente na valorização na produção do artesanato, que havia sido esquecido. Realizam encontros com as comunidades para o resgate das técnicas de confecção, repassando estes saberes para os jovens da comunidade.
A comunidade Xukuru do Ororubá sofreu muitas perseguições e conflitos e ainda luta contra o preconceito. Os indígenas estão despertando por meio de reflexões por meio da educação, mas muitos ainda não acesso e domínio da escrita para se expressar.
No passado, a comunidade Warekena era pequena com poucas pessoas, hoje a comunidade tem mais de 30 famílias, com escolas, casas de alvenaria e professores da própria aldeia.
Os Arapáso, no passado, não tinham muitas informações das outras localidades, regiões e países. Atualmente, possuem conhecimentos para poder melhor analisar o que é desejável para a comunidade. Para os Atikum, no passado os alimentos eram fartos e naturais. Hoje tudo se alterou com os avanços da agricultura tradicional.
Conhecimentos tradicionais
Procurou-se saber na concepção dos acadêmicos, se os conhecimentos tradicionais ainda são preservados na comunidade e se são transmitidos de pai para filho. Para os Tariána e os Terena o respeito aos mais velhos e os rituais ainda são preservados.
O respeito pelos mais velhos, a sabedoria dos rituais de cura, a dança chamada chamada “dabucurí”, a língua materna não tão fluente, conhecimentos populares de cura através de plantas (Tariana).
Os anciões da comunidade sempre estão atento durante o cultivo da lavoura que é repassado para seu filho de acordo com o tempo do ano com orientação do vento e posição da lua. O tronco da família orienta os filhos mais novo passar respeitar o irmão mais velho irmão [...] Agricultura: fases da lua para plantar, para colher (Terena - Aquidauana/MS).
[...] Esses conhecimentos são muitos, dependendo da família o filho já começa fazer o acompanhamento nas atividades a partir dos treze anos de idade. Esse conhecimento são em diferentes áreas, exemplo na agricultura, na caça, na pesca, o reconhecimento territorial.[...] Atualmente á a língua materna bem marcante, em seguida as danças que são festejadas nas datas comemorativas e eventos da comunidade (Terena - Miranda/MS).
Os conhecimentos são transmitidos em forma de rituais sagrados na pintura, festas, costumes e língua.
As tradições da comunidade que são repassadas, são os rituais sagrados, as danças, as vestes, as pinturas, os costumes realizados em datas comemorativas, como: a busca da lenha, a elevação a Tamain (Maria), Tupã (Deus), são costumes que estão sempre no dia-a-dia na comunidade (Xukuru do Ororubá).
Conhecimentos tradicionais nossa comunidade são: história da humanidade, demarcação da terra desde origem, dança de Carriço, dança de Japurutá, dança do Mawaco, etc... (Baníwa).
Os nossos conhecimentos tradicionais que ainda são passados de geração em geração é o “Toré” que é o nosso ritual de dança que é realizado no nado e roupas de caçar (Atikum).
Os conhecimentos que são passados de pai para filho são: dança, caça, confecção de artesanatos, língua e rituais sagrados (Arapáso).
Para os Warekena, muitas tradições foram esquecidas e não são praticadas pelos mais jovens: “Aldeia deixou de pratica as tradições antigas, vivido pelos mais antigos da tribo” (Warekena). No geral, muitos rituais e saberes tradicionais foram preservados, outros foram esquecidos ou, mesmo, substituídos pelos costumes da comunidade urbana (Figura 3).
Impactos ambientais
Entre os impactos ambientais, sociais, culturais e econômicos que ocorreram, destacam-se: aumento de residências de alvenaria na aldeia (Warekena); desmatamento com a derrubada da floresta pelos madeireiros (Baníwa); surgimentos de pastagens para a pecuária e abertura de áreas para agricultura, perda da cultura, influência política causando desintegração do povo, entrada e intervenção das religiões (católica e evangélica) causando conflitos com a cultura local, abandono dos rituais (como as danças tradicionais e língua materna), desigualdade social, desemprego, falta de recursos materiais, entrada de produtos industrializados (causando doenças nos indígenas) (Terena); pouca biodiversidade, como peixes e a caça, imigração das famílias para a cidade, desmatamento e queimadas resultando na mudança do clima, como o aumento das temperaturas (Tariána); o maior impacto está refletido na tradição da caça e pesca que diminuiu muito nos últimos anos; falta de oportunidades de indígenas no mercado de trabalho (Arapáso) e; diminuição de chuvas que afeta a agricultura e consequentemente a produção de alimentos (Atikum e Xocuru).
Características ecológicas, culturais, sociais e econômicas das comunidades
O quadro 1demonstra as características ecológicas, culturais, sociais e econômicas das comunidades na concepção dos acadêmicos. Há biodiversidade existente nas comunidades, passando do cerrado e da caatinga de Pernambuco e do cerrado e do pantanal de Mato Grosso do Sul para a exuberância e diversidade do bioma da floresta amazônica. Na região de Pernambuco, onde as chuvas são mal distribuídas em grande parte na região, as comunidades Atikum-Umã e Xucuru de Ororubá tem como principal desafio o combate a seca, comprometendo a biodiversidade e a agricultura.
O trabalho é dividido entre homens e mulheres, não apresenta conflitos nas relações de gênero. A maioria vive da agricultura de subsistência com a venda do excedente, aliado ao artesanato, extrativismo, pesca e caça. O trabalho nas fazendas da região e na cidade é uma atividade comum entre os Terena. Os indígenas não tem a preocupação de acumular excedentes, preocupando-se como ter o suficiente para viver, quanto sua alimentação e saúde. Denota-se a predominância das religiões católica e evangélica frente aos rituais indígenas em quase todas as comunidades. O modelo de vida é comunitário com ênfase na partilha.
Políticas públicas e organizações sociais e/ou organizações de apoio às comunidades
Quanto a políticas públicas implementadas nas comunidades, algumas ações são resultantes de programas e projetos de Prefeituras, Organizações não Governamentais (ONGs) e órgãos estaduais e federais, como Programa Casa Popular, relacionados a cestas básicas, postos de saúde, saneamento, escolas indígenas, etc.
Embora haja investimentos na infraestrutura das comunidades, poucas políticas são voltadas a valorização e preservação da cultura e tradições, como o uso de plantas medicinais, como preconiza a OMS e a OIT.
As organizações sociais e/ou instituições que apoiam às comunidades, segundo os indígenas, na maioria são órgãos e instituições como ONGs, Igrejas, Prefeituras e Estado, entre os quais: Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), Conselho Indigenista Missionário, Universidades, Embrapa, Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN); Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP) e outros.
Bem viver na perspectiva dos acadêmicos indígenas
A partir da compreensão de que o tema do Bem Viver sugere relação simétrica entre homem e natureza e solidariedade entre os indivíduos, a não prática a acumulação de excedentes, cada ator social pesquisado relatou como percebe o Bem Viver em sua comunidade.
O conceito do bem viver desde os diferentes povos originários vai se complementando com as experiências próprias de cada comunidade. Para os povos indígenas da Amazônia, agrupados na “Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica (COICA)”, referindo-se ao conceito do bem viver, falam em "Voltar à Maloca"3.
A Agenda Indígena Amazônica assinala que "voltar à maloca” ê retornar até nós mesmos, ê valorizar mais o saber ancestral, a relação harmoniosa com o meio. É sentir prazer na dança que abraça o corpo e o espírito, é proteger nossas sabedorias, tecnologias e locais sagrados. É sentir que a maloca esta dentro de cada filho do sol, do vento, das aguas, das rochas, das árvores, das estrelas e do universo. É não ser um ser individual mais coletivo, vivendo em tempo circular do grande retorno, onde o futuro está por trás; é o futuro, o presente e o passado na frente de você, com as lições individuais e coletivas no processo de vida imemorial (Mamani, 2010, 45).
Este conceito é reforçado pelos estudantes das comunidades do Amazonas Tariana e Baníwa. Para eles, o Bem Viver está presente na cosmologia indígena, onde a terra é vista como patrimônio comum, resultando na preservação dos saberes tradicionais, cultura e nas relações com o outro e o meio. A língua nativa, considerada patrimônio da comunidade, é conhecida pela maioria somente na fala e não na escrita. Do total de entrevistados, somente um consegue escrever na língua nativa.
Pelo fato de haver essa interação entre os grupos e ao respeito com o outro... tanto nas artes, na dança, música, vestimentas tradicionais, no todo (Tariana).
Nessa comunidade ainda existe todos: valorização de culturas, rituais, etc. Também os mais velhos sempre repassa o conhecimento mais avançados para novas geração. O objetivo para não esquecer a nossa convivência; e precisa melhorar na área da saúde e educação (Baníwa)4
As etnias Warekena e Xucuru do Ororubá apontam como indicadores do Bem Viver a solidariedade, respeito ao próximo e a natureza, preservação da cultura e dos saberes como sendo fatores fundamentais para sua promoção. Ao mesmo tempo, entendem que questões como saúde, segurança e educação são fundamentais para manter a comunidade unida e solidária.
Por que o povo respeita o seu próximo e cuida do meio ambiente que fazem parte do seu dia-a-dia, também respeita o limite do seu vizinho, ajuda no trabalho e na experiência, e vive em harmonia com seu próximo e com a natureza (Warekena).
Na comunidade todos trabalham de forma conjunta, estão sempre ajudando uns aos outros, estabelecem relações harmoniosas, onde o respeito pelo outro e pelas diferenças prevalecem. O Cacique está sempre em busca de melhores condições (saúde, segurança, educação), fazendo com que, todas sintam o prazer de continuarem lutando pelos seus direitos e deveres de forma conjunta (Xocuru do Ororubá).
A etnia Terena da Aldeia do Bananal e de Cachoerinha do Estado do Mato Grosso do Sul, entendem que o Bem Viver se dá na preservação dos saberes e da cultura; principalmente por meio da medicina tradicional e na preservação das danças, rituais e na convivência.
O Bem Viver da comunidade está na forma durante o cultivo de plantas, diálogos dos anciões, prática da caça e pesca e trocam do produto agrícola com outra família. Festividade cultural e esporte praticado. Formulação de remédios caseiros feitos pelos Pajés. Trabalhos feitos na
Claro. Quando falamos em comunidade um povo que vive em sua reserva, ela tem o seu modo de viver, onde todos se conhecem, vivencia no dia-a-dia, juntamente com o outro, onde a solidariedade está presente no modo de viver daquele determinado povo (Terena- Aldeia Bananal).
Por mais que a nossa cultura foi devastada e imposta outras coisas, ainda existe um pouco, pois resiste-se aos impactos que o contato com os não índios trouxe. Como por exemplo, as danças, crenças em espiritualidade, artesanatos, música e a convivência harmônica com o meio ambiente e com a comunidade (Terena-Aldeia Cachoeirinha).
Um dos entrevistados recorda que a prática do conceito do Bem Viver nem sempre está presente na comunidade, como por exemplo na preservação da língua e cultura.
Não constantemente, na minha opinião esporadicamente, pois a própria comunidade tem se retraído em ações e apoio, mas ao mesmo tempo tem pequenas preparações no avanço interno, graças ao jovem e a comunidade escolar, vem tentando resgatar ações para um Bem Viver, dentro deles. A Diretoria escolar tem proporcionado ao jovem estudante aulas da própria língua materna como disciplina atuante no currículo escolar (Terena-Aldeia Cachoeirinha).
Para os Arapáso, o bem Viver está presente na solidariedade e na vida em comunidade: “A comunidade indígena sempre preza pelo bem de todos na comunidade” (Arapáso, comunidade Ilha de Duraka). Na etnia dos Atikum, o Bem Viver está presente na relações entre a comunidade e natureza:
Na minha aldeia temos o costume de respeito com os mais velhos, ter harmonia com todos, temos grande respeito pela mãe natureza. Sim, considero que está presente no nosso dia a dia, na nossa lida de trabalho.
Para os entrevistados, o conceito subjetivo do Bem Viver está presente nas comunidades indígenas e, apesar das diferentes expressões, concebem o conceito por meio de indicadores como: convivência harmoniosa com a natureza e com a comunidade, respeito aos anciãos, resgate dos saberes, tradições, educação, segurança, espiritualidade, solidariedade, baseados na cosmovisão de cada etnia. Para Mamani (2010), este é o caminho e o horizonte das comunidades, o que sugere relação, (con)vivência e saber viver.
Considerações finais: (re)aprender e (re)construir
A colonização representou para os povos indígenas princípios de exclusão e desintegração socioeconômica e, por consequência, ambiental, associado a destruição das florestas, biodiversidade, mudanças climáticas, e destruição de culturas milenares (PBMC 2012). Neste processo, indígenas migraram para as cidades em busca de progresso e perspectivas de viver melhor, ocasionando um acelerado crescimento nas zonas periféricas, problemas na educação, moradia, trabalho e aumento da desigualdade social, que não levou a uma experiência plena do Bem Viver.
Para Mamani, (2010, 32) “Viver melhor significa o progresso ilimitado, o consumo inconsciente; incita a acumulação material e induz a competência”. Ou seja, o modelo existente é altamente extrativista e modernista, baseado em uma lógica burocrática e tecnocrática.
De outro lado, o Bem Viver remete ao conceito da biopolítica de Foucault, como terreno das lutas, das resistências produtivas frente às tentativas do biopoder de modular e neutralizar as redes de cooperação (Negri 2003). De um lado, a biopolítica vista como a maneira pela qual a partir do século XVIII se tentou agrupar e estudar desde a prática governamental, os fenômenos próprios de um conjunto de seres vivos organizados sob o rótulo de população, quer dizer, saúde, higiene, raça, mortalidade, entre outros; de outro, o biopoder como a gestão da vida como um todo, técnicas de poder sobre o biológico, tema central nas discussões políticas, importante para o desenvolvimento do capitalismo, ao controlar a população e adequá-la aos processos econômicos. Neste sentido, Foucault (2008) acredita que se faz necessário uma teoria crítica sobre o que somos e os modos alternativos de nos reconfigurarmos frente as matrizes de individualização dominantes.
Seguindo esta lógica, há vários desafios, como a de primar por um abordagem que valorize o território compreendido como espaço socialmente construído, segundo seus usos e costumes, saberes, tradições e língua. Manutenção da soberania alimentar (base da autonomia dos povos indígenas), resgatando variedades de sementes e plantas medicinais. Frente ao potencial hídrico da Amazônia, recuperar e proteger nascentes de água, resgatar a identidade e interculturalidade na diversidade; respeito aos rituais e espiritualidade e, a convivência da solidariedade, primando por uma política que projete a interação dos povos.
Neste estudo, sugere-se que uma proposta em comum entre os indígenas é conceber o Bem Viver como uma utopia baseada em relações de convivência entre os seres humanos e a natureza. Esta proposta marca a perspectiva da corrente indigenista/pachamamista que aspira recriar condições harmônicas dos povos originários baseadas em sistema socioeconômico de comunismo primitivo e economia equitativa e mutualista.
Levantou-se que algumas expressões do Bem Viver, estão presentes na vida das comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul, Pernambuco e Amazonas. Ou seja, estas comunidades, com sabedoria milenar, expressam o Bem Viver pela cosmovisão como forma de resistência, por meio de suas práticas alternativas, em sua compreensão de economia e comunidade, na prática cotidiana de respeito, harmonia e equilíbrio como o meio, e na compreensão de que a vida está interconectada e inter-relacionada.
Apesar do eminente processo de integração indígena ao capitalismo, o Bem Viver na concepção dos estudantes entrevistados, não divide o conceito do bem-estar desenvolvimentista, da acumulação, da produção e do consumo ilimitados. Mas aposta em construir uma ordem socioeconômica sobre a base daquilo que é suficiente para que as comunidades indígenas possam viver. Nestes termos, o Bem Viver rompe com a lógica antropocêntrica e instrumental e defende uma perspectiva biocêntrica que restitui a ligação real entre seres humanos e natureza, considerada como uma condição necessária a sua própria sobrevivência.
Ao mesmo tempo, a educação universitária, como intermediária e mediadora entre as políticas educativas do Estado e a sociedade, tem função fundamental no projeto de descolonização. Assim como a perspectiva intercultural, aplicada a educação e as ciências humanas, refere-se à interação e às relações entre culturas, na compreensão do mundo. Nesta perspectiva, a educação deve representar um papel de transmissora de valores para futuros projetos de sociedades viáveis que garantam a dignidade dos povos originários.
Os princípios do Bem Viver, expressos pelos acadêmicos oriundos de comunidades indígenas sugerem repensar valores e práticas de culturas contemporâneas, como: reciprocidade entre pessoas, convivência com outros seres da natureza e profundo respeito pela terra. Estas experiências ecossocioeconômicas podem orientar nossas escolhas futuras e assegurar a existência humana no planeta.
No debate acadêmico aqui apresentado, sobre os conflitos e desafios do Bem Viver, conclui-se que é necessário considerar as dimensões políticas, econômicas e sociais que orientam as agendas de desenvolvimento tanto do governo como dos movimentos sociais representadas pelas comunidades indígenas. Ou seja, espera-se neste artigo deslocar o debate das questões epistemológicas sobre o tema a partir do continunn entre conhecimentos tácito e explícito5para pensar a natureza e o homem de forma ontológica e contextualizada no território.
E que se multipliquem as oportunidades propícias de uma “vida boa” segundo a maneira com que cada pessoa e cultura defina no que consiste um Bem Viver, no pressuposto de torná-lo possível, restringindo o progresso econômico ilimitado, reconstruindo sua gênese baseada em uma cosmovisão que prime acima de tudo, pela manutenção da vida.