1. Introdução
As Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) têm influenciado fortemente o cotidiano da sociedade contemporânea, levando os indivíduos à realização de inúmeras atividades por intermédio do uso delas e fazendo com que estes modifiquem os seus próprios comportamentos. Reconhecemos, por sua vez, a questão da exclusão social como tema evidentemente crucial para os debates relacionados a essa era digital (Lévy, 1999), em especial se considerarmos a escassez de oportunidades e escolaridade de numerosa parte da população brasileira.
A utilização crescente de TDIC, nas distintas esferas da sociedade, viabiliza a produção e a recepção das mais variadas informações. No campo educacional, como é sabido, não seria diferente. As ações dessa esfera também têm sido profundamente afetadas por essas novas tecnologias (Moran, 2000; 2011; 2013), pois não é de hoje que as mudanças tecnológicas e culturais se tornaram temas a serem contemplados nas escolas, sejam estes tomados com o objetivo de aproximar ao contexto escolar as informações presentes na internet ou com o intuito de alavancar o próprio conhecimento dos artefatos tecnológicos. Restringindo-nos, por exemplo, à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2018), encontramos menções às TDIC, no sentido de que devem ser integradas às práticas docentes, possibilitando processos de ensino e de aprendizagem mais significativos, condizentes com a “realidade de interconectividade em que vivem os alunos” (Souza e Tamanini, 2019, p. 182).
Assim, cabe-nos discutir os desafios impostos à escola e aos professores frente a esta revolução digital que, no contexto instaurado pela Corona Virus Disease 2019 (COVID-19), tem ganhado considerável relevo. Isso significa dizer que, se na modalidade de ensino presencial a sala de aula já era requisitada como um espaço para o entendimento e uso crítico das TDIC, na modalidade de ensino remoto emergencial, é esperado que essas tecnologias se tornem, com ainda maior saliência, objetos de reflexão.
No Brasil, entretanto, alcançar e viabilizar as novas tecnologias digitais com fins pedagógicos avançados não é tarefa fácil, porque, como afirma Faraco (2012, p. 84), “entramos na era da imagem e do meio virtual multimidiático e hipertextual sem ter sequer universalizado o domínio do alfabeto e sem ter democratizado a mídia impressa”. Enquanto em um contexto regular assistimos à grande “desigualdade econômica, de acesso, de maturidade, de motivação das pessoas” (Moran, 2000, p. 70) freando, de alguma forma, o deslanchar do ensino com as novas mídias, desde os meses iniciais de circulação do coronavírus, temos visto o aumento dessas desigualdades e, mesmo assim, o uso desenfreado das TDIC. Teria havido a mínima preparação de professores e alunos para esse contato intenso com o ensino online? Ou ocorreu, por vezes, a transposição de uma aula presencial para o meio virtual?
Neste artigo, frente a essas considerações e analisando as estratégias e ações de professores da Educação Básica das redes de ensino da cidade de São Carlos, município localizado no estado de São Paulo (SP), Brasil, durante o período de isolamento social, destacamos os entraves, as condições e as tensões diante da única e necessária opção de usar as tecnologias sem preparo e em um contexto escolar em crise, no qual diferentes plataformas digitais passaram a ser uma solução viável para que crianças e jovens não perdessem o ano letivo e tentassem manter o vínculo com a escola. Assim, aqui, enfatizamos as demandas atuais perante esse isolamento e as práticas pedagógicas que, embora inseridas neste novo contexto pandêmico, os resultados indicam ter permanecido alinhadas a um modelo de ensino tradicional, o qual ainda persiste no tempo, caracterizado pela centralidade da instrução, pela função da escola como transmissora de conhecimento, pelo papel do professor como figura central e detentora de conhecimento e pela figura passiva do aluno (Oliveira, 2009).
Para a apresentação de tais reflexões e argumentos, baseamo-nos em resultados provenientes da pesquisa intitulada O trabalho docente em tempos de isolamento social: um estudo nas redes de ensino de São Carlos(1), realizada em 2020 pelos autores deste texto, professores-pesquisadores do Departamento de Metodologia de Ensino (DME), da Universidade Federal de São Carlos, SP, Brasil, e contextualizada na terceira seção. O objetivo do estudo foi mapear como se desenvolveu o trabalho docente de professores da Educação Básica, de diferentes áreas, nas redes municipal, estadual e particular de São Carlos/SP – Brasil, durante o período de isolamento social devido à pandemia da COVID-19.
Após esta introdução e algumas considerações teórico-metodológicas pertinentes à investigação em foco, analisamos o trabalho docente ocorrido no ano de 2020 no município de São Carlos/SP – Brasil, estabelecendo diálogos entre os resultados averiguados em nossa amostra e o que determinados autores sinalizam, sobretudo, sobre as tensões entre o ensino tradicional e o ensino mediado por TDIC, este que foi, e em alguns contextos continua sendo, a peça-chave para a continuação das atividades escolares. Por último, nas considerações finais, destacamos dois pontos a que chegamos com este estudo e, ainda, as reflexões que consideramos imprescindíveis daqui para frente.
Com este artigo, esperamos contribuir na formação de professores reflexivos, possibilitando-lhes analisar de modo crítico suas ações e práticas docentes no contexto atual. Os dados aqui obtidos podem proporcionar informações e discussões que tragam benefícios à área de Educação no que tange às necessidades de superação do paradigma tradicional de ensino e ao uso de TDIC no trabalho docente.
2. Marco teórico
Partimos, neste estudo, do pressuposto de que a forma como o professor compreende e interpreta a sua realidade – por exemplo, como ele enxerga as relações entre educação e sociedade, como ele compreende e articula os saberes da profissão docente, como ele vê a relação professor-aluno, dentre várias outras questões – é determinante para o trabalho docente que ele desenvolverá (Nóvoa, 1995; Sacristán, 1991; Tardif, 2014).
Segundo Nóvoa (2017, p. 1121), “nas profissões do humano há uma ligação forte entre as dimensões pessoais e as dimensões profissionais”. Para o autor,
(...) eis-nos de novo face à pessoa e ao profissional, ao ser e ao ensinar. Aqui estamos. Nós e a profissão. E as opções que cada um de nós tem de fazer como professor, as quais cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar e desvendam na nossa maneira de ensinar a nossa maneira de ser. É impossível separar o eu profissional do eu pessoal. (Nóvoa, 1995, p. 17, grifos do autor)
O professor, em especial, foi atropelado por novas demandas profissionais provenientes do contexto de restrições sanitárias, sem que tivesse podido refletir sobre sua identidade docente, suas ideologias e seus interesses. No que condiz à adoção de TDIC, ponto-chave da discussão presente neste artigo, como destaca Kenski (2003, pp. 48-49),
(...) é preciso que esse profissional tenha tempo e oportunidades de familiarização com as novas tecnologias educativas, suas possibilidades e seus limites, para que, na prática, faça escolhas conscientes sobre o uso das formas mais adequadas ao ensino de um determinado tipo de conhecimento, em um determinado nível de complexidade, para um grupo específico de alunos e no tempo disponível.
Os resultados da pesquisa indicam que não houve aos professores, nem aos alunos, ao serem inseridos de forma repentina em uma nova realidade de ensino, o remoto emergencial, tempo e oportunidade de familiarização com as TDIC, o que, acrescido de outras razões – discutidas nos resultados –, viabilizou a manutenção de práticas escolares conservadoras (Oliveira, 2009), mesmo em um contexto com forte potencial para o uso de tecnologias que oferecem oportunidades de ruptura com paradigmas tradicionais de ensino.
De forma mais ampla, o que faltou (e ainda falta) é uma política mais focada na formação de professores para atuarem com metodologias menos tradicionais, lidarem com recursos tecnológicos digitais com maior capacitação e poderem ser educadores críticos no contexto da educação digital.
Oliveira (2009) esclarece que ensino tradicional não está associado a um pensador ou a um período e que o termo foi empregado, por exemplo, no início da Escola Nova. Na ocasião, o processo de aprendizagem passou a se centrar nas necessidades das crianças, visando romper com aspectos tradicionais de ensino, dentre os quais, como já apontamos na introdução deste artigo, destacamos a centralidade da instrução, a função da escola de transmissão de conhecimento, o professor como figura central e detentora do conhecimento e o aluno como uma figura passiva (Oliveira, 2009).
Ampliando o nosso olhar a todas as atividades propostas pelos professores aos estudantes, percebemos que estas remetem ao ensino tradicional, ainda que a superação deste já esteja destacada em documentos nacionais atuais (Brasil, 2018) e em diversos autores, os quais incentivam metodologias de ensino alternativas ao ensino tradicional, centradas no uso de TDIC, na resolução de problemas, e não na centralidade de conteúdos.
Fazer uso das TDIC favorece a ruptura com o paradigma tradicional de ensino, propiciando um maior engajamento dos alunos e potencializando seu processo de aprendizagem crítica, quer no ensino presencial ou no ensino a distância. Assim, a manutenção do tradicional papel do professor como detentor do conhecimento que deve ser transmitido aos alunos, que permanecem de forma passiva o assimilando, contrasta com a era do conhecimento digital. No momento atual,
É preciso que o professor, antes de tudo, posicione-se não mais como o detentor do monopólio do saber, mas como um parceiro, um pedagogo, no sentido clássico do termo, que encaminhe e oriente o aluno diante das múltiplas possibilidades e formas de alcançar o conhecimento e de se relacionar com ele (Kenski, 2003, p. 46).
3. Metodologia
3.1 Enfoque
Tratamos, neste artigo, de uma pesquisa amparada tanto no paradigma quantitativo quanto no qualitativo – ou seja, possui uma abordagem mista. Trata-se de um survey, de caráter exploratório, descritivo e explicativo (Babbie, 1999), pois visou: explorar as diferentes formas como o trabalho acadêmico dos professores ocorreu durante o isolamento social; descrever esse trabalho em suas minúcias; e explicar as razões que levaram esses professores a atuar da forma como fizeram.
O desenho da pesquisa foi do tipo interseccional, pois a coleta de dados se deu em um único intervalo de tempo. A amostragem foi do tipo não probabilística e se deu por conveniência, ou seja, quando os sujeitos são escolhidos por estarem disponíveis para participar da pesquisa (Babbie, 1999).
3.2 Unidades de análise
O critério para inclusão dos sujeitos pesquisados foi ser professor, efetivo ou substituto, de qualquer área do conhecimento, da rede municipal, estadual e/ou particular de ensino, atuando na cidade de São Carlos/SP – Brasil. Todos esses sujeitos, após a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que acompanhava o questionário online, puderam decidir se gostariam ou não de colaborar com a pesquisa. Os participantes só tiveram acesso ao questionário após lerem o TCLE e aceitarem expressamente fazer parte do estudo.
A escolha do município de São Carlos/SP – Brasil como fonte de nossas análises se deu, em especial, pelo nosso envolvimento nos acontecimentos educacionais da cidade, em virtude das atividades regulares que realizamos relacionadas à formação (inicial e continuada) de professores que atuarão ou já atuam no município. Por exemplo, uma das frentes relevantes de nosso trabalho, nas diferentes licenciaturas em que atuamos (Música, Letras, Matemática, Biologia e Química), refere-se à nossa condução das disciplinas de estágio supervisionado, desenvolvidas por meio da parceria universidade-escola.
No total, 186 respondentes (2), de diferentes disciplinas e/ou áreas de atuação, participaram da pesquisa. Na Tabela 1, apresentamos essas disciplinas e/ou áreas.
Disciplina e/ou Área | Nº. de Respondentes |
Professor de Educação Infantil | 54 |
Professor polivalente do Ensino Fundamental I (anos iniciais – antigo ensino primário) | 39 |
Matemática | 21 |
Língua Portuguesa e/ou Literatura e/ou Produção Textual | 18 |
Geografia | 17 |
Professor de Educação Especial | 17 |
História | 16 |
Ciências | 12 |
Biologia | 11 |
Educação Física | 11 |
Música | 9 |
Artes | 8 |
Física | 7 |
Língua Estrangeira – Inglês | 6 |
Sociologia | 6 |
Química | 5 |
Filosofia | 5 |
Projeto de Vida | 3 |
Informática | 2 |
Orientação de Estudos | 2 |
Ensino Técnico no Estado | 1 |
Disciplinas INOVA Educação | 1 |
Eletiva e Práticas Experimentais | 1 |
Total | 272 |
Fonte: Elaboração própria, de acordo com os dados do estudo realizado em 2020.
1 / Os números totais, aqui e em outras ocasiões, são maiores que o total de respondentes, pois cada professor pôde escolher mais de uma opção de resposta, em alguns casos, inserida até mesmo por ele no questionário.
Cabe salientarmos que as respostas foram tratadas de forma anônima e confidencial, ou seja, em nenhum momento foi divulgado o nome dos participantes em qualquer fase do estudo. Os dados recebidos foram analisados de junho a outubro de 2020.
Quanto às idades dos professores participantes, houve variação entre 22 e 67 anos (a média é de 40,6 anos) e a maioria deles é do sexo feminino (84%). Além disso, tais profissionais, em sua maioria (67,2%), possuem pós-graduação – seja ela lato sensu (61,6%) ou stricto sensu (38,4%). Sobre a atuação desses professores, que, em média, estão em exercício há mais de 10 anos, 82% atuam em redes públicas – na rede municipal, na rede estadual ou em ambas –, destacando-se que, desse total, 54,3% lecionam apenas na rede estadual de ensino.
3.3 Técnica de coleta de dados
Os dados foram coletados por meio da aplicação de um questionário online, via Google Forms, divulgado via mídias sociais. As perguntas do questionário foram construídas de três formas: perguntas abertas, em sua maioria sobre informações pessoais do sujeito (como idade, tempo de atuação docente etc.); perguntas fechadas, sobre temas diversos (como disciplina ou área em que atua, quais conteúdos trabalhou durante o período do estudo, quais atividades realizou com os alunos etc.); e perguntas com algum tipo de escala (como “Muito/Médio/Pouco” ou “Sim/Não/Não Sei”), utilizadas para questões sobre impactos do isolamento social na vida profissional ou pessoal do sujeito, ou atuação do sistema público de ensino diante da pandemia, dentre outras.
Para fins de contextualização, serve-nos a informação de que o isolamento social começou na cidade em questão por decretos da Prefeitura em 19 e 20 de março de 2020 (São Carlos, 2020a, 2020b, 2020c). O nosso questionário, por sua vez, esteve aberto entre os dias 23 de maio e 16 de junho de 2020, com a concentração de recebimento das respostas no fim de maio – 84,9% do total de respostas foram enviadas entre os dias 23 e 29 de maio de 2020, isto é, aproximadamente dois meses após os decretos.
3.4 Análise dos dados
Após a coleta dos dados, estes foram categorizados, ou seja, foram criados conceitos que permitiram agrupar os dados a partir de características comuns ou que se relacionam entre si. Foram dois os tipos de categorias consideradas: as categorias gerais, provenientes dos objetivos e do referencial teórico desta pesquisa; e as categorias específicas, que foram oriundas dos próprios dados. Baseando-nos na categorização, buscamos nos dados unidades de contexto e unidades de registro. As primeiras são trechos dos dados que os pesquisadores julgam ser importantes para a pesquisa, enquanto as segundas são unidades menores, pertencentes a uma unidade de contexto, que dão sentido às análises, possibilitando inclusive a criação da categoria levantada (Gomes, 1994).
Realizamos, ainda de acordo com as ideias de Gomes (1994), quatro etapas de análise dos dados. A primeira, intitulada pré-análise, consistiu em uma lida geral de todo o material coletado e transcrito. Em seguida, realizamos uma exploração do material, que resultou na criação das categorias gerais, no recorte nos dados das unidades de contexto e de registro, na elaboração de categorias específicas a partir das unidades de registro encontradas e na escrita de algumas reflexões iniciais e dúvidas. Em um terceiro momento, partimos para o tratamento dos resultados obtidos, quando colocamos as unidades de registro em suas respectivas categorias e continuamos escrevendo mais algumas reflexões. Por fim, na quarta etapa, realizamos a interpretação dos dados, sendo que os dados quantitativos foram interpretados apoiados em elementos estatísticos; e, os qualitativos, no desvendar do conteúdo subjacente ao que estava sendo dito.
Cabe ressaltar que todas essas ações foram realizadas por meio de planilhas eletrônicas elaboradas no software Microsoft Office Excel pela equipe de pesquisa e criadas a partir das respostas ao questionário online feito no Google Forms.
4. Resultados
Convém iniciarmos o mapeamento do contexto que nos interessa identificando o “tipo de trabalho escolar que foi demandado” aos respondentes durante o período de isolamento social (cf. tabela 2).
Tipo de trabalho demandado | % do total de docentes |
Planejamento e execução de aulas para dar a distância | 70,9% |
Reuniões com outros professores e/ou direção escolar | 70,4% |
Contato com os alunos para saber como eles estavam | 58% |
Realização de atividades diversas do dia a dia da escola | 55,3% |
Nenhum | 8% |
Fonte:Elaboração própria, de acordo com os dados do estudo realizado em 2020.
Conforme demonstrado, 70,9% (132 professores) disseram que lhes foi exigido realizar “planejamento e execução de aulas para dar a distância”; 70,4% (131 professores) fizeram “reuniões com outros professores e/ou com a direção escolar”; 58% (108 professores) estabeleceram “contato com os alunos para saber como eles estavam”; 55,3% (103 professores) assinalaram a “realização de atividades diversas do dia a dia da escola”; e 8% (15 professores) afirmaram não ter sido demandada a eles “nenhum trabalho” naquele momento. Desses 15 respondentes, todos atuam na rede de ensino municipal. Um deles, por exemplo, que trabalha em duas redes de ensino, afirmou:
(01) “na rede municipal nenhum (trabalho demandado); na (escola) particular, aulas a distância”.
Outro professor desse total de 15, por sua vez, salientou:
(02) "começamos o replanejamento e início do trabalho remoto no final de maio (...).”
Isso nos leva a refletir que, no período de aplicação do questionário, o desenvolvimento de atividades escolares remotas na rede municipal de ensino era ainda mais incipiente do que nas redes estadual e particular.
Na sequência, vale compreendermos se, para os professores, “a formação oferecida pelas redes (naquele momento) foi razoável, em termos de tempo e carga horária exigidas”. Com essa ponderação, tínhamos como foco compreender a visão dos professores sobre a sua própria formação para o uso de TDIC, superando, na prática, um paradigma tradicional de ensino. Verificamos que 43% (81 professores) responderam “não”; 33% (61 professores) consideraram que a formação oferecida foi “parcialmente” razoável; 12% (22 professores) disseram “sim”; e 12% (22 professores) não souberam opinar.
Essas respostas nos permitem discutir a complexidade que o isolamento social acrescentou na estrutura do sistema educacional nas diferentes redes de ensino, que tardaram para compreender os impactos da pandemia na educação e para elaborar estratégias de organização e orientações claras às escolas e professores. Esse descompasso refletiu nas diferentes demandas dos professores e nas atividades de ensino e acompanhamento que desenvolveram com os alunos.
Os professores, imersos em uma pandemia, tiveram complicações pessoais para, às pressas, investir em sua formação quanto ao uso de novos artefatos tecnológicos. Além disso, não houve uma proposta satisfatória de formação continuada oferecida pelas redes. Conforme apontado por Arruda (2020), enquanto em outros países, mesmo que em níveis diferentes de engajamento público, verificamos ações políticas que beneficiaram a adoção de variadas estratégias de vínculo escolar por meio da mediação de TDIC, no Brasil, acompanhamos certo atraso e desorganização nas tomadas de decisão. Para o autor, no contexto da pandemia,
O Brasil apresenta-se (sic) propostas difusas, que refletem a falta de liderança do Ministério da Educação, que indicou a possibilidade de se utilizar a modalidade a distância no ensino superior, por meio da portaria n. 343 de 2020, posteriormente apresentou a medida provisória n. 934 que retirou a obrigatoriedade de cumprimento de 200 dias letivos, mantendo a carga horária mínima nos diferentes níveis educacionais. A tomada de decisões a respeito do modelo de funcionamento da educação básica ficou sob os cuidados dos estados que têm apresentado iniciativas que se direcionam à substituição da educação presencial pelas aulas remotas ou adoção da modalidade a distância na educação básica. Muitas das iniciativas estão em processo de consolidação, mas há um indicativo de que serão implementadas ao longo dos próximos meses (...) (Arruda, 2020, pp. 261-262).
Mesmo diante de tantos desafios, no entanto, destacamos que os professores, frente à afirmação “A educação a distância é uma saída necessária para a continuidade da educação básica em tempos de pandemia”, demonstraram predominantemente concordância total ou parcial. Notamos que 31% (58 professores) sinalizaram “sim”; 42% (79 professores) marcaram “parcialmente”; 22% (40 professores) disseram “não”; e 5% (9 professores) não souberam opinar.
Esses dados corroboram o posicionamento de Arruda (2020, p. 266), ao dizer que
(...) a educação remota é um princípio importante para manter o vínculo entre estudantes, professores e demais profissionais da Educação. A resposta em contrário pode representar o afastamento por muitos meses de estudantes dos espaços escolares (físicos e virtuais), o que pode comprometer a qualidade da educação, possivelmente mais do que a implementação de iniciativas que mantenham tais vínculos, apesar das limitações que venham a conferir. (...) O ineditismo leva a ações que precisam envolver toda a complexidade da qual faz parte.
Na sequência, na tabela 3, apresentamos quais foram as “plataformas digitais mais utilizadas” pelos professores envolvidos nesta pesquisa, durante aquele momento de ensino remoto emergencial.
Plataforma | % do total de docentes |
81,7% | |
54,8% | |
Aplicativo Centro de Mídias SP | 53,2% |
Google Classroom | 46,2% |
Google Meet | 42,4% |
Zoom | 18,8% |
Microsoft Teams | 18,8% |
12,9% | |
Skype | 3,7% |
Moodle | 3,7% |
YouTube | 3,2% |
Outras plataformas | 2,7% |
Nenhuma | 6,4% |
Fonte:Elaboração própria, de acordo com os dados do estudo realizado em 2020.
De acordo com a Tabela 3, 81,7% (152 professores) citaram o WhatsApp; 54,8% (102 professores), o Facebook; 53,2% (99 professores), o aplicativo do Centro de Mídias de São Paulo; 46,2% (86 professores), o Google Classroom; 42,4% (79 professores), o Google Meet; 18,8% (35 professores), o Zoom – a mesma situação é observada quanto ao uso do Microsoft Teams; 12,9% (24 professores), o Instagram; 3,7% (7 professores), o Skype – idem em relação ao Moodle; 3,2% (6 pessoas), o Youtube; e 2,7% indicaram outras plataformas, o que representa uma menção a elas menor do que cinco vezes. Apenas 6,4% (12 professores) afirmaram não utilizar nenhuma plataforma, o que nos faz pensar em hipóteses para os motivos desse não uso: esses professores podem não possuir os recursos tecnológicos necessários para a condução de atividades online ou, caso os possuam, podem apresentar mínimo letramento digital, condição a qual não os incentiva a participarem dos ambientes virtuais.
Acrescida a essa questão, examinamos, então, quais os “tipos de atividades desenvolvidas pelos professores”. Vale ressaltarmos que as atividades realizadas nas plataformas digitais apontadas se diferenciam em relação à interação professor-alunos e alunos-alunos, podendo ser consideradas de duas naturezas: atividades unidirecionais e atividades interativas.
Aqui, prevaleceram como resposta atividades unidirecionais e assíncronas, ou seja, os professores optaram por preparar materiais e enviá-los aos alunos para que eles os estudassem individualmente, no horário que tivessem disponibilidade. Na tabela 4, constam as atividades que mais se destacaram dentro desse perfil unidirecional e não simultâneo.
Atividade | % do total de docentes |
Enviei exercícios para os alunos resolverem | 72% |
Enviei mensagens de texto | 68,2% |
Enviei vídeos já gravados por outras pessoas ou gravados por mim mesmo para os alunos assistirem | 54,8% |
Propus a realização de uma pesquisa sobre determinado conteúdo | 38,1% |
Gravei podcasts | 5,9% |
Fonte: Elaboração própria, de acordo com os dados do estudo realizado em 2020.
Como visto, 72% (134 professores) disseram ter enviado “exercícios” para os alunos resolverem; 68,2% (127 professores) enviaram “mensagens de texto”; 54,8% (102 professores) disponibilizaram “vídeos gravados” por outras pessoas ou por si mesmos para os alunos visualizarem; 38,1% (71 professores) propuseram a “realização de pesquisa sobre determinado conteúdo”; e 5,9% (11 professores) gravaram “podcasts”.
Nesse contexto, mesmo diante da possibilidade (e necessidade) de inovação, os dados revelam que os professores continuaram atuando sob a mesma lógica do ensino presencial, majoritariamente tradicional. Para exemplificar, assinalamos uma relação complexa entre a tecnologia e o ensino tradicional: o amplo uso do WhatsApp para o envio de listas de exercício, considerando tal ação como “aula dada”.
As críticas ao ensino tradicional consideram que ele não leva em consideração a experiência do aluno e nem as realidades sociais, caracterizando-se como “intelectualista” ou até mesmo “enciclopédico” (Libâneo, 1990). Assim, uma das principais características desse ensino é considerar apenas o caráter cumulativo do conhecimento humano, que será adquirido pelo estudante por meio de transmissão de conteúdos. Porém, há pouca possibilidade de os alunos simplesmente adquirirem os conteúdos e as informações. Assim,
Dentro deste contexto, espera-se ver os alunos sentados em fileiras e o professor em pé, defronte do quadro, falando e escrevendo. A “fachada” do ensino tradicional vigente assenta-se, assim, sobre uma concepção epistemológica: pensa-se que o professor transmite o conhecimento “mostrando” e que o aluno aprende “vendo” (Silva,1998, p. 53).
Além dessa crítica quanto à impossibilidade de o conhecimento ser meramente transmitido, diversos autores apontam a impossibilidade de formação de consciência crítica nos estudantes. Isso ocorreria porque, ao assimilar conteúdos conceituais, os modelos sociais, intelectuais etc. também acabam sendo imitados (Mizukami, 1986). Isso ocorre porque
A dimensão técnica é privilegiada, analisada de forma dissociada de suas raízes político-sociais e ideológicas, e vista como algo “neutro” e meramente instrumental. A questão do “fazer” da prática pedagógica é dissociada das perguntas sobre o “por que fazer” e o “para que fazer” e analisada de forma, muitas vezes, abstrata e não contextualizada (Candau, 2012, p. 15).
Em números menores, os professores indicaram a proposição de atividades interativas, prezando pelo encontro e o diálogo com os alunos por meio de diferentes formatos e plataformas. A seguir, explicitamos as que foram mais recorrentes.
Atividade | % do total de docentes |
Realizei chats online | 30,1% |
Propus fóruns de discussão ou outras formas de discussão entre todos | 19,8% |
Fiz aulas virtuais interativas em horários alternativos à grade curricular (presencial) | 17,7% |
Fiz aulas virtuais interativas nos horários em que aconteceriam as disciplinas presenciais | 12,3% |
Troquei áudios pelo WhatsApp | 2,1% |
Fonte: Elaboração própria, de acordo com os dados do estudo realizado em 2020.
Observamos que 30,1% (56 professores) indicaram ter realizado “chats online”; 19,8% (37 professores), “fóruns de discussão ou similares”; 17,7% (33 professores), “aulas interativas em horários alternativos à grade curricular”; 12,3% (23 professores), “aulas interativas nos horários em que aconteceriam as disciplinas presenciais”; e 2,1% (4 professores) disseram ter trocado “áudios via WhatsApp”. Com essa questão notamos que os momentos interativos ocorreram de diferentes maneiras, podendo ser síncronos, durante as aulas e chats ao vivo, ou assíncronos, quando as plataformas digitais permitem a organização de fóruns de discussão por meio dos quais os alunos podem se orientar e participar do desenvolvimento do conteúdo de forma remota.
Consideramos pertinente, ainda, a marca de 21% (39 professores) atrelada à ação de terem sido realizadas “aulas virtuais expositivas”. Nessa lógica de ensino, a importância do papel do professor como transmissor do “acervo cultural” (Lopes, 1991, p. 39) inibe a participação do aluno por meio de aulas expositivas – aquelas que nos remetem ao ensino tradicional, centrado na instrução e no professor, que seria o detentor do conhecimento a ser transmitido ao aluno pela escola (Oliveira, 2009).
A expressão “pedagogia tradicional” é amplamente usada para indicar práticas pedagógicas que persistem no tempo e também para marcar uma novidade na área, visto que, em um plano antagônico, “tradicional” acaba por se relacionar a uma noção dominante até dado momento, como o é a aula expositiva. Segundo Lopes (1991, pp. 38-41), “na literatura Didática a aula expositiva tem sido identificada como a mais tradicional das técnicas de ensino”, e, de acordo com as palavras da autora, essa literatura “conceitua a aula expositiva como uma comunicação verbal estruturada utilizada pelos professores com o objetivo de transmitir determinados conteúdos aos alunos”.
Focando-nos na incorporação das TDIC na escola, em especial no cenário atual em que a sociedade está inserida, sublinhamos a pertinência de seus usos para além de algo apenas tradicional, sem a participação ativa dos estudantes e com o desenvolvimento de atividades voltadas somente a conteúdos pré-determinados e independentes do contexto. Para isso de fato ocorrer, concordamos com Freitas (2010, p. 340), ao reconhecermos que ainda necessitamos “(...) de professores e alunos que sejam letrados digitais, isto é, professores e alunos que se apropriem crítica e criativamente da tecnologia, dando-lhe significados e funções, em vez de consumi-la passivamente”.
O ensino remoto emergencial, nas atuais circunstâncias, ainda que compreendamos a sua importância e necessidade (e dado o empenho de muitos professores para viabilizá-lo), não chega à qualidade da educação almejada pelos educadores, conforme mencionado por Moreira e Schlemmer (2020, p. 7):
As mudanças organizacionais são muitas vezes dolorosas e implicam enormes desafios institucionais de adaptação, de inovação, de alterações estruturais, de flexibilidade, de enquadramento e de liderança, e este é, claramente, um momento decisivo para assumir a mudança, porque a suspensão das atividades presenciais físicas, um pouco por todo o mundo, gerou a obrigatoriedade dos professores e estudantes migrarem para a realidade online, transferindo e transpondo metodologias e práticas pedagógicas típicas dos territórios físicos de aprendizagem, naquilo que tem sido apelidado de ensino remoto de emergência. O que outrora se delineava em breves traços é hoje uma realidade possível de concretizar devido a esta migração forçada. No entanto, em grande parte dos casos, estas tecnologias foram e estão a ser utilizadas numa perspectiva meramente instrumental, reduzindo as metodologias e as práticas a um ensino apenas transmissivo. É, pois, urgente e necessário transitar deste ensino remoto de emergência, importante numa primeira fase, para a educação digital de qualidade que defendemos.
O que observamos é que a prática pedagógica vigente, presencial e tradicional, diante da pandemia e do isolamento social, foi deslocada no período e, como diz Valente (2002), o computador está sendo usado para informatizar os processos de ensino que já existem, notadamente tradicionais:
Isso tem facilitado a implantação do computador na escola pois não quebra a dinâmica por ela adotada. Além disso, não exige muito investimento na formação do professor. Para ser capaz de usar o computador nessa abordagem basta ser treinado nas técnicas de uso de cada software. No entanto, os resultados em termos da adequação dessa abordagem no preparo de cidadãos capazes de enfrentar as mudanças que a sociedade está passando são questionáveis. Tanto o ensino tradicional quanto sua informatização preparam um profissional obsoleto (Valente, 2002, párr. 3).
Por conta disso, com o intuito de compreender as dessemelhanças entre o ensino presencial e o ensino remoto realizado pelos investigados, pedimos a avaliação da seguinte afirmação: “Os profissionais da educação têm formação e facilidade em transpor suas aulas para plataformas virtuais”. As respostas foram: 62% (115 professores) responderam “não”; 32% (60 professores) disseram “talvez”; 4% (8 professores) não souberam responder; e apenas 2% (3 professores) atestaram que os profissionais da educação têm, “sim”, formação e facilidade com as aulas remotas.
A dificuldade aqui manifestada decorre, possivelmente, dos contrastes entre o modo tradicional das aulas e as demandas tecnológicas que operam em um paradigma não tradicional, conforme já salientamos em momentos posteriores.
Diante do enunciado “As atividades de ensino remotas limitam o papel do professor", quase metade dos participantes disse “sim” (45% - 84 professores); outro percentual significativo considerou “talvez” haver uma limitação (40% - 74 professores); alguns afirmaram não haver limitação (12% - 23 professores); e 3% (5 professores) não souberam opinar.
A limitação sinalizada, se total ou parcial, pode ser compreendida pelo fato de as práticas docentes dos professores pesquisados terem, como dito anteriormente, na maioria das vezes, reproduzido uma abordagem tradicional de ensino, focada na exposição dos seus conhecimentos aos alunos. A implementação de atividades remotas, por intermédio das TDIC, prevê muito mais do que os documentos curriculares prescrevem: devem ser pensadas atividades que sejam vividas, experimentadas, sentidas por cada um dos indivíduos-aprendizes; devem pôr “(...) em discussão questões individuais, referentes aos interesses e subjetividades dos sujeitos, e questões coletivas, referentes aos contextos socioculturais dos indivíduos” (Porto, 2006, p. 45).
Assim, a necessidade de se realizar um ensino remoto diante da realidade da pandemia não significaria substituir o ensino presencial pelo online pura e simplesmente. Santos (2020), por exemplo, embora reconheça a necessidade premente de adaptação quando do início da crise pandêmica, defende outra estratégia, que intitula de “Educação Online”. Segundo a autora, esta se caracteriza por qualquer processo de educação (formal, não formal ou informal), mediado por tecnologias digitais em rede (ou pós-massivas), que permite encontros, uma relação interativa com o conhecimento e acesso a ele por meio de múltiplas linguagens.
Para isso, faz-se necessária a criação de um grupo, uma verdadeira sala de aula, mesmo que os sujeitos estejam geograficamente dispersos. Santos (2020) faz questão de salientar que, quando fala em sala de aula, não se refere à situação em que uma pessoa autorizada – no caso, o professor – fica falando sobre um tema, como na aula expositiva, mas quando muitos podem falar. Trata-se de uma sala de aula interativa, onde todos podem conversar de forma dialógica.
Portanto, a Educação Online, nos moldes definidos por Santos (2020), tem como pressupostos centrais: promover encontros dialógicos e uma relação interativa com o conhecimento; promover o acesso ao conhecimento por meio de múltiplas linguagens, preferencialmente por meio de atividades assíncronas; e necessidade de forjar autonomia nos estudantes, que devem buscar a informação, tratá-la e transformá-la em conhecimento.
Em relação à “avaliação da aprendizagem dos alunos”, 43,5% (81 professores) indicaram que “não realizaram atividades de avaliação de aprendizagem” e, quando foram feitas, majoritariamente se deram também nos moldes de um ensino tradicional. Nessa segunda situação, percebemos a predominância de avaliações classificatórias pontuais, características de uma perspectiva avaliativa somativa (Haydt, 2008) – cf. tabela 6.
Atividades de Avaliação realizadas | % do total de docentes |
Trabalhos individuais para serem entregues de forma online | 47,3% |
Provas escritas de forma online | 23,1% |
Trabalhos em grupo para serem entregues de forma online | 5,9% |
Apresentação de seminários ou outros tipos de trabalho de forma online | 5,4% |
Provas orais de forma online | 2,7% |
Fonte: Elaboração própria, de acordo com os dados do estudo realizado em 2020.
Destacaram-se os “trabalhos individuais” (47,3% - 88 respostas); as “provas escritas” (23,1% - 43 respostas); os “trabalhos em grupo” (5,9% - 11 respostas); as “apresentações de seminário ou outros tipos de trabalho” (5,4% - 10 respostas); e as “provas orais” (2,7% - 5 respostas). Apesar da natureza dessas atividades – seja ela mais ou menos investigativa, crítica ou dialógica – não ficar explícita nas respostas deste estudo, fica evidente certo compromisso com o caráter de “verificação” da avaliação.
A pedagogia tradicional também comporta formas tradicionais de avaliação, presas em conteúdos e normas predeterminadas e independentes da turma de alunos. A avaliação nesse paradigma se caracteriza como um mecanismo de controle, de julgamento de resultados finais e, ainda, com fins de classificação visando medir o sucesso (Darsie, 1996). Nesse sentido, a avaliação assume uma função normativa, separando os estudantes que se adequam às normas exigidas daqueles que não se adequam.
Isso ocorre porque, como o ensino tradicional visa apenas à atuação de um dos polos da relação, o professor, a relação dele com os estudantes se mantém, muitas vezes, por meio de coação (Libâneo, 1990). Nessa lógica, o sistema de avaliação é utilizado como mecanismo para essa coação. Esse sistema se caracteriza pela repetição automática dos dados ensinados ou a exploração racional dos mesmos (Mizukami, 1986). Assim, a avaliação passa a ter um fim em si mesma e o ritual é perpetuado.
Mizukami (1986) conclui que, se a docência ocorre desse modo, a avaliação pautada pelo paradigma tradicional tem como objetivo apenas aferir se os alunos são capazes de reproduzir o conhecimento “ensinado”. Nesse processo, além da capacidade de memória, não há a medição de nenhum outro aspecto da aprendizagem e, nesse sentido, os critérios de avaliação também se tornam desnecessários. Assim, a aprendizagem é baseada em mera memorização e reprodução de conteúdos
Refletindo sobre processos de avaliação da aprendizagem, Luckesi (2011) preza pela diferenciação entre o “ato de verificar” e o “ato de avaliar”. Enquanto a verificação se caracteriza por ser pontual, classificatória e excludente, a avaliação deve ser contínua, diagnóstica e inclusiva. Significa dizer que, quando o papel da atividade ou da prova é comprovar se o aluno sabe ou não sabe o conteúdo, esta abordagem está olhando a aprendizagem do aluno do ponto de vista da verificação: sob pressão naquele momento específico, o aluno precisa demonstrar que se apropriou do conteúdo apresentado e saber reproduzi-lo, sob pena de ficar rotulado com uma nota que poderá o limitar em atividades futuras, como passar de ano na matéria. Já do ponto de vista do avaliar, o papel da atividade passa a ser o de diagnosticar o que o aluno sabe, identificar o que não sabe e ajudá-lo a saber o que ainda não sabe. Tal perspectiva se apresenta do ponto de vista do acompanhamento ao longo do tempo, da superação das dificuldades e da inclusão de todos os alunos no processo.
Mesmo que tenha havido professores que não propuseram atividades remotas de cunho tradicional, a maioria está avaliando a aprendizagem dos alunos por esse viés, dado que somente 11,3% (21 professores) sinalizaram instrumentos avaliativos que podem comportar e valorizar a pesquisa desenvolvida pelos alunos e a suas relações interpessoais – “trabalho em grupo para serem entregues de forma online” (5,9% - 11 professores) e “apresentação de seminários ou outros tipos de trabalho de forma online” (5,4% - 10 professores). Como afirma Zabala (1995), há grande contradição em pensar aulas inovadoras se a forma de avaliação permanece tradicional.
Para a declaração “Com mais diálogo, seria possível pensar em outras estratégias para a educação que não sobrecarregassem o professor, visto que este está cumprindo uma carga horária de trabalho maior do que se estivesse à frente de aulas presenciais”, verificamos as seguintes respostas: 59% (110 professores) responderam “sim”; 27% (51 professores) assinalaram “parcialmente”; 6% (11 professores) marcaram “não”; e 8% (14 professores) não souberam opinar.
Tais respostas mostram que houve uma sobrecarga de trabalho e evidenciam a falta de diálogo e discussão com professores e profissionais da educação. De modo geral, esses dados confirmam as ideias de Giroux (1997), ao verificar que as reformas educacionais mostram pouca confiança na capacidade dos professores. Arruda (2020, p. 272), sobre essa falta de diálogo, problematiza:
A ausência da participação dos e das profissionais da educação nessa discussão, em algumas circunstâncias, por iniciativa de resistência de grupos docentes, bem como a negativa em se considerar as TDIC como elementos que promovem a inclusão e não o seu contrário, podem abrir portas ao setor privado que, em convênios firmados diretamente com os poderes executivos da união, de estados e municípios brasileiros, irão impor iniciativas que não representarão as necessidades e as demandas daqueles diretamente envolvidos.
Por fim, interessamo-nos também pela visão dos professores respondentes acerca de aspectos pertencentes à realidade dos estudantes durante o ensino remoto emergencial. Para a asserção “Os estudantes têm formação e recursos para um bom desempenho nas aulas em plataformas virtuais", 66% (123 professores) assinalaram “não”; 27% (51 professores) consideraram “parcialmente”; 2% (3 professores) indicaram “sim”; e 5% (9 professores) não souberam opinar.
Percebemos, portanto, pelo viés dos professores, que os alunos da Educação Básica contemplados pela nossa amostra também demonstraram limitações para participarem de forma efetiva das atividades online. O despreparo dos alunos, no entanto, não se deve apenas à falta de formação técnica para lidar com tais tecnologias. É válido frisarmos que o momento circunstancial sem dúvida impactou a vida de muitos estudantes por questões pessoais, pela falta de orientação e pela dificuldade de adaptação à nova rotina que lhes foi imposta.
Outra afirmação apresentada aos professores foi "A maioria dos alunos participou ativamente das aulas e das atividades". Para ela, 49% (91 professores) responderam “não”; 29% (54 professores) disseram que a maioria dos alunos participou “parcialmente”; 6% (11 professores) indicaram “sim”; e 16% (30 professores) não souberam opinar.
A percepção dos professores de que os alunos não participaram ou participaram parcialmente das aulas e das atividades remotas nos remete ao descompasso entre professor e alunos, à fragmentação dos papeis, das responsabilidades e das funções. Vale reforçarmos que, no cenário de isolamento social e de ensino remoto emergencial, para esses estudantes que já não vislumbravam a aplicabilidade daquilo que se vivencia na escola para além dela, tornam-se ainda mais acentuadas as lacunas entre aquilo que se aprende na escola e o que se faz no dia a dia.
Atrelada à constatação da participação dos alunos, apresentamos a seguinte questão aberta aos professores: “Como você explicaria este comportamento (o de não participar ou participar parcialmente das aulas e atividades online) dos alunos?” Na figura abaixo, apresentamos os termos mais recorrentes presentes nas respostas dadas
Ademais, alguns professores ressaltaram, ao longo do questionário, que as atividades desenvolvidas eram facultativas, em especial para os alunos. Algumas dessas considerações foram:
(03) As atividades (foram enviadas) como SUGESTÃO via Facebook.
(04) (Sobre o envio de atividades) São sugestões, não é obrigatório o envio por parte do professor e nem a realização por parte dos alunos.
(05) (Sobre o planejamento e a execução de aulas para dar a distância) Nenhum obrigatório, encaminhado pela secretaria.
(06) (Sobre orientações recebidas) Realizar, em caráter facultativo, algumas atividades também facultativas para as crianças, porém em frequências bem menores que as das aulas regulares.
Algumas dificuldades dos estudantes, percebidas pelos docentes (cf. figura 1), também são dificuldades sentidas por eles próprios. Os professores concordaram que o contexto dificultou a sua atuação e isso teve impacto tanto nos procedimentos técnicos das aulas quanto em suas condições pessoais e emocionais. Segundo Leite et al. (2020, p. 12), em levantamento realizado em Pernambuco,
Dentre os problemas apontados pelos professores na realização das aulas remotas, no contexto da pandemia, as mais relevantes (sic) (considerando que era possível escolher mais de uma opção) foram que 86,1% declararam ser a falta de domínio do professor com as tecnologias; 80,6% concordaram ser a formação para o desenvolvimento de atividades remotas; 80,2% afirmaram ser a estrutura em casa, no que se refere aos equipamentos, conexões, organização familiar; 65,1% responderam que falta material adequado para o desenvolvimento de atividades remotas; 48,4% afirmaram ser a sobrecarga de trabalho, sem a remuneração adequada; 22,6% apontaram que o ensino remoto não é eficiente; e 23% afirmaram que não há poder decisório na construção de alternativas para as aulas remotas.
Visando à compreensão do trabalho docente no período da pandemia, cabe-nos também investir no entendimento das subjetividades do professor diante desse cenário de crise e de mudanças, ou seja, é importante considerarmos o contexto pessoal desses professores. Nessa direção, conforme discutido por Arruda (2020, p. 266),
A singularidade da pandemia deve levar também à uma compreensão de que a educação remota não se restringe à existência ou não de acesso tecnológico, mas precisa envolver a complexidade representada por docentes confinados, que possuem famílias e que também se encontram em condições de fragilidades em suas atividades.
Em linhas gerais, diante dos resultados aqui apresentados, notamos que professores, em especial, e alunos foram, em um curto período de tempo e sem suporte material, psicológico e/ou formativo suficientemente adequado, chamados a atuar em ambientes virtuais, o que provavelmente facilitou um tipo de reorganização do sistema educacional mais próximo de uma transposição do ensino presencial para o ensino a distância.
Frente à necessidade do ensino remoto emergencial e do uso das TDIC, compreendemos que a situação do trabalho docente nesses tempos de ausência de contatos sociais colocou-se (e ainda se coloca) de forma ainda mais desafiadora e inédita.
5. Considerações finais
Os dados e discussões trazidos neste artigo evidenciam o fato de que, apesar da realidade do ensino remoto emergencial, urge enquadrar as tecnologias da educação não sob uma perspectiva salvacionista, mas como o elemento velho contido no novo (Pinto, 2020). Isso aponta a necessidade de reformulações na utilização das tecnologias no ensino (Atié, 2020), na medida em que os potenciais formativos dos recursos tecnológicos devem ser pensados para além da perspectiva instrumental, que pensa de forma dicotomizada o processo de ensino e aprendizagem do contexto político e cultural. Em convergência com Ferreira e Barbosa (2020, p. 6),
As dimensões dessa crise, no entanto, demandam bem mais do que discutir os meios para enfrentá-la. O momento vivido denuncia o quão vazia é a argumentação de que a educação deva ser gerida para a eficiência dos meios, sem considerar seus objetivos e a qualidade social do que se cria na relação entre alunos, professoras e comunidade.
Desse modo, baseando-nos em pesquisa com professores da Educação Básica das redes de ensino de São Carlos/SP – Brasil, no período da pandemia de COVID-19, levantamos alguns impactos desse contexto nas condições de trabalho docente desses professores, quanto ao planejamento e ao desenvolvimento de atividades no ensino remoto emergencial, e, sobretudo, apresentamos como escopo deste texto a discussão sobre o uso de TDIC diante de um ensino ainda com marcas do tradicional.
Com este estudo, para além de frisarmos que o ambiente virtual não anula o ambiente educacional presencial, pretendemos destacar dois pontos: o primeiro é que , àqueles que denunciam o uso das TDIC, não nos parece mais pertinente tratá-las como prejudiciais ou prósperas aos processos de ensino e aprendizagem, mas, sim, contextualizar os seus possíveis usos; e, o segundo, urge a necessidade de inclusão digital a professores e alunos – o que quer dizer, por parte do Estado, viabilizar os recursos materiais e, no que cabe às agências formadoras, criar condições para a apropriação técnica e pedagógica dessas tecnologias.
Concordamos que um ensino mediado pelas tecnologias se fez necessário diante do cenário de isolamento que a pandemia gerou, mas é preciso ter em conta que esse tipo de ensino pede alterações nas estruturas tradicionais da escola. O que notamos, durante a tentativa dos professores respondentes desta pesquisa de se adequarem ao ensino remoto emergencial, foi a remodelagem de velhos costumes a uma nova roupagem, isto é, percebemos a manutenção de um modelo tradicional de ensino no contexto virtual. Nesse sentido, mantiveram-se a relação vertical de interação entre professor e alunos, a concepção de ensino como transmissão de conhecimento, a ênfase na aula expositiva, seja síncrona ou assíncrona, a avaliação classificatória e somativa (Haydt, 2008) por meio de listas de exercícios e provas, dentre outros aspectos.
Ainda que tenhamos tido um número de professores participantes inferior ao número que estimamos no início da pesquisa – o que se configura como uma limitação deste estudo, já que pretendíamos abarcar o maior número possível de professores das redes municipal, estadual e particular do município em questão –, é possível a identificação e generalização da ideia de que o ensino remoto emergencial, decorrente da pandemia de Covid-19, foi um momento de grande dificuldade, um momento de grande aprendizado e um momento em que houve uma possibilidade concreta de ruptura com o paradigma tradicional de ensino, com real destaque à possibilidade – e não à ruptura em si.
Para o enfrentamento do cenário que agora se apresenta, julgamos, então, necessária a retomada da discussão sobre os fins da educação, sobre o papel social e político do professor, sobre a autonomia docente – a qual deve vir pautada pela autoconsciência e necessidade ética de dar sentido ao fazer (Contreras, 2002) –, sobre tantas outras questões tão caras àqueles que, com seriedade e verdade em suas ações, lutam por uma educação brasileira democrática e libertadora. Em um momento como o imposto pela pandemia, professores e demais profissionais da Educação são convidados a repensar as suas concepções de currículo, de ensino e de aprendizagem, de tempo e espaço de aula (Souza e Tamanini, 2019).
Diante da reorganização do espaço, do tempo e das instituições e em virtude das experiências recentes assimiladas, surgem novas questões quanto às nossas práticas docentes: O que fazíamos antes da pandemia deve continuar no amanhã (e ainda hoje, pois a pandemia não acabou)? O que fizemos e/ou temos feito, no ensino remoto emergencial, mostrou-se e/ou tem se mostrado eficiente para o maior de nossos objetivos, proporcionar aprendizagem aos nossos alunos? Como explorar o potencial de integração entre espaços profissionais, culturais e educativos para a criação de contextos de aprendizagem midiatizados pelas tecnologias? Essas e outras perguntas oriundas desse período de isolamento social a que os professores foram submetidos merecem continuar no horizonte de debates da área de Educação. É justamente nessa direção que o presente estudo pode vir a ser retomado e expandido, aplicado também a professores de outros contextos que não apenas o da cidade de São Carlos/SP – Brasil, a fim de buscar um aprofundamento das questões aqui evidenciadas.
Para impulsionar o engajamento dos estudantes nos processos de ensino e aprendizagem, é premente ressignificar as metodologias de ensino diante da cultura digital, bem como é indispensável estimular o interesse de professores pela análise crítico-reflexiva de suas ações e práticas docentes, atitude para a qual esperamos ter contribuído com a presente discussão.