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Revista de Estudios Históricos de la Masonería Latinoamericana y Caribeña

On-line version ISSN 1659-4223

REHMLAC vol.6 n.2 San Pedro, Montes de Oca Jan./Apr. 2015

 

“Uma análise da historiografia acerca da trajetória de Everardo Dias”

Michel Goulart da Silva1*


Resumo

Neste artigo são problematizadas as narrativas historiográficas acerca da trajetória de Everardo Dias em sua relação com a Maçonaria e com o Partido Comunista do Brasil (PCB). Percebe-se em Everardo Dias uma trajetória complexa e multifacetada, o que se expressa na historiografia que discute sua vida e sua militância. Castellani, escrevendo de dentro da Maçonaria, não menciona a aproximação de Everardo Dias com organizações socialistas ou com a teoria marxista, limitando-se a apresentá-lo como um maçom que defende os interesses dos operários contra o regime autoritário da Primeira República.

Palavras-chave: Everardo Dias, Maçonaria, Comunismo

Abstract

This article focuses on the writing of history about the trajectory of Everardo Days in its relation with Freemasonry and the Communist Party of Brazil (PCB) narratives. It is noticed in Everardo Days a complex and multifaceted career, which is expressed in the historiography that discusses his life and militancy. Castellani, writing from within Freemasonry, does not mention the approach of Everardo Days organizations with socialist or Marxist theory, merely presenting it as a Mason who defends the interests of the workers against the authoritarian regime of the First Republic.

Keywords: Everardo Dias, Freemasonry, Comunism


Introdução

O nome de Everardo Dias é recorrentemente lembrado em associação à história do movimento operário no Brasil. Essa é uma das razões da homenagem feita a ele com a criação do Centro de Estudos Everardo Dias, que editou a revista Cara a Cara, em 1978, constituindo-se num espaço de discussão para o movimento operário que naquele momento passava por um intenso processo de reorganização, como parte da resistência à ditadura civil-militar iniciada em 19641. Nesse sentido, Everardo Dias é lembrado quando se discute temas como o anarquismo nas primeiras décadas do século XX, a greve geral de 1917, a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1922, ou sua participação como candidato a vereador pelo Bloco Operário e Camponês (BOC), em 1928. Por outro lado, Everardo Dias também é lembrado quando se fala em Maçonaria no Brasil, afinal ele foi membro dessa instituição e deu nome a uma Loja Maçônica fundada na cidade de São Paulo, no mesmo ano de sua morte, em 1966.

Everardo Dias, nascido em Pontevedra, na Galicia, foi trazido da Espanha para o Brasil com apenas três anos de idade, em 1886. Seu pai, Antonio Dias, tipógrafo republicano, maçom e militante anarquista, participou de um frustrado levante republicano, tendo contado com o apoio da rede de sociabilidades maçônica para escapar da perseguição política em seu país. Com a família instalada no Brasil, Everardo Dias fez seus estudos primários em São Paulo, começando a trabalhar também como tipógrafo no jornal O Estado de São Paulo, até se formar na Escola Normal da Praça da República. Em 1904, atuou como professor em Aparecida do Monte Claro, “um lugarejo no interior de São Paulo, mas logo desistiu e voltou à capital, onde trabalhou como jornalista e professor de História”2. Nesse período, Everardo Dias iniciou estudos na Faculdade de Direito de São Paulo, “onde só fez o primeiro ano, pois dificuldades financeiras o impediram de continuar os estudos”3.

Everardo Dias apresenta uma trajetória bastante plural e multifacetada, fazendo com que os textos escritos acerca de sua atuação política, de forma geral, expressem diferenças bastante significativas. Essas diferenças são perceptíveis tanto na opinião que os autores emitem acerca de Everardo Dias como na escolha dos acontecimentos de sua trajetória a serem narrados ou escondidos. Considerando que alguns desses autores se identificam com ideologias ou organizações políticas, pode-se interpretar que suas escolhas se inserem num contexto de construção das tradições que representam, portanto, o que escrevem e o que deixam de escrever se torna uma forma de corroborar ou rechaçar ações e ideias de Everardo Dias4.

Georges Haupt problematizou a narrativa histórica acerca do movimento operário na Europa utilizando a ideia de “história-tradição”, na qual o historiador se consagra à reprodução de ideias partidárias e à produção de mitos. Utilizada, entre outros, pelos bolcheviques depois da Revolução Russa, a história-tradição vai do culto dos heróis e da celebração das vitórias ao

escamoteamento de uma herança considerada estorvante. A história do movimento operário erigida em uma ideologia, ditatizada, manipulada, esvaziada de toda a seiva pelo uso de uma linguagem esteriotipada, desvia-se dessa época e atrofia a memória coletiva da classe operária5.


Certamente a tradição seletiva construída em torno de Everardo Dias não se compara às falsificações stalinistas. Contudo, cada uma das tradições busca inserir a trajetória de Everardo Dias dentro dos parâmetros esperados para um militante associado àquela corrente política ou ideológica específica, portanto, coerente com a história da própria corrente. Essa construção narrativa “consiste em fazer a coesão, em demonstrar a continuidade, em perpetrar as lendas oficiais que servem de referência e que ocupam o lugar da explicação”6.

Neste ensaio serão problematizadas construções historiográficas acerca da trajetória de Everardo Dias, propondo uma possível interpretação para explicar a disparidade que existe entre esses textos.

História e historiografia

Entre os principais temas escolhidos pelas narrativas historiográficas acerca da trajetória de Everardo Dias está sua relação com o Partido Comunista do Brasil (PCB) e seu vínculo com a Maçonaria. Na historiografia comunista o vínculo maçônico de Everardo Dias parece causar certo mal-estar. Por outro lado, opta-se por ocultar o seu vínculo com o PCB na historiografia produzida por maçons. Uma terceira tradição política que pode ser colocada nessa discussão, a anarquista, não deixa de apontar o vínculo maçônico de Everardo Dias, bem como critica sua relação com o PCB7.

Considerando Edgard Carone e Edgar Rodrigues, representantes respectivamente de uma historiografia comunista e de outra anarquista, verifica-se que ambos apontam para a aproximação de Everardo Dias com o PCB. Carone, notório historiador vinculado ao PCB, menciona o lançamento da candidatura de Everardo Dias para a Câmara Municipal de São Paulo pelo Bloco Operário e Camponês (BOC), em 1928. Everardo Dias é caracterizado por Carone como “velho militante socialista e aderente ao PCB desde 1923”8. Curiosamente, Carone não menciona o vínculo maçônico de Everardo Dias e nem mesmo sua expulsão do partido, em 1930. Em outra discussão, referindo-se à Maçonaria, Carone afirma: “rito, religião, sociedade secreta ou discreta, isso tudo está longe do marxismo, que é materialista”9.

Entre outros documentos, o vínculo maçônico de Everardo Dias pode ser verificado por uma das edições do Boletim do Grande Oriente de São Paulo (GOSP), publicada em 1919. O texto descreve a comemoração do aniversário de vinte e nove anos da Loja Ordem e Progresso, da qual Everardo Dias era membro, referindo-se a ele nos seguintes termos: “Ocupou então a tribuna maçônica o talentoso jornalista Everardo Dias, inteligente Orad \ da Loj \, que proferiu um discurso substancioso, cheio de história e de doutrina, que obteve dos presentes os mais prolongados aplausos”10.

Numa outra leitura, realizada por Rodrigues, conhecido militante anarquista, afirma-se que Everardo Dias, durante quinze anos, “defendeu ‘com unhas e dentes’ a liberdade de pensar em voz alta, cada um pela sua cabeça”, mas, quando se filiou ao PCB, começou “a pensar pela cabeça do ‘papa de Moscou’, representado no Brasil pelo secretário geral do PCB, na ocasião Astrojildo Pereira, seu genro”11. Rodrigues menciona a expulsão de Everardo Dias do PCB, “com todas as honras de um traidor”12. Rodrigues menciona também o vínculo maçônico de Everardo Dias, associando-o à sua militância anticlerical, especialmente o período de edição do jornal O Livre Pensador, a partir de 190313.

Em outra perspectiva, José Castellani, escrevendo do interior da Maçonaria, não menciona a aproximação de Everardo Dias com organizações socialistas ou com a teoria marxista. São exaltadas as atuações maçônica e anticlerical de Everardo Dias. Segundo Castellani, Everardo Dias “responsabilizava a Igreja de Roma pelo estancamento anterior, que levara ao ódio à razão e exaltara a ignorância como sinal de perfeição espiritual e a certeza de ganhar o reino dos céus”14. Na descrição que Castellani faz da militância pública de Everardo Dias, são destacadas as palestras e as publicações, mas não o vínculo com o PCB. Segundo Castellani, “com sua atividade cultural”, Everardo Dias “dava a sua contribuição ao progresso moral, intelectual e social do país”15.

Uma menção por Castellani a algum partido vinculado ao movimento operário aparece apenas uma vez, quando se refere ao contexto das greves ocorridas entre 1917 e 1919. Segundo Castellani, nesse contexto, Everardo Dias tornou-se “mais radical, passando a fazer parte de um Partido Operário, que pretendia fazer um governo ao lado do proletariado”16. Não há maiores explicações acerca desse partido nem qualquer menção à adesão de Everardo Dias ao PCB. Contudo, evidencia-se um esforço de Castellani em aproximar Everardo Dias do Partido Democrático (PD), fundado por dissidentes do Partido Republicano Paulista (PRP), em 192517. O argumento mais forte para atestar esse vínculo com o PD seria o fato de Everardo Dias ter trabalhado no jornal Diário Nacional, órgão do referido partido, entre 1927 e 193218.

O seu vínculo com o PCB é admitido pelo próprio Everardo Dias em diferentes, ocasiões, como em suas declarações diante da polícia política, no Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS), de São Paulo. Conforme declarou Everardo Dias em 1944, “militou como socialista nesta Capital por muitos anos, isto é, até mil novecentos e vinte e três, data em que foi fundado o Partido Comunista”19. Poucos meses depois, em outro depoimento à polícia política, Everardo Dias declarou que se desligou do PCB em 1930, tendo “daí para cá se desinteressando de qualquer movimento partidário”20. Portanto, considerando esses depoimentos, pode-se afirmar que Everardo Dias foi militante orgânico do PCB por no mínimo sete anos.

Convergências e divergências

Essas narrativas históricas expressam de alguma forma os conflitos entre maçons e comunistas travados ao longo do século XX. Em função disso, os autores dos textos parecem olhar com certo estranhamento a forma como se imbricam maçons, socialista e outras expressões ideológicas e políticas na Primeira República. Nas primeiras décadas do século XX, os maçons viviam uma relação de relativa proximidade inclusive com as diferentes correntes socialistas. Sabe-se que,

no Brasil e outros países da América Latina, muitos viam no republicanismo, no positivismo, no anarquismo, no sindicalismo revolucionário, nas várias vertentes de socialismo e em seguida no comunismo, mas também na maçonaria e até em religiões com pretendida cientificidade, como o espiritismo, maneiras de se contrapor à ordem estabelecida e de buscar um lugar ao sol na sociedade renovada21.


Desde o final do século XIX, alguns segmentos maçônicos, ao se depararem com a questão operária, flertavam com as ideias socialistas então difundidas na Europa. Contudo, não era a tomada do poder pelo proletariado nem a construção de um partido operário o que os maçons ansiavam para o Brasil. O socialismo, para eles,

era aquele que poderia ser obtido pelas vias democráticas, dentro da mais perfeita ordem republicana. Disso se conclui que, em meio à amplitude de sentidos que permeavam as correntes naquele momento, os maçons brasileiros propunham a busca da conciliação entre as classes por meio das melhorias sociais22.


Na década de 1920, no momento da adesão de Everardo Dias ao PCB, há um paulatino afastamento dos maçons em relação às correntes políticas do movimento operário. Nesse período, “as positivas referências maçônicas ao socialismo e às lutas operárias foram escasseando até o seu total desaparecimento”23. Trata-se de um período de mudanças na organização política dos trabalhadores, na medida em que “o comunismo de cunho revolucionário, em detrimento do anarquismo e do socialismo reformista, impõe-se como ideologia norteadora da atuação política da classe operária”24.

O período também está marcado pela a proibição da maçonaria nos partidos comunistas. Em 1917, após a revolução na Rússia, o regime soviético proibiu o funcionamento das lojas maçônicas. Essa política antimaçônica se estendeu aos partidos comunistas vinculados à Internacional Comunista (IC), cujo quarto congresso, realizado em novembro de 1922, votou pela proibição da adesão à Maçonaria por parte dos membros dos partidos. Nos termos discutidos no congresso, a Maçonaria representava um processo de infiltração da pequena burguesia em todas as camadas sociais e, devido a seu caráter secreto, seria “uma espécie de Estado dentro do Estado”25. No debate acerca do partido francês, do qual um número considerável de membros pertencia a lojas maçônicas, afirmou-se ser lamentável que o partido francês conservasse,

não apenas a herança psicológica da época reformista, parlamentar e patriótica, como também estabelecesse vínculos bem concretos e comprometedores, por tratar-se da cúpula do Partido, com as instituições secretas, políticas e arrivistas da burguesia radical26.


Os maçons eram associados pelo congresso à burguesia, portanto, a um inimigo de classe que deveria ser combatido. Nesse congresso, os maçons “foram denunciados como ambiciosos, oportunistas e partidários da colaboração de classes”27. Entre as resoluções finais, o congresso recomendou

o Comitê Central do Partido comunista francês a tarefa de liquidar, antes de 1º de janeiro de 1923, todos os vínculos do Partido com alguns de seus membros e de seus grupos com a franco-maçonaria. Todo aquele que antes de 1º de janeiro de 1923 não declarar abertamente à sua organização e dado à público através da imprensa do partido sua ruptura total com a franco-maçonaria ficará automaticamente excluído do Partido comunista sem direito a refiliar-se no futuro. O ocultamento de sua condição de franco-maçon será considerado como infiltração no Partido de agente inimigo e recairá sobre este indivíduo uma mácula de afronta pública diante de todo o proletariado28.


No PCB, a polêmica mais importante acerca da relação do partido com a maçonaria terminou com a expulsão de Antônio Bernardo Canellas, em dezembro de 1923. Canellas representou o partido no IV Congresso, em 1922, cometendo, na interpretação de Carone, uma série de erros, “que o marginaliza de outros membros da Internacional e vai provocar embaraço ao PCB”29. Entre outras declarações, Canellas afirmou que não caberia ao congresso deliberar sobre a questão da Maçonaria, pois, no seu entendimento, o socialismo seria neutro em questões morais e de caráter privado. Canellas afirmou durante o congresso, em referência ao PCB: “o nosso partido, que conta, entre os seus aderentes alguns bons camaradas maçons, cuja ação pró-revolucionária no seio de sua seita é notável e notória, decerto não julgará de grande urgência a abertura de uma campanha contra a Maçonaria”30. No entendimento de Canellas, o único cuidado a ser tomado seria o de evitar que esses militantes vinculados à Maçonaria ocupassem cargos de responsabilidade política no partido. Segundo Canellas, essa proposta também deveria “ser extensiva aos camaradas católicos, positivistas, protestantes, israelitas etc., que ocupem posições de destaque no seio das suas respectivas seitas”31.

Essas posições são o estopim para que, no congresso da Internacional Comunista, o PCB fosse encarado como um partido que conservaria “restos da ideologia burguesa, sustentados pela presença de elementos da Maçonaria e influenciados por preconceitos anarquistas”32. Outras concepções parecem também ter se incorporado às posições teóricas e políticas do PCB, como o positivismo e o socialismo reformista, relacionados em grande medida às lutas pela abolição da escravidão e a implantação da republicam no final do século XIX. Segundo Zaidan Filho (1989, p. 132-3), soma-se a isso “o reforço das influências positivistas e evolucionistas no socialismo internacional da época (incluindo, depois, o próprio ‘marxismo-leninismo’ da III Internacional) que não abandonará tão cedo o pensamento socialista brasileiro”33.

No interior da Maçonaria, o movimento de afastamento em relação ao PCB redundou em ações de condenação do comunismo ou de outras posições consideradas extremistas. Em 1934, no mesmo documento que se proibia na Maçonaria a presença de membros da Ação Integralista Brasileira (AIB), também se orientava como proceder em relação aos comunistas34. Segundo o documento, emitida pelo Grande Oriente do Brasil (GOB), no que se refere ao comunismo seria “preciso distinguir entre os que adotam o materialismo histórico, a dialética marxista, como instrumento, como método de pesquisa, e os que militam no Partido Comunista”35.

No interior da Maçonaria rapidamente se incorporou o discurso anticomunista, que permeava o conjunto da sociedade e começou a se fortalecer principalmente a partir da década de 1930. O anticomunismo assumiu diferentes características, durante o século XX, marcado pelas características particulares dos grupos e lugares sociais em que foi elaborado e reelaborado, sendo possível falar de vários “anticomunismos”. Sabe-se que o anticomunismo é,

antes que um corpo homogêneo, uma frente reunindo grupos políticos e projetos diversos. O único ponto de união é a recusa ao comunismo, em tudo o mais impera a homogeneidade. Se esta diversidade muitas vezes passa despercebida, isto se deve ao fato de que, nos momentos de conflito agudo, os diversos tipo de anticomunismo se uniram contra o inimigo comum36.


O anticomunismo se assemelha a algumas das posições defendidas pela Maçonaria no período. Em documento publicado em 1937, pelo GOB, reafirmava-se o caráter da Maçonaria como “instituição eminentemente nacionalista”, destacando seu combate aos “desalmados inimigos da ordem e do regime, da família e da nação” e criticando as doutrinas “antinacionais” e “oriundas de inspiração estrangeira”37. Por outro lado, o anticomunismo apresentava o comunismo como “o inimigo, o estrangeiro, o ‘outro’ que ameaçava despedaçar a unidade do corpo nacional”, sendo atitudes inaceitáveis “o discurso internacionalista dos comunistas e sua vinculação ao Estado soviético” e devendo a defesa da nação e da unidade nacional “estar acima de quaisquer considerações, fossem elas de natureza social, econômica ou política, e os valores nacionais não poderiam jamais ser suplantados por uma ordem internacional”38.

Com a crescente influência da Guerra Fria, a Maçonaria, bem como o restante da sociedade, viu-se cada vez mais assombrada pelo suposto “perigo vermelho”. Em função disso, no ano de 1949, o GOB publicou novas orientações para lidar com os comunistas, proibindo “a iniciação de elementos que professavam a ideologia comunista, recomendando a máxima severidade nas sindicâncias, de forma a evitar o ‘ingresso de elementos totalitário’ entre os irmãos39. Esse rumo conservador consolidou-se nas décadas seguintes, materializando-se principalmente no apoio maçônico ao golpe civil-militar de 1964. No contexto do golpe, ainda que houvesse tensões internas na Maçonaria, produto de uma suposta política de infiltração comunista na instituição, o seu contingente mais numeroso se opunha aos setores de esquerda. Esses maçons, segundo José Castellani,

defendendo os valores básicos da cultura e do meio social brasileiros, além da tradição maçônica, que fez uma Instituição de cunho político, mas sem ser ligada a qualquer corrente partidária, passou a lutar ativamente pela legalidade constitucional, ameaçadas pelos propósitos continuistas do presidente da República40.


No contexto vivido por Everardo Dias, os desencontros entre maçons e comunistas ainda não tinham ganhado um caráter antagônico. Pelo contrário, parecia haver certa confluência entre essas e outras experiências organizativas na Primeira República, na defesa da ampliação de direitos políticos e sociais. O anticlericalismo unia diferentes correntes no sentido de construção dos diversos modelos propostos para a República, fazendo com que, entre o fim do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, fosse possível identificar grupos em que se articulavam “anticlericais, livres-pensadores, liberais, abolicionistas, anarquistas, socialistas, positivistas, espíritas, maçons e protestantes”41. Para esses setores, o ponto comum era o combate à ordem vigente e a luta por uma sociedade renovada, tendo, para isso, de enfrentar inimigos que exerciam influência sobre a nascente República, como as oligarquias rurais ou mesmo o clero católico.

Outro fator que pode explicar a aproximação entre maçons e socialistas passa, por um lado, pela frágil penetração do marxismo no Brasil e, por outro, pelo desconhecimento dos fatos que se relacionam à Revolução Russa. Nas primeiras décadas do século XX, em âmbito teórico, não havia por parte dos marxistas uma análise teórica acerca do Brasil que pudesse confrontar-se com as demais correntes no embate por um projeto de nação ou de classe. Por outro lado, as contraditórias e escassas informações acerca da Revolução Russa paulatinamente deram lugar ao combate ideológico promovido pelos setores conservadores. Esses setores procuraram se diferenciar da forma mais clara possível da estratégia política dos comunistas, ou seja, a derrubada do capitalismo e a construção do socialismo. Portanto, quando os comunistas mostraram de forma mais clara suas estratégias políticas, que passavam pela transformação radical da sociedade, levaram a cisões e polêmicas entre as diferentes correntes política e teóricas que até então viviam em relativa harmonia.

Considerações finais

Nas primeiras décadas do século, ainda havia espaços de convergência entre maçons e diferentes correntes do socialismo, fazendo com que figuras como Everardo Dias e Cristiano Cordeiro, que circulavam entre anarquistas, comunistas e maçons, não fossem encarados com estranhamento por seus contemporâneos. Contudo, a escrita historiográfica posterior acerca dos acontecimentos da Primeira República, especialmente aquela produzida por corrente ideológicas e organizativas, mostra o quanto esses textos foram afetados pelos acontecimentos do século XX. Essa interferência chega ao ponto de se ocultar certos acontecimentos ou destacar outros, separando os personagens de suas próprias narrativas pessoais e, forçosamente, os aproximando de uma corrente ou outra.

No caso de Everardo Dias, como se trata de uma figura multifacetada e que ao longo da vida transitou em diferentes espaços, busca-se associar o prestígio de sua imagem a algumas correntes políticas e ideológicas em detrimento das demais. Nesse caso, numa perspectiva antimaçônica, pode ser difícil afirmar que Everardo Dias foi membro da Maçonaria. Para uma perspectiva anticomunista, por outro lado, cabe evitar qualquer menção ao fato de ter Everardo Dias ter se aproximado do PCB. Portanto, constroem-se trajetórias que respondem muito mais aos interesses de certos grupos do que à preocupação com a escrita de uma narrativa histórica, fazendo com que muitos elementos da vida pública de vida Everardo Dias sejam selecionados a partir da compreensão política de quem escreve o texto.

1 Marcelo Ridenti, Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política (São Paulo: Editora UNESP, 2010), 18.

2 Ridenti, Brasilidade revolucionária, 20.

3 José Castellani, Ação secreta da maçonaria na política mundial (São Paulo: Landmark, 2001), 134.

4 Entende-se tradição como uma versão intencionalmente seletiva de um passado modelador e de um presente pré-modelado, onde certos significados e práticas são selecionados e acentuados e outros significados e práticas são rechaçados ou excluídos, sendo essa seleção apresentadas e admitida como “a tradição”. Raymond Williams, Marxismo y literatura (Buenos Aires: Las Cuarenta, 2009), 153 [tradução minha].

5 Georges Haupt, El historiador y el movimiento social (Madrid: Siglo XXI, 1986), 17 [tradução minha].

6 Haupt, El historiador y el movimiento social, 17 [tradução minha].

7 Como forma clarificar a exposição, neste texto opta-se por trabalhar com as tipologias comunista, anarquista e maçônica para analisar as diferentes escritas historiográficas produzidas acerca de Everardo Dias, embora sabendo da impressão dessa divisão.

8 Edgard Carone, Classes sociais e movimento operário (São Paulo: Ática, 1989), 187.

9 Carone, Classes sociais e movimento operário, 115.

10 Boletim do Grande Oriente de São Paulo, Anno IX, fevereiro de 1919, no. 2, 25.

11 Edgar Rodrigues, Os companheiros 2 (Rio de Janeiro: VRJ, 1995), 47-48. Astrojildo Pereira, destacado dirigente dos primeiros anos do PCB, foi casado com Ignês, filha mais velha de Everardo Dias com sua esposa Maria Ribeiro Dias, falecida em 1932. Ridenti, “Everardo Dias”, in: Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, Luiz Pericás e Lincoln Secco eds. (São Paulo: Boitempo, 2014), 135-136.

12 Rodrigues. Os companheiros, 48.

13 Rodrigues. Os companheiros, 47. Essa atuação de Everardo Dias na imprensa anticlerical é discutida de forma mais detida em Eliane Moura Silva, “Entre religião e política: maçons, espíritas, anarquistas e socialistas no Brasil por meio dos jornais A Lanterna e O Livre Pensador”, in: Espiritismo e religiões afro-brasileiras: história e ciências sociais, Artur Cesar Isaia e Ivan Aparecido Manoel eds. (São Paulo, UNESP, 2012), 87-101.

14 Castellani. Ação secreta da maçonaria na política mundial, 135.

15 Castellani. Ação secreta da maçonaria na política mundial, 136.

16 Castellani. Ação secreta da maçonaria na política mundial, 136. Uma hipótese para a menção a esse Partido Operário indefinido pode ser referir à fundação do Grupo Zumbi, em 1919, primeira tentativa de articulação do Grupo Clarté no Brasil, que contou com a participação, entre outros membros, de Everardo Dias.

17 O Partido Republicano Paulista (PRP) foi um partido político brasileiro, fundado em 18 de abril de 1873, vinculado às oligarquias agrárias, que predominou na política do estado de São Paulo ao longo da Primeira República.

18 Castellani. Ação secreta da maçonaria na política mundial, 137.

19 DEOPS/SP, Prontuário. 136, Everardo Dias, fl. 35, 09/08/1944.

20 DEOPS/SP, Prontuário. 136, Everardo Dias, fl. 46, 20/11/1944.

21 Ridenti. Brasilidade revolucionária, 18-9.

22 Marco Morel e Françoise Jean de Oliveira Souza, O poder da maçonaria: a história de uma sociedade secreta no Brasil (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008), 189.

23 Morel e Souza. O poder da maçonaria, 191.

24 Morel e Souza. O poder da maçonaria, 191.

25 José Antonio Ferrer Benimeli, La masonería (Madrid: Alianza, 2013), 137 [tradução minha].

26 Los cuatro primeros congresos de la internacional comunista (Madrid, 2008), 465-466 [tradução minha].

27 Ferrer Benimeli, La masonería, [tradução minha].

28 Los cuatro primeros congresos, 466 [tradução minha].

29 Carone, Classes sociais e movimento operário, 113.

30 Antônio Bernardo Canellas, “Relatório de viagem à URSS”, in: O PCB (1922-1943), Carone ed. (São Paulo, Difel, 1982), 31.

31 Canellas, “Relatório de viagem à URSS”, 31.

32 Carone, Classes sociais e movimento operário, 116.

33 Michel Zaidan Filho, Comunistas em céu aberto (1922-1930) (Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989), 132- 133.

34 O integralismo é uma doutrina política tradicionalista, conservadora e de cunho religioso, que, entre outras coisas, defende que uma sociedade só pode funcionar com ordem e paz, com respeito às hierarquias sociais e com harmonia e união. Esse movimento político conservador, que se identificou inclusive com o fascismo, teve seu auge em meados da década de 1930.

35 Morel e Souza, O poder da maçonaria, 211.

36 Rodrigo Patto Sá Motta, Em guarda contra o “Perigo Vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964) (São Paulo: Perspectiva, 2002), 15.

37 Morel e Souza, O poder da maçonaria, 212.

38 Motta, Em guarda contra o “Perigo Vermelho”, 31-32.

39 Morel e Souza, O poder da maçonaria, 228.

40 Castellani. Ação secreta da maçonaria na política mundial, 154.

41 Silva, “Entre religião e política”, 98.


Referências Bibliográficas

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1 Doutorando em História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Contato: michelgsilva@yahoo.com.br

Recebido em: 20 de junho de 2014 - Aceito: 5 de outubro 2014

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