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Actualidades Investigativas en Educación

versão On-line ISSN 1409-4703versão impressa ISSN 1409-4703

Rev. Actual. Investig. Educ vol.14 no.3 San José Set./Dez. 2014

 

Mecanomorfia Educacional: Uma Crítica a Partir da Teoria Comportamentalista de Alberto Guerreiro Ramos

Mecanomorfia Educational: A Review from the Behaviorist Theory of Alberto Guerreiro Ramos

Mecanomorfia Educacional: Una Crítica a Partir de la Teoría Comportamentalista de Alberto Guerreiro Ramos

Everton Marco Batistela1*, Mariza Rotta2*

*Dirección para correspondencia
:


Resumo

A crítica da modernidade se tornou debate comum nas últimas décadas do século XX, empreendida por autores preocupados com a construção de alternativas societárias. Uma das linhas teóricas centrais do debate refere-se ao conceito de racionalidade, tendo sido preocupação central em Weber, Mannheim, Horkheimer, Adorno e outros. Alberto Guerreiro Ramos, expoente sociólogo brasileiro da segunda metade do século XX, propõe uma crítica da modernidade pela perspectiva de sua racionalidade organizacional, condensada em sua Teoria da Síndrome Comportamentalista. Essa teoria tenta compreender os fundamentos e as dimensões básicas da razão moderna: Individualismo, Perspectivismo, Formalismo e Operacionalismo. Em suma, a teoria mostra que vivemos imersos numa razão centrada no mercado, que fomenta comportamentos em detrimento da ação (criativa) e que reduz a capacidade racional humana aos seus aspectos instrumentais e mercadológicos. A partir disso, tentaremos compreender em que medida a racionalidade moderna acaba forjando um paradigma educacional funcionalista, reprodutivista e mecanomórfico.

Palavras-chave: Racionalidade moderna, Alberto Guerreiro Ramos, educação, Brasil.

Abstract

The critic of the modernity became common debate in the last decades of the century XX, undertaken by authors worried with the construction of alternative partners. One of the central theoretical lines of the debate refers to the concept of rationality of the modernity, having been central concern in Weber, Mannheim, Horkheimer, Adorno and others. Alberto Guerreiro Ramos, exponent Brazilian sociologist of the second half of the century XX, proposes a critic of the modernity for the perspective of its rationality organizacional, condensed in its Syndrome Theory Behavioral. That theory tries to understand the foundations and the basic dimensions of the modern reason: individualism, perspectivism, formalism and operationalism. In highest, the theory shows that lived immerged in a reason centered in the market, that foments behaviors in detriment of the action (creative) and that reduces the human rational capacity to its instrumental aspects and marketing. Starting from that, we will try to understand in that measured the modern rationality ends up forging a paradigm educational.

Key-word: Modern rationality, Alberto Guerreiro Ramos, education, Brazil.

Resumen

La crítica de la modernidad se convirtió en debate común en las últimas décadas del siglo XX, emprendida por autores preocupados por la construcción de alternativas solidarias. Una de las líneas teóricas centrales del debate se refiere al concepto de racionalidad, y fue preocupación central en Weber, Mannheim, Horkheimer, Adorno y otros. Alberto Guerreiro Ramos, exponente sociólogo brasileño de la segunda mitad del siglo XX, propone una crítica a la modernidad desde la perspectiva de su racionalidad organizacional, condensada en su Teoría de la Síndrome Comportamentalista. Esa teoría intenta comprender los fundamentos y las dimensiones básicas de la razón moderna: Individualismo, Perspectivismo, Formalismo y Operacionalismo. En síntesis, la teoría muestra que vivimos inmersos en una razón centrada en el mercado, que fomenta comportamientos en detrimento de la acción (creativa) y que reduce la capacidad racional humana a sus aspectos instrumentales y mercadológicos. A partir de eso, en este documento intentaremos comprender en qué medida la racionalidad moderna acaba por forjar un paradigma educacional funcionalista, reproductivista y mecanomórfico.

Palabras clave: Racionalidad moderna, teoría comportamentalista, educación, Brasil.


1. Introdução

Este estudo pretende apresentar um arcabouço conceitual de algumas tendências fundantes do pensamento moderno que são inerentes à vida social do homem contemporâneo, que, grosso modo, estruturam uma forma de conduta que é assimilada no convívio social. Após esta análise, desenvolveremos uma argumentação em torno da necessidade de resgatar alguns elementos na educação que possibilitem superar a sua estrutura reprodutivista, formalista e totalitária, que defendemos ser determinante na ciência, e por consequência, na educação.

Postulamos isso ancorados no percurso histórico da sociedade e do pensamento moderno (ciência moderna), desde a passagem do modo de produção feudal e do pensamento teológico, ao modo de produção capitalista, nas suas várias fases e nos seus vários imperativos ideológicos. É preciso, contudo, entender como isto se dá na grande estrutura social, para ver presente também no campo educacional.

A compreensão disso fica mais clara ao estabelecermos um breve entendimento sobre comportamento. Principiamos por esta análise, porque compreendemos que a sociedade, como também a educação, estão enredadas em comportamentos. As organizações constitutivas da sociedade são, sem dúvida, sistemas cognitivos. E por isso, os membros de uma organização em geral assimilam, interiormente, tais sistemas e assim, sem saberem, tornam-se pensadores inconscientes. Ficam institucionalizados.

A ação inconsciente é então, o comportamento. Ele é uma forma de conduta que se baseia, como diz Alberto Guerreiro Ramos (1989, p. 51), na “racionalidade funcional ou na estimativa utilitária das consequências”. Sua categoria mais importante é a conveniência. Em consequência, o comportamento é desprovido de conteúdo ético de validade geral. É um tipo de conduta mecanomórfica, ditada por imperativos exteriores.

A conduta comportamentalista, conforme a definimos brevemente, surgiu como consequência de um esforço histórico sem precedentes para modelar uma ordem social de acordo com critérios de economicidade que foi transformando o indivíduo em uma criatura que se comporta. É uma disposição socialmente condicionada, que afeta a vida das pessoas quando estas confundem as regras e normas de operação particular com regras e normas de sua conduta como um todo.

A ofuscação do senso pessoal de critérios adequados de modo geral à conduta humana tornou-se uma característica básica das sociedades industriais contemporâneas. Essas sociedades constituem a culminação de uma experiência histórica, que tenta criar um tipo de vida humana associada, ordenada e sancionada pelos processos auto reguladores do mercado. Não apenas o mercado e seu caráter utilitário tornaram-se forças históricas e sociais inteiramente abrangentes, em suas formas institucionalizadas e em larga escala, mas também demonstraram ser altamente conveniente para a escalada e a exploração dos processos da natureza e para a maximização da inventiva e das capacidades humanas de produção. No entanto, o indivíduo, com isso, ilusoriamente ganhou melhora material em sua vida e pagou por ela com a perda do senso pessoal de auto orientação. É muito ilustrativo, neste sentido, a associação dos ideais científicos com os ideais capitalistas.

Está contido neste modelo de sociedade, cujo coração é mercadológico, a astúcia de induzir o ser humano a internalizar a coação como condição normal de sua existência. Espera-se das pessoas que elas acatem as determinações impostas, de cima para baixo, e que definem o papel que necessitam desempenhar. Como resultado, há uma completa aceitação acrítica das determinações referentes aos papeis profissional e social. Passam então a conformarem-se a modelos estereotipados, no convívio social, no trabalho, na escola, etc.

Nesse sentido, para se compreender corretamente as teses iniciais aqui colocadas, procederemos pela apresentação e análise das partes principais constitutivas da Teoria da Síndrome Comportamentalista de Alberto Guerreiro Ramos. Em seguida, partindo do conhecimento dessa teoria, apresentamos a tese do funcionalismo na educação, bem como uma análise crítica do modelo educacional vigente que se configura a partir dessa orientação teórica fundante da modernidade.

2. A teoria da síndrome comportamentalista

Para clarearmos o que dissemos, analisaremos quatro traços principais que atribuímos ser característica da conduta comportamentalista3: a) os fundamentos da individualidade; b) o perspectivismo c) o formalismo; d) o operacionalismo. Ao indicarmos as conexões entre estes quatro traços, no desenrolar da conceituação de ambos, no apontamento das suas características e na estruturação de suas ações sobre a existência humana, vai se constituindo a compreensão dos direcionamentos externos que são impostos sobre o homem.

2.1 O individualismo

Na sociedade medieval, principalmente, os indivíduos encontravam base firme para o desenvolvimento de suas identidades individuais, através de uma firme base meta-histórica (Deus). Nas sociedades modernas, a expressão da identidade é um processo sociomórfico. Ela não se reconhece mais como miniatura de um cosmos maior, mas como um contrato amplo entre seres humanos. Assim, a conduta humana se conforma a critérios utilitários, que, a seu turno, estimulam a fluidez da individualidade. Na verdade, o homem moderno é uma fluida criatura calculista, que se comporta, essencialmente, de acordo com regras objetivas de conveniência.

A ciência moderna, a partir do século XVII, passa a ver a vida humana com um sentimento permanente de transitoriedade. Valores e propósitos não são mais vistos como inerentes às próprias coisas. As coisas estão fadadas a se encadearem num mundo em infinita progressão. Neste mundo não há um tornar-se algo. O que prevalece é um sentimento generalizado de transitoriedade, como diz Witehead (1967).

Por sua vez, a revolução copernicana fez alguns estragos na hierarquização medieval. À semelhança da astronomia, também na sociedade, há uma alteração no eixo gravitacional. Nesse universo infinito, do qual Deus é o verdadeiro centro, cada ponto é, da sua perspectiva, uma espécie de centro relativo. É, portanto, nessa individualização que se revela na busca do "indivíduo espiritual", em oposição ao simples homem como raça, povo, partido, corporação, família ou qualquer outra forma de coletivo, buscando as profundezas da subjetividade, que o homem acabará criando as bases para uma filosofia – ética, teoria jurídica, política – que é o liberalismo.

Uma etapa do liberalismo é o seu caráter político. Toma consciência com as obras de Locke e Montesquieu e tem o seu primeiro grande momento na Revolução Gloriosa inglesa do século XVII. Esse liberalismo político-jurídico, que tem suas raízes na Inglaterra medieval, confunde-se com o desenvolvimento das garantias constitucionais da liberdade.

É, no entanto, com John Locke (1998) que os temas da liberdade e do indivíduo se corporificam numa doutrina política. Suas obras, sobretudo o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil mostram a "vontade" e a "liberdade" como potências do sujeito, quando "ser livre é poder fazer ou não fazer o que se quer". Essa liberdade humana aparece como a responsabilidade de cada um, não pela sua vontade, mas pelos seus atos.

Ao tratar do "estado natural" (também utilizado por Hobbes para justificar o absolutismo), Locke o faz para justificar a liberdade. Para ele a razão, que é a lei natural, ensina toda a humanidade, de que sendo todos iguais e independentes, ninguém poderá prejudicar o outro em sua vida, saúde, liberdade ou posses. A propriedade aparece aí como um direito decorrente do produto de seu corpo e a obra de suas mãos.

Na justificativa da liberdade e contra a monarquia absoluta, afirma que a sociedade civil, produto do "consentimento livre" de todos os seus membros, não pode tolerar que alguém dela faça parte, colocando-se à margem ou acima da lei comum. Surge, assim, uma nova ordem política liberal com a supremacia do poder legislativo, porquanto é o delegado direto dos membros da comunidade. Mas também este não pode afastar-se do bem público. O legislativo não pode ser ininterrupto, nem os legisladores devem ser executores das leis votadas, sendo que eles mesmos estão sujeitos a elas. O executivo deve ser um poder diverso, subordinado ainda assim ao legislativo. Mas o verdadeiro soberano passa a ser o povo, pois é ele, e não o legislativo, o detentor do verdadeiro poder soberano. O poder é um depósito confiado aos governantes, em proveito do povo, e não uma submissão irrestrita. Se os governantes agem de maneira contrária ao fim para o qual haviam recebido a autoridade, o povo pode retirar aquele depósito, isto é, pode retirar aquela delegação, retomando a soberania inicial, podendo confiá-la a quem apresente melhores condições para exercer o poder. Para Locke não há um contrato de submissão, mas apenas uma delegação.

Assim, a ideologia do individualismo funda suas bases sobre a igualdade e a liberdade. Ao desprezarem a hierarquia social, todos os homens tornam-se iguais e livres perante o Estado. As funções determinadas pela posição social que o indivíduo ocupa são abolidas e, conseqüentemente, o Estado não consegue administrar a vida social e individual do homem. Não há referências para se espelhar, e a noção de direitos e deveres se desvanece. O homem moderno abdica de todo sistema de crenças e valores, negligenciando a trajetória de sua história social para consagrar a satisfação pessoal. Ocorre uma desintegração do indivíduo em relação à sociedade. Ele vive em função das suas necessidades individuais, de maneira que a existência do outro varia de acordo com sua necessidade.

O sentimento de transitoriedade das coisas, também merece destaque neste contexto de supremacia da individualidade. É uma consequência da interiorização acrítica, pelo indivíduo, da auto representação da sociedade moderna, que se define como um precário contrato entre indivíduos que maximizam a utilidade, na busca da felicidade pessoal, entendida como uma busca de satisfação de uma interminável sucessão de desejos.

Em consequência de seu caráter competitivo, o mundo social como um todo se torna estranho ao homem, este tenta superar a sua alienação, seja anulando-se através da passiva conformidade a papéis que prevalecem aqui e ali, ou reconhecendo-se, dentro de si mesmo, afirmando assim uma identidade demasiadamente consciente de si mesma. Mas já que o centro ordenador de sua vida não está em parte alguma, sua identidade é de sua própria criação. O indivíduo se isola da realidade e é encorajado a lançar-se a procura da própria individualidade, num mundo ordenado de acordo com regras contratuais de agregação social de interesses competitivos. Quando a condição humana é presumida como apenas social, a individualidade é inevitável.

Então, o forte sentimento individualista, força o homem moderno a agir somente em obediência a prescrições externas, sendo incapaz de ação, apenas de comportamento, já que não delibera livremente. O individualismo constitui-se, então, na primeira peça do quadro que queremos construir para fundamentarmos teoricamente a noção do arcabouço de comportamentos entendidos como suficientes para as condutas humanas.

2.2 O Perspectivismo

Com a interpretação da sociedade como um sistema de regras contratadas, o indivíduo é levado a compreender que tanto a sua conduta quanto a conduta dos outros é afetada por uma perspectiva. É certo que a perspectiva é sempre um ingrediente da vida humana, em qualquer sociedade. Mas somente na sociedade moderna é que o indivíduo adquire a consciência desse fato. Essa sociedade gera um tipo peculiar de conduta, que merece ser referida como comportamento, e para comportar-se bem, então, o homem só tem que levar em conta as conveniências exteriores, os pontos de vista alheios e os propósitos em jogo.

O destaque do Perspectivismo como um aspecto fundamental do alicerce psicológico da ação humana, exige alguns antecedentes históricos para a sua fundamentação. A perspectiva transformou-se em um termo técnico, primeiro no domínio da pintura. Giotto já admite que aquilo que o artista oferece numa tela não é uma cópia da natureza, mas a natureza de acordo com os olhos do pintor. Mais tarde Petrarca repetiria Giotto em sua máxima: “Cada um deveria escrever seu próprio estilo”.

Já no século XVI, na Itália, o Maneirismo assume a característica básica da arte. É aqui que o conceito de propriedade intelectual, desconhecido na Idade Média, é reconhecido. No entanto, nessa época, o perspectivismo não está confinado aos meios artísticos. Constitui uma feição da vida diária de um número crescente de pessoas. Na realidade, o mercado é a força subjacente, geradora da visão perspectivista da vida humana associada.

Pode-se perceber, em Maquiavel, por exemplo, que o perspectivismo é presente na analogia usada por ele na dedicatória d’O Príncipe a Lourenço de Médici. A dedicatória em si, sob esta ótica, é um recurso de conveniência. Mas o que deve ser salientado é a caracterização, que Maquiavel faz, da forma correta de estudar a arte de governar. Ele compara os estudiosos da política com aqueles

que desenham os contornos dos países se colocam na planície para considerar a natureza dos montes, e para considerar como as planícies ascendem aos montes, assim também para conhecer bem a natureza dos povos é necessário ser príncipe, e para conhecer a dos príncipes é necessário ser do povo. (Maquiavel, 1979, p. 3)


Maquiavel recorre a esta metáfora perspectivista a fim de declarar que o estudo da política requer uma integração dos pontos de vista tanto do príncipe quanto do povo.

O príncipe precisa ser instruído sobre a perspectiva do governante para preservar e aumentar seus bens. Precisa compreender a perspectiva do cidadão comum para governar com estabilidade e permanência.

Pode-se ver o Perspectivismo em Maquiavel, também, quando defende que o príncipe não deveria considerar seu dever a prática de qualidades “consideradas boas”, porque elas podem resultar na sua “destruição”. Há qualidades “que parecem vícios, mas que, se ele as pratica, lhe poderão trazer segurança e bem-estar” (Maquiavel, 1979, p.64). É certo que, “todo mundo”, diz ele “admitirá que seria muito louvável que um príncipe exibisse [as] qualidades... consideradas boas... Mas nenhum governante pode possuí-las ou praticá-las inteiramente, por causa de condições humanas que tal não permitem” (Maquiavel, 1979, p. 64). Ele é, na verdade, um dos primeiros pensadores modernos que compreenderam os padrões motivadores imanentes a uma sociedade centrada no mercado. Tais padrões em geral, e o Perspectivismo em particular, tornaram-se os padrões normativos da conduta humana.

Essa perspectiva tem consequências complexas, uma delas dizendo respeito ao lugar de destaque que a ciência moderna conquistou na sociedade contemporânea. Com base no pressuposto de discurso neutro, objetivo e descritivo, a ciência fez da verdade e do conhecimento seu latifúndio exclusivo. Mas a perspectiva nietzschiana levanta a suspeita de que não há uma verdade absoluta e coloca a ciência no mesmo patamar das artes e das religiões, como apenas uma entre as muitas possíveis interpretações da realidade.

Nietzsche considera que a consciência, por estar condicionada ao lugar que ocupa no espaço e a certo momento no tempo, assimila um mundo aparente determinado pelas necessidades do sujeito, incapaz de apreender a objetividade. Sustenta que, para os indivíduos e as espécies, a verdade corresponde a sua maneira de ser, pois suas representações do real constituem a resposta adequada as suas necessidades. Embora limitada ao ponto de vista do sujeito, cada verdade é válida nos limites de sua apreensão.

O sujeito seleciona o que deseja conhecer, sem, no entanto, deformar a verdade. A realidade apresenta inúmeras perspectivas, todas elas verdadeiras e inerentes à condição humana, pois a superação da perspectiva sugeriria a possibilidade de considerar as coisas de um ponto de vista absoluto inexistente.

Assim, ao definirmos que o homem moderno está voltado à observância de determinadas conveniências exteriores e propósitos em jogo, descortinamos um segundo elemento fundamental na estruturação da conduta humana externamente orientada.

2.3 O Formalismo

O formalismo é um terceiro aspecto dos fundamentos psicológicos que inspiram a noção de conduta comportamentalista, que estrutura valores fundamentados em aceitações sociomórficas.

O formalismo ainda é usado hoje em dia como uma categoria explicativa da conduta humana. Na realidade, tornou-se um traço normal da vida cotidiana, nas sociedades centradas no mercado, onde a observância das regras substitui a preocupação pelos padrões éticos substantivos. Exposto a um mundo infiltrado de relativismo moral, o indivíduo egocêntrico sente-se alienado da realidade e, para superar esta alienação, entrega-se a tipos formalistas de comportamento, isto é, se sujeita aos imperativos externos segundo os quais é produzida a vida associada. Torna-se um maneirista. De fato, o maneirismo é a disposição psicológica exigido por um tipo de política divorciada do interesse pelo bem comum, por um tipo de economia unicamente interessada em valores de troca, e por uma ciência, em geral, essencialmente definida por métodos e por praxes operacionais.

O comportamento é uma manifestação do maneirismo e é inteiramente capturado pelos critérios incidentais da arena pública. Seu significado exaure-se em sua aparência perante os outros. Sua recompensa está no próprio reconhecimento como adequado, correto, justo. Seu sujeito não é uma individualidade consistente, mas uma criatura fluida, pronta a desempenhar papéis convenientes.

Uma criteriosa visão da natureza humana fundamentada sobre valores comportamentalistas pode ser extraída da cuidadosa leitura de dois documentos maneiristas, O Cortesão, de autoria de Baldesar Castiglione e da Teoria dos Sentimentos Morais, de Adam Smith. Uma vez que tais documentos são especialmente reveladores em relação ao formalismo.

A corte, tal como apareceu na Itália, na Espanha, na França e em outros países europeus, nas fases iniciais do capitalismo, foi um fenômeno histórico especial. Nada, nos domínios da religião, da política, da economia, do militar, do artístico, ou em outros domínios da vida pública, conquistava caráter normativo, geral, sem primeiro ser filtrado pela corte. Uma vez que a corte influía decisivamente sobre os negócios humanos do dia-a-dia, as maneiras predominantes entre os que eram admitidos em seu círculo transformavam-se em normas de boa conduta em geral. Pela própria identificação com tais maneiras, sem atitude crítica, Castiglione transforma historicamente critérios precários em critérios de boa conduta humana.

Castiglione está basicamente interessado na aprovação social. Assim sendo, descreve o comportamento palaciano como um padrão geral de conduta humana. Ele sugere, inclusive, que a única recompensa da boa conduta é o louvor público. Para ele não há a boa conduta por si só e, em conseqüência, um dos tipos que criou aconselha o cortesão a “prestar atenção ao lugar e à pessoa em cuja presença estiver” e a “regalar os olhos daqueles que o estiverem olhando” (Castiglione, 1976, p. 116). Num período posterior da sociedade ocidental, a arena pública transcenderá a corte e transformar-se-á na própria sociedade. As regras predominantes de comportamento social transformar-se-ão em regras de boa conduta em geral.

Em sua Teoria dos Sentimentos Morais, Adam Smith parece tentar harmonizar o significado de razão dado por Aristóteles, com critérios de economicidade, e substitui aquele significado do patriarca da filosofia pelo sentimento de gregarismo. Escreve ele:

[...] embora a razão seja, indubitavelmente, a fonte das regras gerais de moralidade, e de todos os julgamentos morais que formam através dela, é de todo absurdo e incompreensível supor que as percepções iniciais do certo e do errado possam ser derivadas da razão... Essas primeiras percepções, da mesma forma que todos os outros experimentos em que se fundamentam quaisquer regras gerais, não podem ser objeto da razão, mas de imediato senso e sentimento... A razão, apenas, não pode tornar qualquer objeto particular, por si mesmo, agradável ou desagradável à mente. (Smith, 1976, p. 506)


Em Adam Smith, assim como em todos aqueles que afirmam que a moralidade é compatível com a própria socialidade, o indivíduo é deixado sem um piso firme, metassocial, para a responsável determinação do caráter ético da sua conduta. O Homem não age, propriamente, mas comporta-se, isto é, é inclinado a conformar-se com as regras eventuais da aprovação social. Em consequência, a educação não visa desenvolver o potencial do indivíduo para tornar-se um bom homem, no sentido aristotélico. “O grande segredo da educação”, declara Smith, “é dirigir a vaidade a objetos adequados” (Smith, 1976, p. 417). A correção da conduta humana está na sua mera forma, não em seu conteúdo intrínseco. Smith sucumbe ao fascínio do episódico, cujo modelo é transformado em um padrão de conduta humana em geral.

O que se vê então, no seio do formalismo, é uma substituição dos padrões éticos por regras de comportamento social, baseadas na aparência. Esta atitude vai absorvendo o homem e conduzindo-o a uma realidade sem atitude crítica, expondo um mundo infiltrado de relativismo moral, formando a terceira característica da sociedade comportamentalista.

2.4 O Operacionalismo

O operacionalismo, como é entendido atualmente, tenta responder à seguinte pergunta: Como avaliar o caráter cognitivo de uma afirmação? Há duas respostas básicas para esta pergunta, e uma delas admite a existência de diversos tipos de conhecimento (tal como o metafísico, o ético, o físico), cada um dos quais requerendo normas específicas de verificação. Todavia, há aqueles que alegam que apenas as normas inerentes ao método de uma ciência natural de características matemáticas são adequadas para a validação e a verificação do conhecimento. Esta última resposta constitui a essência daquilo que aqui é denominado de operacionalismo.

O operacionalismo é permeado de uma orientação controladora do mundo e, desse modo, induz o pesquisador a enfocar seus aspectos suscetíveis de controle. Filosoficamente isto ocorre porque o operacionalismo reflete a visão do universo inerente à física clássica. Por exemplo, Galileu ensinou que aquilo que é real no mundo só pode ser considerado como extensão, espaço, massa, movimento e solidez. Consequentemente, o aparelho conceitual para abordar a realidade tem que ser derivado, por força, da matemática. Há pois, uma substituição do abstrato pelo concreto, que Whitehead chama de “falácia da concretidade mal colocada”, (Whitehead, 1967, p. 51).

Hobbes aceitou a doutrina de Galileu e, de acordo com ela, desenvolveu sua noção de “filosofia civil”, expressão que abrange aquilo que é hoje conhecido como ciência política e social. Assim é que afirma ele que sentimentos como amor, benevolência, esperança, aversão, da mesma forma que a conduta humana em geral, “devem ser considerados do ponto de vista da física” (Hobbes, 1959, p. 72).

Uma vez que as noções de bem e de mal, e todas as virtudes e sentimentos pertencentes ao domínio da ética, assumem o caráter de qualidades secundárias, o planejamento de uma boa sociedade equivale ao planejamento de um sistema mecânico, em que os indivíduos são engrenados, por instigações exteriores, para suportar as regras de conduta necessárias para a manutenção da estabilidade desse sistema.

Na raiz do operacionalismo está o interesse em lidar com problemas práticos do mundo e esse interesse pode ser encontrado explícito em Francis Bacon, em seu Novum Organum, onde afirma que “conhecimento é poder”. Coerente com essa orientação é a assertiva de Bacon, de que “aquilo que é mais útil na operação, é o mais verdadeiro no conhecimento” (Bacon, 1968, p. 122). É nesse sentido que o que deturpa o operacionalismo é sua identificação do útil com o verdadeiro. Utilidade é uma noção cheia de ambiguidade ética. Em si mesmo, aquilo que é útil pode servir para ser tanto eticamente sadio quanto eticamente errado no domínio social.

Outra característica do operacionalismo é a recusa em reconhecer às causas finais qualquer papel na explicação do mundo físico e social. Sua inferência é a de que as coisas são, simplesmente, resultados de causas eficientes, sendo o mundo inteiro um encadeamento mecânico de antecedentes e conseqüentes. Hobbes exprime a idéia de causalidade inferida pelo operacionalismo como se segue: “Uma causa final não tem lugar senão naquelas coisas que tem senso e vontade e isso também provarei... ser causa eficiente” (Hobbes, 1959, p. 132).

A coerência Hobbesiana a tal afirmação é expressa na definição da razão, como sendo cálculo de consequências, no sentido mecânico. Ele compreendeu, corretamente, que não se podia aceitar o operacionalismo sem reduzir o homem a uma espécie mecanomórfica de entidade. Assim, conscientemente, ele equipara a liberdade à necessidade. Pensa ele, desta forma, que o homem nunca age, propriamente, mas cede sempre às instigações exteriores, porque sua “vontade... e cada uma das inclinações do homem, enquanto este delibera, são igualmente necessárias, e dependem de uma causa suficiente, tanto quanto qualquer outra coisa, seja ela qual for” (Hobbes, 1940, p. 247). Consequentemente o homem não age, mas se comporta; porque não existe criatividade no universo mecanomórfico.

Por impressionantes que se afigurem os traços básicos da ação humana conduzida por comportamentos, deve-se compreender que os mesmos não estão afetando remotamente a vida das pessoas. Na realidade, constituem o credo não enunciado de instituições e organizações que funcionam na sociedade centrada no mercado. Para ter condições de enfrentar os desafios de uma tal sociedade, a maioria de seus membros interioriza comportamentos e seus padrões cognitivos. Essa interiorização ocorre, geralmente, sem ser notada pelo indivíduo, e assim o comportamento transforma-se numa segunda natureza.

O operacionalismo dissemina a idéia de que é preciso uma orientação controladora do mundo, ao mesmo tempo se deve recusar reconhecer que as causas finais possuam qualquer papel na explicação do mundo físico e social. A ética, virtudes e sentimentos, assumem o caráter de qualidades secundárias, por fugirem ao domínio mecânico. Está estruturado o arcabouço teórico da sociedade comportamentalista, que identifica um ser passivo, que se comporta, sem condições de recuperar a sua essência humana: a capacidade de agir.

3. Funcionalismo educacional

Estes mesmos aspectos vistos na totalidade da sociedade, se fazem presente também no campo educacional, como queremos mostrar a seguir. A crescente complexidade e o agravamento dos problemas sociais, gerados pelo triunfo da racionalidade econômica e da razão tecnológica que a sustenta, levam à necessidade de reorientar os processos de produção e aplicação de conhecimentos, assim como a formação de habilidades profissionais, para conduzir um processo de transição para um outro modelo de produção econômica, política e científica.

O discurso desenvolvimentista definiu a crença de que a transferência de tecnologia moderna seria o meio mais eficaz para reduzir as disparidades entre os países industrializados e os países em desenvolvimento. Acreditou-se que uma articulação funcional do sistema científico-tecnológico ao sistema econômico e produtivo estabelecido, assim como o aproveitamento das vantagens comparativas oferecidas pela dotação de recursos humanos, naturais e tecnológicos de cada país, aplainaria o fosso de desigualdade entre países pobres e ricos, dissolvendo as desigualdades regionais e sociais internas num processo de homogenização tecnológica e cultural.

É neste caminho que a educação brasileira, a serviço dos ideais desenvolvimentistas, está seguindo. Apoiada no paradigma estrutural-funcionalista, a educação, por muito tempo sustentou uma mentalidade em que se acreditava ser a escola a instituição que possibilitaria a cada “indivíduo”, condições de sucesso, sendo a educação como responsável por promover ascensão social.

Para Parsons, a escola funciona como um agente de socialização que treina as personalidades individuais de modo a se prepararem para desempenhar, futuramente, o papel de adultos, úteis e funcionais em sua sociedade. Para ele, ao ingressar na escola, as crianças estariam ainda niveladas, com a mesma carga de conhecimentos, apresentando diferenças apenas quanto ao sexo. Minimizam-se assim, ou desconsideram-se, no contexto escolar, as experiências trazidas pelos alunos de seus lares, do meio em que vivem.

Esta teoria diz-se universalista e polarizadora. O caráter universalista explica-se pela aplicação de tarefas, conteúdos e avaliações comuns a todos os alunos, enquanto a polarização consiste na reunião desses alunos em um único patamar, inferior ao de seus professores, dando à escola a possibilidade de um julgamento comum do aproveitamento dos alunos. Acredita-se que, dentro destes padrões, a oportunidade oferecida a cada um dos alunos é a mesma, dependendo apenas deles o aproveitamento dessa condição de ascenderem socialmente, sendo as desigualdades de resultados explicadas pelos dons naturais possuídos por determinadas crianças.

Na verdade, esta igualdade de possibilidades é bastante questionável. Além de ignorar os processos de socialização já vividos pela criança fora da escola, desconsidera as diferentes habilidades de aprendizado e a própria pressão social que acaba por determinar aos desfavorecidos a impossibilidade de atingir qualquer mudança em suas condições. É o que critica Bourdieu no seguinte fragmento:

É provavelmente por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da "escola libertadora", quando ao contrário tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultura e o dom social tratando como dom natural. (Bourdieu, 2003 p. 37)


Assim, o que na teoria de Parsons é apresentado como libertador nada mais é que uma omissão do sistema diante da ineficácia da proposta educacional vigente. Consente que todas as medidas possíveis para sanar as desigualdades e para promover a possibilidade de ascensão social já tivessem sido aplicadas, restando a responsabilidade pela vitória ou fracasso ao próprio aluno.

A educação é, portanto, responsabilidade única da própria criança, ou seja, tendo tido ela as mesmas oportunidades - conteúdos, avaliações e tarefas iguais - que os outros alunos, seu insucesso corresponderia somente à sua indiferença, desinteresse e falta de dons que lhe privilegiem na aquisição de novos conhecimentos. Desconsidera-se qualquer bagagem social que possa intervir neste processo, ou mesmo a inadequação do aluno a este sistema de ensino (ou do sistema de ensino para o aluno).

Daí dizer que a seleção promovida pela escola dá-se pela valorização dos dons e talentos possuídos pela criança. Não se percebe que são, na verdade, habilidades adquiridas no meio cultural em que vivem. Isso quer dizer que, na acepção de Parsons, se possuísse “dons”, a criança poderia se mover socialmente, além de conhecer o sucesso escolar.

Esta fundamentação Parsoniana estrutural-funcionalista é que embasa nossa central preocupação: a de que a ciência moderna, e por pressuposto a educação corrente, estão atadas às mesmas causas (positivistas, totalizantes, uniformalistas, estruturalistas e funcionalistas) nascidas do jogo da repartição dos custos e benefícios deixados por uma ordem homogenizante, unipolar, que dita as normas do comércio, da justiça, da verdade e da equidade. Diante da racionalidade econômica, funcional e instrumental que domina o espaço da ciência e da educação, propomos uma compreensão educacional (e portanto uma nova racionalidade) baseada em novos princípios éticos, valores culturais e potenciais produtivos, nascidos da consubstanciação entre educação e meio.

Propor-se a uma compreensão do significado de meio em educação implica atribuir sentido ao cotidiano e ao seu entorno. Professores, alunos e comunidade escolar leem, na educação, aspectos significativos de acordo com sua perspectiva cultural. Contudo, refletir sobre a educação atual não é tarefa das mais fáceis em uma época caracterizada pela diversidade de pensamentos, paradigmas e ações. Vive-se a heterogeneidade das abordagens sociais, das leituras de mundo, o esfacelamento das grandes teorias que explicaram as formações sociais até agora. A sensação é de caos, de generalidades, de falta de ancoradouro e de explicações totalizantes até então consideradas capazes de serem obtidas. Cabe, então, refletir sobre como se chega a uma forma de definição de meio, compreendendo-a não como única, mas por ser diversa, em acordo com a multiplicidade de saberes possibilitados pela multiplicidade de abordagens que nossos tempos dispõem.

Daí que entendemos que a educação tem mais significado quando está profundamente imbricada, (integrada), com a comunidade. Assim, o mundo não é somente um amontoado de objetos a serem contemplados com toda serenidade. Ele não se reduz a este amontoado de coisas inertes, ele apresenta-se de uma maneira sincrética e sobretudo dinâmica. Não existe de uma parte o indivíduo e de outra o meio, mas um complexo indivíduo-meio. Assim, não é exagero dizer que a relação indivíduo-meio constitui dois aspectos da mesma realidade. Decorre disto que, se no caso dos animais, há uma acomodação à realidade do ambiente, no caso do homem, há uma modificação, adequando-o à sua convivência. A mudança neste caso não é unilateral, é dialética, há reciprocidade entre indivíduo e meio. Muda um, modifica-se o outro. Assim não se pode pretender que o complexo indivíduo-meio se destrua e se reduza ao nível do homem, como um ser psiquicamente autônomo e distante do mundo. Que ele apresenta uma diferença qualitativa com relação às situações de vida que o rodeiam, é um fato inquestionável, mas ele não se fixa na sua condição superior e, portanto, não pode abdicar da realidade (corpórea por exemplo) de que é um prolongamento do meio e continuidade superior do mesmo.

O crescimento progressivo do homem, o equilíbrio interior do complexo indivíduo-meio, constituem-se a partir de uma realidade já existente, de uma evolução anterior; de tal rendimento, que é anterior à consciência do sujeito, é que se vai compor a constituição de si mesmo da pessoa. Porém, no mesmo instante em que se constata uma interdependência entre indivíduo e meio, há, notadamente uma clara superioridade do primeiro. O comportamento do homem se apresenta prodigiosamente enriquecido e, por ele mesmo, radicalmente diferente. Cabe perguntar aqui: se em razão do progresso humano de seu sistema de significação, pode-se tomar o homem como sendo essencialmente constituído a partir de seu processo abstrativo? No mundo humano, o ulterior modifica a constituição do anterior. Em razão disto pode-se dizer que a objetividade não é dom, mas adquire-se historicamente, por um processo de aprendizagem e no intercâmbio indivíduo-meio.

Contudo, não é suficiente que a educação tire sua referência do meio e em seguida o abandone por não ser essencial à abstração, supondo um salto imediato e imprevisível a outro nível de consciência como faz a educação formal, estabelecendo uma separação entre indivíduo e meio. Esta cisão radical operada antes de tudo entre o sujeito e o objeto é que queremos por em causa, averiguando aí as implicações na ação educativa. Toda a questão está em saber, com efeito, se é através da observação dos fatos anteriormente estabelecidos que se define uma certa progressão aplicável à estrutura da aprendizagem, ou o contrário, a estrutura representativa (conhecimento teórico) constitui-se independente do meio.

Nossa perspectiva se firma no postulado de que é a partir do vivencial que se busca a organização das demais estruturas, como a inteligência espacial e a inteligência racional ou lógica. Então, é graças à ação correlata dos processos de assimilação do meio e acomodação ao meio que o homem eleva-se progressivamente à inteligência conceitual. Por um lado, a assimilação recíproca dos esquemas e das múltiplas combinações do meio favorecem a acomodação; de outro lado, a acomodação aos movimentos do meio prolonga-se em assimilação, garantindo aquisições novas e a manutenção das antigas.

Deve-se, contudo observar certo cuidado ao se postular tais afirmações, consistindo principalmente em evitar certa redução do psicológico ao biológico ou de sobreposição de um ao outro. Portanto, é necessário estabelecer que há uma reciprocidade de necessidades; tanto o meio é necessário ao indivíduo, quanto este ao meio, na medida exata. Daí se tem que, parte do indivíduo integra-se ao meio e outra parte lhe é constituição própria, formando o que chamamos de complexo indivíduo-meio.

4. Considerações finais

Fazendo intervir agora aquela ideia inicial, do meio como sendo o mundo da vida, com as especificações que acabamos de expor, parece não restar dúvidas que o ensino tradicional falha não tanto por ser disciplinar, mas por não orientar e impulsionar as capacidades cognitivas, inquisitivas e criativas dos estudantes, e por estar desvinculado dos problemas de seu contexto sociocultural e ambiental. Neste nível é que vem corroborar a compreensão do meio, como fomentadora de um pensamento da complexidade que seja crítico, participativo e propositivo.

O discurso dominante do desenvolvimento sustentado está levando à uma readaptação das consciências, atitudes e capacidades, por ter, principalmente, institucionalizado o ideal da educação. Contudo, a formação vai além de um processo de capacitação que busca reciclar e ajustar as habilidades profissionais às novas funções e normas dos processos produtivos e para a criação de controle das novas tecnologias. De acordo com Leff (2002, p. 254) a formação “ultrapassa a assimilação passiva e a reprodução crítica e um modelo global homogêneo, que é questionado pelos interesses e perspectivas que definem o campo diverso e conflitivo do desenvolvimento sustentável”.

A formação é um processo de criação de novos valores e conhecimentos, vinculados a transformação da realidade. Inserida aí, a compreensão do meio articula as formações ideológicas e conceituais com os processos de produção e aquisição do conhecimento e saberes, num processo histórico de transformação social.

O conceito anterior de meio, entendido como sendo a totalidade dos organismos e as condições necessárias a sua vida que constituem um todo, indica, claramente, a marcante influência do pensamento biologista, além de entender a totalidade, circundante do indivíduo, como constituídas de interdependências, estrategicamente articuladas que colaboram para que aquele meio seja constituído.

A compreensão do meio, por sua vez, é fundada na diversidade das condições naturais e culturais que o definem. Portanto, não na unicidade totalizante, mas na complexidade globalizante. Assim, a questão do meio oferece uma visão renovada do saber que traz implícito um novo sistema de valores, que, por consequência, promoverá nova formação, nova moralidade e novas habilidades.

Na forma como, tanto o edifício do conhecimento, quanto o sistema educacional contemporâneo foram constituídos, inscrevem-se no seio do aparelho ideológico do estado, reprodutor do modelo social desigual, que, como diz Leff (2002, p. 256) “reproduz o modelo social desigual, insustentável e autoritário, através de formações ideológicas que moldam os sujeitos sociais para ajustá-los às estruturas sociais dominantes”. Por isso mesmo, que não basta uma retroalimentação entre o meio e a educação, é preciso, mais que isto, reconstruir o arcabouço epistemológico da educação, sem esquecer que isto deve derivar das práticas concretas que se desenvolvem no meio.

Implica tomar também, o ambiente em seu contexto físico, biológico, cultural e social, como uma fonte de aprendizagem, como uma forma de concretizar as teorias na prática a partir das especificidades do meio. Porém, diz Leff (2002, p. 208) o saber

é um projeto de revisão e reconstrução do mundo através de estratégias conceituais e políticas que partem de princípios e fundamentos de uma nova racionalidade que foram desterrados e marginalizados pelos paradigmas dominantes da ciência, como impurezas do conhecimento e externalidades do processo de desenvolvimento.


Desta forma então, a pedagogia do meio é consubstanciada com uma nova racionalidade e com um novo saber, que entendem a realidade como sistemas complexos integrados por processos diferenciados de ordem natural e cultural.

Diferentemente da pedagogia em voga, que é economicista, mercadológica, positivista, a pedagogia do meio trabalha no sentido de ensinar a perceber e internalizar a complexidade, diversidade e potencialidades do ambiente, exatamente em oposição a fragmentação da realidade. Neste sentido, a pedagogia deverá gerar condições de compreensão dos processos inter-relacionados e interdependentes (não estáticos, homogêneos, regidos por leis universais) e de compreensão da causalidade múltipla dos fatos (complexidade da realidade).

Portanto, a construção de uma nova racionalidade exige a transformação dos paradigmas científicos tradicionais e a produção de novos conhecimentos, o diálogo, hibridação e integração de saberes, assim como a colaboração de diferentes especialidades. Isto gera novas perspectivas epistemológicas e métodos para a produção de conhecimentos, assim como para a integração prática de diversos saberes no tratamento de um problema comum (Apostel, Berger, Briggs y Michaud, 1975). Traça-se assim “novas estratégias teóricas para a produção científica e a inovação tecnológica” (Leff, 2002), envolvidas missivamente com um novo ideal de retotalização do saber, que não seja somente a soma nem a integração dos conhecimentos disciplinares herdados, ou a busca de um paradigma globalizante, ou organização sistêmica do saber, e por fim, que não seja a uniformização conceitual por meio de uma metalinguagem interdisciplinar.

3 Os conceitos usados aqui (individualismo, perspectivismo, formalismo e operacionalismo) foram retirados da obra de Alberto Guerreiro Ramos, referenciada no final deste artigo.


Referências

Apostel, Leo, Berger, Guy, Briggs, Asa y Michaud, Guy. (1975). Interdisciplinariedad. Problemas de la Enseñanza y de la Investigación en las Universidades. México: Asociación Nacional de Universidades e Institutos de Enseñanza Superior (Trad. de Francisco J. González). México: Anuies.         [ Links ]

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Whitehead, Alfred North. (1967). Science and the modern world. New York: The Free Press.         [ Links ]

*Correspondencia a:
1 Docente da Universidade Tecnológica do Paraná–UTFPR, Brasil. Filósofo, Mestre em Sociologia e Doutor em Sociologia. Correio eletrônico: em.batistela@hotmail.com
2 Docente da Universidade Comunitária da Região de Chapecó-UNOCHAPECÓ, Brasil. Pedagoga, Mestre em Ciências Sociais e Doutoranda em Educação. Correio eletrônico: mzrotta@gmail.com

Ensayo recibido:13 de febrero, 2014 Enviado para corrección:16 de julio, 2014 Aprobado: 22 de setiembre, 2014

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