1. Introdução
O Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV, sigla em inglês) e a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids, sigla em inglês) são dois conceitos que estão intimamente ligados, mas que possuem significados diferentes. Se por um lado, o HIV representa unicamente o vírus responsável por infectar os humanos, por outro, a Aids é a síndrome que pode ser desencadeada por esse agente etiológico em pessoas que não estão em terapia antirretroviral (TARV) efetiva, isto é, de acordo com os critérios de definição de caso (CDC adaptado), indivíduos que estão ou não em TARV e apresentam doença indicativa de Aids e/ou baixa contagem de linfócitos T CD4+ (Rachid e Schechter, 2017).
O HIV é um retrovírus que possui como célula hospedeira os linfócitos T CD4+, responsáveis pela modulação imunológica e pela resposta imune adaptativa. O retrovírus adentra os linfócitos através da interação com proteínas da membrana no interior da célula e causa assim uma disfunção que leva a redução da contagem de linfócitos T CD4+. Essa redução causa uma disfunção do sistema imune, aumentando a suscetibilidade às infecções oportunistas, configurando assim um caso de Aids (Menezes, Almeida, Nascimento, Dias e Nascimento, 2018, p. 1225-1232).
A contaminação pelo HIV leva, em média, de 2 a 4 semanas para expressar os sintomas, os quais duram por volta de 2 semanas. Os sintomas mais comuns nesse período são febre, cefaleia, mialgias, adenomegalias, exantema morbiliforme no tronco e nos membros superiores e enantema palatino. Depois dessa primeira etapa de sintomas, o vírus se torna latente no corpo do paciente, e a maioria não manifesta quaisquer sintomas. Só então que a doença inicia sua fase mais avançada, em que existe a manifestação de infecções / doenças oportunistas (Trigo e Costa, 2013, p. 371-4), as quais podem levar o paciente, que está imunossuprimido, a óbito.
Os primeiros relatos de caso de Aids foram retratados no início da década de 80 nos Estados Unidos, onde descreveu-se inúmeros casos de Sarcoma de Kaposi entre grupos de homossexuais. Posteriormente, casos foram relatados em pacientes hemofílicos, pessoas que faziam uso de substâncias injetáveis, homens e mulheres heterossexuais. Ainda na década de 80, o HIV foi isolado e relacionado à Aids, ampliando assim o conhecimento sobre a síndrome (Piot e Quinn, 2013, p. 2210-8). A partir disso, estudos concluíram que a transmissão do HIV pode ocorrer através de relações sexuais, inoculação de sangue e transmissão materno-fetal, sendo as relações sexuais sem preservativo a principal forma de transmissão (Menezes et al., 2018, p. 1225-1232).
Observou-se que, no início dos anos 1990, houve uma mudança no perfil epidemiológico do HIV no Brasil, encaminhando-se para a heterossexualização, feminização, pauperização (aumento do número de casos de infecção por HIV em indivíduos com menor escolaridade) e interiorização (Schuelter-Trevisol, Pucci, Justino, Pucci e Silva, 2010, 87-94). Além disso, também foi observada redução da taxa de incidência de Aids nas faixas etárias mais jovens, com estabilização nas demais idades (Lazarini, Melchior, González e Matsuo, 2012, p. 960-8). E foi constatado um aumento importante no número de infectados pelo HIV com mais de 50 anos entre 2007 e 2015, aumentando de 557 para 3.561 casos nesse período (Menezes et al., 2018, p. 1225-1232).
A epidemia de HIV e Aids representa um dos problemas mais graves de saúde pública da atualidade, diariamente mais de 7 mil pessoas são infectadas pelo HIV, além do fato de a Aids ser a quinta causa mais comum de morte entre adultos (Castro et al., 2018, p. 427-35). Pondera-se que cerca de 60 % das pessoas vivendo com HIV no mundo estão na África Subsaariana, dentre essas, 48 % são mulheres (Martins, Kerr, Kendall e Mota,2014).
No Brasil, estima-se que há cerca de 718 mil pessoas vivendo com HIV e apenas 83 % conhecem seu diagnóstico, sendo que 56 % estão em TARV e somente 46 % possuem carga viral indetectável (Guimarães, Carneiro, Abreu e França, 2017, p. 182-90). As estatísticas epidemiológicas do Brasil estão distantes da meta do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV e Aids (UNAIDS) que propõe que até 2030 tenham 90 % dos casos de HIV diagnosticados, destes, 90 % em terapia e destes, 90 % com carga viral indetectável (Joint United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAIDS] 2014).
Apesar de a TARV ser disponibilizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 1996, os casos de HIV e Aids continuam crescendo no país, sendo a Região Sudeste uma das mais afetadas (Ferreira, Drumond, Siviero, Heck e Machado, 2011, p. 19-25). Tais dados epidemiológicos evidenciam a necessidade de estudos voltados à compreensão do HIV e da Aids no Brasil, para que se possa melhorar as políticas públicas, pensar em métodos de reduzir o contágio, aumentar a detecção das pessoas contaminadas e ampliar a adesão dos pacientes à TARV, além de proporcionar uma melhor qualidade de vida para os portadores do vírus.
Diante disso, este estudo tem por objetivo realizar um levantamento de dados buscando descrever o perfil epidemiológico de pacientes vivendo com Aids na Região Sudeste do Brasil.
2. Método
Trata-se de um estudo epidemiológico descritivo, de caráter quantitativo, acerca dos casos notificados de Aids na Região Sudeste do Brasil. Os dados epidemiológicos foram obtidos do Sistema de Informações de Agravos de Notificações (SINAN), acessados por meio do TABNET. A análise restringiu-se ao período de janeiro de 2010 a junho de 2019 e os dados foram colhidos no período de julho de 2020.
A região avaliada é a mais populosa do país com 80.353.724 habitantes e também a mais povoada, com densidade demográfica de 86.92 hab/km², conforme os dados do censo demográfico de 2010 publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE], 2012).
Como a Aids é de notificação obrigatória, incluíram-se nesse estudo somente os casos notificados ao Ministério da Saúde que se enquadraram nos critérios de notificação presentes na ficha de notificação compulsória. Os critérios adotados pelo Ministério da Saúde do Brasil para definição de caso de Aids em indivíduos com treze anos de idade ou mais para fins de vigilância epidemiológica são o Critério Rio de Janeiro/Caracas e o Critério CDC adaptado, além do Critério Excepcional de Óbito (Ministério da Saúde, 2003). Pelo critério Rio de Janeiro/Caracas, considera-se caso de Aids aquele que possui dois testes de triagem reagentes ou um confirmatório para detecção de anticorpos anti-HIV e um somatório de pelo menos dez pontos, de acordo com uma escala de sinais, sintomas ou doenças. O Critério CDC adaptado considera como caso de Aids aquele em que, tem-se dois testes de triagem reagentes ou um confirmatório para detecção de anticorpos anti-HIV e uma evidência de imunodeficiência, a qual pode ser o diagnóstico de pelo menos uma doença indicativa de aids e/ou contagem de linfócitos T CD4+ ¬menor que 350 células/mm3. O Critério Excepcional de Óbito, por sua vez, considera como um caso de Aids, aquele em que tem-se uma menção a aids/sida (ou termos equivalentes) ou menção à infecção pelo HIV e a doenças associadas em algum dos campos da Declaração de Óbito, além de Investigação epidemiológica inconclusiva (Ministério da Saúde, 2003).
As variáveis analisadas foram: Sexo (masculino; feminino; branco]; Raça/Cor (branca; preta; amarela; parda; indígena; ignorada]; Faixa Etária (categorizada]; Categoria de Exposição (homossexual; bissexual; heterossexual; uso de drogas injetáveis; hemofílico; transfusão; acidente material biológico; transmissão vertical; ignorado] e Escolaridade (analfabeto; 1ª a 4ª série incompleta; 4ª série completa; 5ª a 8ª série incompleta; fundamental completo; médio incompleto; médio completo; superior incompleto; superior completo; não se aplica; omissos].
Utilizou-se a estatística descritiva para análise das variáveis, as quais foram apresentadas por número brutos, medidas de frequência e de tendência central. A incidência dos casos de Aids na Região Sudeste foi calculada utilizando o número de casos/ pela população x 100 mil habitantes, segundo as Projeções da População do Brasil e Unidades da Federação por sexo e idade: 2010-2060, divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018). O software utilizado para análise, processamento e tabulação dos dados foi o Microsoft Excel versão 15.0 (Office 2013).
Por tratar-se de uma pesquisa realizada em bancos de dados secundários, não foram utilizados dados nominais ou que permitam a identificação do paciente. Portanto, em conformidade com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde n° 510 de 7 de abril de 2016 (Resolução n. 510, 2016, p. 44-46), não foi necessária a submissão de projeto ao Comitê de Ética e Pesquisa, o que justifica ausência de um parecer do mesmo.
3. Resultados
A análise de dados do SINAN, coletados entre 1 de janeiro de 2010 e 30 de junho de 2019, mostra que nesse período foram notificados 99.020 novos casos de Aids na Região Sudeste. A taxa de incidência (TI) de Aids passou de 9,48 casos/100 mil habitantes em 2010 para 10,38 casos/100 mil habitantes em 2018. Nesse período, o ano de 2017 apresentou a maior prevalência da doença, com 11.854 novos casos. Além disso, observa-se uma tendência de crescimento entre 2010 e 2014 e uma tendência decrescente da taxa de incidência nos últimos anos, a incidência do ano de 2019, consolidada até o mês de junho, foi de 4,72 casos/100 mil habitantes (Figura 1).
A análise temporal da taxa de incidência de novos casos de Aids ao longo dos anos evidencia as TI do estado do Rio de Janeiro como sendo as mais altas da Região Sudeste, com uma taxa média de incidência de 12,96 casos/100 mil habitantes e 21.683 casos registrado, o que representa 21,90 % de todos os novos casos registrados na Região Sudeste nesse período. Em contrapartida, Minas Gerais foi o estado que registrou a menor incidência de novos casos da região nos últimos 10 anos, com 17.565 novos casos. Apesar da TI na região sudeste ter aumentado, esse acréscimo ocorreu apenas nos estados de São Paulo e Minas Gerais, já nos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo houve uma queda nessa taxa entre os anos de 2010 e 2018 (Figura 2).
Dentre os casos registrados nesse período, houve um predomínio de indivíduos do sexo masculino, já que tiveram 70.450 casos do sexo masculino e 28.568 do sexo feminino, representando 71,1 % e 28,9 % respectivamente. Foi observado também um aumento relativo da incidência entre homens (de 67,2 % dos casos em 2010 para 74,7 % em 2019) e uma redução percentual nos casos representados por mulheres (de 32,7 % dos casos em 2010 para 25,2 % em 2019) nos últimos 10 anos. Além disso, os dados analisados demonstraram que houve prevalência de casos na faixa etária de jovens e adultos, de 20 a 49 anos, sendo que eles representaram 78.600 casos. Entre esses indivíduos, houve um aumento relativo dos casos entre 20-34 anos (de 36,9 % dos casos em 2010 para 42,5 % em 2019) e uma queda percentual dos casos entre 35-49 anos (de 42,4 % dos casos em 2010 para 36,1 % em 2019). Já pessoas com 80 anos ou mais apresentaram a menor quantidade de casos, com 119 novos casos no período analisado.
Os dados demonstraram que a ocorrência de casos foi maior em pessoas de cor branca, somando um total de 46.208 casos nos últimos 10 anos, representando 46,67 % do total registrado. Porém, percentualmente, a incidência entre brancos tem decrescido (de 50,4 % dos casos em 2010 para 43,6 % em 2019), enquanto aumenta entre outras etnias, principalmente entre os pardos (que em 2010 representavam 27,0 % dos casos e, em 2019, 35,9 %) (Tabela 1). Além disso, conclui-se que, em relação à escolaridade das pessoas diagnosticadas com Aids no período analisado, aquelas com ensino médio completo representam o maior número de casos, com 19.517 novos casos, enquanto o menor número se aplica à categoria analfabeto, com 1.152 novos casos no período e região analisados (Tabela 2).
Variáveis | Número de casos (n) | Frequência relativa (%) |
Sexo | - | - |
Masculino | 70.450 | 71,15 |
Feminino | 28.568 | 28,85 |
Branco | 2 | 0,00 |
Raça/cor | - | - |
Branca | 46.208 | 46,67 |
Preta | 12.003 | 12,12 |
Amarela | 511 | 0,52 |
Parda | 31.533 | 31,85 |
Indígena | 180 | 0,18 |
Ignorada | 8.585 | 8,67 |
Faixa Etária | - | - |
< 15 anos | 875 | 0,88 |
15 a 19 anos | 2.102 | 2,12 |
20 a 34 anos | 40.058 | 40,45 |
35 a 49 anos | 38.542 | 38,92 |
50 a 64 anos | 15.183 | 15,33 |
65 a 79 anos | 2.140 | 2,16 |
80 anos | 119 | 0,12 |
Ignorado | 1 | 0,00 |
Total (por variável) | 99.020 | 100% |
Fonte:elaboração própria, 2021.
Varáveis | Número de casos (n) | Frequência relativa (%) |
Categoria de Exposição | - | - |
Homossexual | 24.957 | 25,20 |
Bissexual | 5.891 | 5,95 |
Heterossexual | 46.478 | 46,94 |
Uso de Drogas Injetáveis | 3.051 | 3,08 |
Hemofílico | 16 | 0,02 |
Transfusão | 19 | 0,02 |
Acidente Material Biológico | 4 | 0,00 |
Transmissão Vertical | 1.316 | 1,33 |
Ignorado | 17.288 | 17,46 |
Escolaridade | - | - |
Analfabeto | 1.152 | 1,16 |
1ª a 4º série incompleta | 5.499 | 5,55 |
4ª série completa | 4.446 | 4,49 |
5ª a 8ª série incompleta | 12.246 | 12,37 |
Fundamental completo | 9.322 | 9,41 |
Médio incompleto | 6.145 | 6,21 |
Médio completo | 19.517 | 19,71 |
Superior incompleto | 4.556 | 4,60 |
Superior completo | 9.118 | 9,21 |
Não se aplica | 563 | 0,57 |
Omissos | 26.456 | 26,72 |
Total (por variável) | 99.020 | 100% |
Fonte:elaboração própria, 2021.
Em relação à categoria de exposição, os dados mostram que a principal forma de contaminação é por via sexual. Os heterossexuais foram os mais atingidos, com 46.478 novos casos nos últimos 10 anos, e os bissexuais foram os menos atingidos, com 5.891 casos. Porém, percentualmente, a incidência entre homossexuais vem se tornando cada vez mais significativa (de 18,5 % dos casos em 2010 para 30,4 % em 2019), enquanto ocorre um decréscimo relativo nos casos entre heterossexuais (de 52,5 % dos casos em 2010 para 42,3 % em 2019). Além disso, a forma de transmissão com menor taxa de casos foi por acidentes com material biológico, com apenas 4 casos no período analisado. Foram observadas também pequenas oscilações nos casos relacionados à transmissão vertical (que variaram entre 1,25 % e 1,57 %) nos últimos 10 anos (Figura 4).
4. Discussão
Os resultados do presente estudo mostraram que a taxa de incidência de Aids na Região Sudeste sofreu aumento entre 2010 e 2014 e decréscimo entre 2015 e 2019, com um pico no ano de 2017. Esses dados assemelham-se ao que é apresentado pelo Boletim Epidemiológico HIV/Aids de 2019 desenvolvido pelo Ministério da Saúde (Ministério da Saúde, 2019), que registra uma queda nos casos no Brasil desde 2013. Segundo esse documento, Sudeste e Sul são as regiões brasileiras com maior concentração de casos de Aids (51,3 % e 19,9 %, respectivamente).
Em relação aos estados abordados pelo estudo, observou-se que a TI entre os anos de 2010 e 2019 cresceu em Minas Gerais e São Paulo e caiu no Rio de Janeiro e Espírito Santo. Apesar disso, o Rio de Janeiro tem as maiores taxas, sendo seguido pelo estado de São Paulo, enquanto Minas Gerais registrou a menor incidência. Segundo Brito, Castilho e Szwarcwald (2001, p. 201-17), o início da disseminação de Aids no Brasil deu-se a partir do eixo Rio-São Paulo, seguindo, então, em direção às demais regiões, inicialmente chegando nas grandes metrópoles e, algum tempo depois, disseminando-se nas pequenas cidades. Nesse sentido, é possível pensar que os achados do presente estudo se explicam, em partes, pelo histórico da dispersão da epidemia no Brasil.
As tendências de feminização da epidemia, notadas até o final da década de 1990, em que os valores da razão de sexo passaram de 24:1, em 1985 para 2:1 em 1997 (Brito et al., 2001, p. 207-17) não foram observadas no período avaliado no presente estudo. Observou-se, pelo contrário, uma redução percentual no número de casos em mulheres e um aumento relativo dos casos de Aids em homens na Região Sudeste nos últimos 10 anos, os quais permanecem como grupo mais prevalente com 71,15 % dos casos em comparação com as mulheres com 28,15 %. Tais resultados são concordantes com os dados da literatura (Castro, Scatena, Miranzi, Neto e Nunes, 2020) e do Boletim Epidemiológico HIV/Aids de 2019 (Ministério da Saúde, 2019), no qual foi observado em todas as regiões brasileiras um predomínio masculino, contudo, a razão de sexo apresenta diferenças regionais importantes, sendo a da Região Sudeste mais alta que a média brasileira. Nesse contexto, em um estudo qualitativo conduzido em São Paulo (Guerriero, Ayres e Hearst, 2002, p. 50-60), verificou-se que representações de gênero relacionados ao masculino associam-se a comportamentos mais arriscados e menores percepções de risco, o que podem colocá-los em maior vulnerabilidade à infecção pelo HIV, contribuindo, assim, para o cenário de prevalência masculina.
No período avaliado, a transmissão via sexual predominou, com 78,09 % dos casos, seguida da transmissão sanguínea por uso de drogas injetáveis, o que está de acordo com a literatura científica (Ministério da Saúde, 2019; Brito et al., 2001, p. 207-17; Castro et al., 2020). Apesar de a categoria de exposição heterossexual ter sido a mais prevalente, representando 46,94 % dos casos, houve um aumento relativo na participação dos homossexuais e uma redução da participação da categoria heterossexual nos últimos 10 anos, tendência também observada em estudo conduzido por Grangeiro, Castanheira e Nemes (2015, p. 7-8). A diminuição no percentual de casos entre os heterossexuais pode ser explicada pela redução na proporção de mulheres infectadas, cuja via de transmissão é predominantemente heterossexual (Ministério da Saúde, 2019). Apesar da diminuição da participação das mulheres na epidemia, a proporção de casos via transmissão vertical sofreu pequenas oscilações. Ressalta-se ainda que 17,46 % dos casos na categoria de exposição são ignorados, o que traz limitações às análises dos dados.
Esse quadro de aumento percentual dos casos em homossexuais contraria a tendência de heterossexualização observada nos anos seguintes à instalação da epidemia de Aids no Brasil (Brito et al., 2001, p. 207-17). Apesar disso, está em conformidade com dados do Ministério da Saúde (Ministério da Saúde, 2019), nos quais a região Sudeste foi a que apresentou o maior predomínio da categoria de exposição homo/bissexual. Além disso, estudos epidemiológicos (Kerr et al., 2013, 427-35; Brignol, Kerr, Amorim e Dourado, 2016, p. 256-71) demonstram que homens que fazem sexo com homens têm maior prevalência de HIV do que outras populações vulneráveis, sendo a alta probabilidade de transmissões em relações sexuais anais receptivas e os contextos socioculturais e político-institucionais desfavoráveis apontados como fatores importantes para tal conjuntura (Brignol et al. 2016, p. 256-71; Bevrer et al., 2012, 367-77). Há que se considerar, ainda, que a via de transmissão heterossexual é, em números brutos, a predominante e constitui um importante aspecto da epidemia na atualidade. Entretanto, a heterossexualidade masculina é associada a percepções de risco menores, além de ser um grupo esquecido em políticas de intervenção e prevenção em saúde (Leal, Knauth e Couto, 2015, p. 143-55).
No que se refere a faixa etária, verificou-se um predomínio nas categorias de 20-34 anos, com 40,45 % dos casos e 35-49 anos, com 38,92 % dos casos, informação compatível com os dados epidemiológicos da população brasileira (Ministério da Saúde, 2019) e que têm sido observada desde o início da epidemia de Aids no Brasil (Brito et al., 2001, p. 207-17). Tal cenário relaciona-se com o comportamento sexual da população, em que 89 % da população sexualmente ativa situa-se entre 20-40 anos (Brasil, 2000). Entre os adultos, foi observado um pequeno aumento percentual dos casos entre 20-34 anos e uma redução dos casos entre 35-49 anos.
Em relação aos fatores socioeconômicos, muitos estudos indicam uma tendência à pauperização da epidemia, ou seja, sua disseminação entre as camadas socioeconomicamente mais vulneráveis da população (Fry et al., 2007, p. 497-507). Nessa análise, geralmente são consideradas duas variáveis: raça/cor e escolaridade. Os resultados do presente estudo são favoráveis a essa tendência, já que mostraram que, apesar de a ocorrência maior dos casos ainda ser em pessoas brancas (46,67 % do total dos últimos 10 anos), percentualmente, essa incidência vem caindo, enquanto aumenta entre outras etnias, particularmente entre os pardos.
No entanto, contrariando essa hipótese, ao analisar os resultados obtidos em relação à escolaridade, percebe-se que a tendência temporal aponta para um aumento da incidência entre pessoas com formação média ou superior (do início do Ensino Médio ao fim do Ensino Superior). Segundo Fry, Monteiro, Maio, Bastos e Santos (2007, p. 497-507), embora nas décadas de 1980 e 1990 a epidemia da Aids tenha passado por grandes transformações epidemiológicas, incluindo sua disseminação entre as camadas mais vulneráveis da sociedade, dados mais recentes indicam uma certa inversão da pauperização. Inclusive, dados do Ministério da Saúde (Ministério da Saúde, 2019) mostram o aumento dos casos nas populações com maior escolaridade e entre indivíduos pardos. Isso demonstra que os achados do presente estudo são de extrema relevância, uma vez que as atuais políticas de conscientização promovidas pelo governo têm maior enfoque na população negra e de baixa formação (Fry et al., 2007, p. 497-507).
Diante desses resultados, faz-se necessário destacar que os dados apresentados neste estudo se referem aos casos de Aids que preencheram os critérios de notificação. Tal fato é uma limitação presente nos estudos relacionados à obtenção de dados secundários na plataforma do SINAN, uma vez que o sistema não possui mecanismos específicos para notificação dos casos de HIV, dificultando assim estudos epidemiológicos precisos que orientem a criação de políticas públicas. Dessa forma, observa-se que as análises referentes à infecção pelo HIV são mais amplas e baseadas em estimativas (Brito et al., 2001, p. 207-17).
Ademais, tendo em vista que existe um período entre a infecção pelo vírus e os sintomas e sinais que caracterizam a síndrome da imunodeficiência adquirida, os resultados apresentados concernem a infecções pelo HIV que ocorreram anos antes da notificação, o que afeta a análise epidemiológica. Além disso, com os avanços da TARV, tem-se um cenário em que, progressivamente, cada vez menos pessoas se enquadram nos critérios para a notificação, o que também traz limitações. Outro fator restritivo foi o uso de uma base de dados secundários, de maneira que pode haver subnotificações e erros de preenchimento.
5. Conclusão
Conclui-se, portanto, que a região sudeste é a que tem maior concentração dos casos de Aids no Brasil, com destaque para os estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Há um perfil específico da população que é mais afetado: homens, brancos, heterossexuais, faixa etária entre 20 e 49 anos e com formação média ou superior. Contudo, também foi observado um aumento relativo da incidência entre homens homossexuais e entre os pardos, percepções relevantes para a orientação de futuras políticas públicas.
Por fim, tendo em vista a grande incidência dos casos de Aids na região Sudeste, bem como a gradual mudança percebida no perfil da população afetada por essa epidemia, é possível fazer algumas recomendações. Em primeiro lugar, é necessário que sejam realizadas mais pesquisas acerca dessa temática, para a melhor compreensão da evolução epidemiológica dos casos de Aids no Sudeste. Ademais, é preciso elaborar políticas governamentais condizentes com esses dados e novas tendências apontadas, de modo a melhor alcançar as populações mais vulneráveis à síndrome.