Introdução
O processo de parturição sofreu mudanças significativas no decorrer dos anos. Historicamente, a assistência ao parto ficava sob a responsabilidade das parteiras leigas, cuja atuação se sustentava no conhecimento empírico perpetuado intergeracionalmente. No entanto, estas mulheres eram pessoas de confiança das parturientes. Nesse contexto, o trabalho de parto e o parto eram protagonizados no ambiente doméstico tendo seu processo fisiológico respeitado1.
A partir de 1940, com a finalidade de minimizar os altos índices de mortalidade materno-infantil passou a prevalecer a indicação de hospitalização para o acompanhamento do trabalho de parto e do parto propriamente dito e daí em diante, para seu manejo a mulher precisou sair do âmbito familiar para ser hospitalizada. Essa mudança desenvolveu um sentimento de despreparo nas mulheres, que passaram a acreditar serem incapazes de parir sem que houvesse intervenção médica2.
Além do distanciamento familiar, a institucionalização do parto contribuiu para que as mulheres aceitassem passivamente, o progressivo processo de medicalização do corpo feminino sendo submetidas a intervenções rotineiras e desnecessárias. Nesse cenário, emerge a violência obstétrica, que pode ser descrita como atos de violências e/ou danos contra o binômio mãe-filho durante o cuidado obstétrico profissional os quais violam os direitos sexuais e reprodutivos 1, (3.
Neste sentido, constituem exemplos de violência obstétrica a negligência na assistência, maus tratos físicos e/ou verbais, uso rotineiro da episiotomia, episiorrafia, uso da ocitocina, da manobra de Kristeller, da cirurgia cesariana sem indicação clínica, da tricotomia, da lavagem intestinal, da indicação de repouso no leito prolongado, do excesso de exame de toque vaginal e quaisquer outras ações ou procedimentos realizados sem o consentimento da mulher. Soma-se a isto, o descumprimento da Lei Federal nº 11.108 de 2005, conhecida como Lei do Acompanhante, que permite à mulher a presença de um acompanhante de sua escolha, durante todo o processo de parturição3-(5.
A pesquisa intitulada Nascer no Brasil: Inquérito Nacional Sobre o Parto e Nascimento contou com a participação de 23.894 entrevistadas e foi pioneira em oferecer um panorama nacional sobre a situação do parto e nascimento no Brasil. Dados da pesquisa revelaram que entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012, 46% dos partos no setor público e 88% no setor privado foram realizados por meio de cesariana, valores acima do recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que variam entre 10 e 15%.6)- (7
É incontestável que a cesariana, se realizada quando necessária é essencial na diminuição da morbimortalidade materna e neonatal sendo indicada em casos de acretismo placentário e mulheres infectadas pelo vírus de herpes simples, por exemplo. Nesses casos, submeter à mulher ao parto vaginal evidencia a sua exposição e/ou de seu filho a riscos evitáveis com a cesariana. Entretanto, fatores ligados à conveniência e comodidade médica, rapidez e melhor rendimento financeiro propiciam que os profissionais médicos exponham as mulheres à cesariana, mesmo não havendo indicação técnica, submetendo o binômio mãe-filho aos riscos inerentes a um processo cirúrgico sem que haja necessidade.3, (8
A magnitude dessa problemática, que aponta a mudança de paradigma no campo obstétrico, se evidencia nos dados apresentados na literatura onde, somente 5% dos partos considerados de baixo risco ocorreram sem intervenções desnecessárias sendo mais frequentes: o uso de ocitocina e aminiotomia (40%), manobra de Kristeller (37%) e a episiotomia (56%). Além disso, somente 18,8% das mulheres tiveram assegurada a presença do(a) acompanhante9)- (10), (5.
Estudos demonstraram que muitas mulheres sofreram violência obstétrica e que as vítimas nem sempre conseguiam reconhecer a violência por acreditarem que os(as) profissionais de saúde detêm o conhecimento científico e por esse motivo sabem o que deve ou não ser feito durante o processo de parturição, refletindo em aceitação de tudo que é imposto. No que se refere à concepção das participantes sobre a forma de violência sofrida, estas revelaram terem sido submetidas à manobra de Kristeller, ausência de técnicas de alívio da dor, descaso, exames de toques invasivos constantes ou agressivos, episiotomia sem consentimento e privação da liberdade ao acompanhante11)- (12.
Discutir violência obstétrica requer considerar que, na maioria das vezes, este dano têm origem e manutenção nas relações que envolvem a desigualdade de gênero, que emprega uma posição desigual das mulheres, principalmente das gestantes. No cenário hospitalar, a violência é atenuada pelas relações de poder estabelecidas entre profissionais de saúde e mulheres e no processo de parturição são empregadas com tentativas de dominação do corpo feminino por meio de violência física, verbal e a privação do direito de escolha13)- (14.
O estudo justifica-se pela necessidade de averiguar, no cenário obstétrico local, se este tipo de violência faz parte do cotidiano das mulheres atendidas em unidade hospitalar de referência. Assim, o conhecimento desta realidade poderá ser útil para a implementação de políticas públicas relacionadas à saúde materno-infantil que assegurem a realização do parto e nascimento humanizados.
Nesse sentido, o estudo objetivou averiguar o conhecimento de mulheres sobre a violência obstétrica e verificar as formas de violência obstétrica vivenciadas por mulheres durante o processo de parturição.
Materiais e método
Trata-se de pesquisa descritiva de caráter qualitativo realizada em uma maternidade pública filantrópica do interior baiano, no Brasil, com 20 mulheres em processo de parturição.
Os critérios de inclusão das participantes foram: ser maior de 18 anos, independentemente do tipo de parto a que foi submetida. Foram critérios de exclusão: mulheres emocionalmente abaladas e aquelas que por algum outro motivo estiveram impossibilitadas de responder aos questionamentos.
A coleta dos dados ocorreu através de entrevista semiestruturada, realizada entre março e abril de 2018, tendo as seguintes questões norteadoras: (1) Comente sobre o que você entende por violência obstétrica; (2) Relate se no pré-natal que você realizou foram abordadas as etapas e os procedimentos do parto e (3) Descreva o seu parto e fale os procedimentos que considerou violento para você e/ou para seu(s) filho(s). As entrevistas foram realizadas no leito das mulheres e registradas em gravador mediante a autorização prévia e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O conteúdo das entrevistas foi submetido à análise de conteúdo temática proposta por Bardin, que divide-se em três etapas: a pré-análise que organizou o material empírico, sistematizando-o por meio de operações sucessivas de análise (leitura flutuante, constituição do corpus e preparação do material); a exploração do material, etapa em que foram administradas as regras sobre o corpus (codificação: regras de recorte e de contagem, classificação e agregação: categorização); e o tratamento dos resultados, inferência e interpretação, recorrendo-se a operações estatísticas simples, validação, inferências e interpretação15.
A constatação da saturação teórica para as categorias e respectivas subcategorias ocorreu a partir da vigésima entrevista quando novos temas não foram acrescentados de maneira consistente, não havendo novas ocorrências. Por sua vez, a coleta de novos dados por meio de novas entrevistas acrescentaria supostamente poucos elementos que pudessem nortear a discussão considerando à densidade teórica obtida16.
Considerações éticas
A pesquisa obedeceu à Resolução 466/201217, do Conselho Nacional de Saúde e foi apreciada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia sob CAAE: 80892417.1.0000.0055 e parecer nº 2.450.645. O anonimato das entrevistadas foi mantido identificando-as por meio da letra “E” de entrevistada, seguida de um algarismo numérico, correspondendo à ordem de realização das entrevistas.
Resultados
Das 20 mulheres participantes da pesquisa, em relação ao tipo de parto, 14 (70%) tiveram parto normal e seis (30%) foram submetidas ao parto cesáreo, sendo 10 (50%) autodeclaradas pardas, 16 (80%) com idade média entre 18 e 30 anos, nove (45%) com ensino fundamental incompleto, 11 (55%) em união consensual e 15 (75%) com renda familiar inferior a um salário mínimo. No que tange aos antecedentes obstétricos, 17 (85%) eram multíparas (tiveram mais de um filho(a)), 8 (40%) tiveram apenas parto vaginal, 7(35%) experienciaram tanto o parto normal, quanto a cirurgia cesariana, 3 (15%) foram submetidas apenas à cesárea e 2 (10%) relataram ter sofrido aborto espontâneo.
Da análise das entrevistas emergiram duas categorias temáticas: 1) (Des)Conhecimento de mulheres sobre a violência obstétrica; e 2) Vivência de Violência obstétrica sob a ótica de parturientes.
(Des)Conhecimento de mulheres sobre a violência obstétrica
O estudo retratou um cenário onde a maioria das entrevistadas relatou não conhecer a violência obstétrica e nunca ter escutado o termo previamente.
“Não [...] Como assim? Eu nem entendo essas coisas direito” (E03).
“Não, eu não sei nem o que é para te falar a verdade. É tipo estupramento, não é? [...]. Nunca me informaram sobre isso. Não vou mentir. Na escola mesmo e nem na minha casa não” (E15).
“Não, nunca ouvi falar” (E17).
Em contrapartida, uma parcela menor das entrevistadas informou conhecer o termo, identificando alguns procedimentos e posturas adotadas por profissionais que são considerados como violência obstétrica, dentre eles a realização de procedimentos clinicamente desnecessários.
“Foi colocado pelo Ministério da Saúde os direitos da mulher [...] alguns métodos hoje são proibidos no parto, tudo tem que ser perguntado para que seja humanizado [...] a manobra de Kristeller é proibido. Aquela questão da episiotomia tem que ser perguntado [...] se a mulher vai querer ou não. Hoje até a ocitocina tem que ser aplicada se for de algum caso de risco ou pra poder ajudar [...]” (E07).
“Eu sei que às vezes faz o parto forçado, às vezes obriga a mulher a ter o parto normal que nem é para ser normal, essas coisas assim” (E05).
Algumas mulheres referiram que a escuta ativa não constitui realidade do serviço ao tempo que ratificaram a importância de terem suas escolhas respeitadas durante o processo de parturição.
“Já que [o parto] é uma coisa tão natural [...] as pessoas transformam isso em uma coisa não natural, não dá liberdade para mulher fazer o que quer [...] os procedimentos que a mulher não quer que faça com ela, a episiotomia sem necessidade, colocar em uma cesárea sem necessidade e se a mulher não quiser cesárea” (E14).
“Eu sei que se der corte sem a pessoa pedir é violência [...] querer fazer uma cesárea forçada, um parto normal também forçado. Porque eles têm que fazer o que a gente pedir [...]” (E08).
Além disso, foi relatado pelas participantes que a forma grosseira de realizar procedimentos também se enquadra em situação de violência obstétrica.
“Eu acho que é uma grosseria que fazem com algumas pessoas, de não ter aquele carinho, aquele cuidado com a pessoa [...]. São seres humanos, então é preciso ter o máximo de cautela possível, porque pode acontecer o que acontece várias vezes de machucar o bebê, machucar a mãe [...] a pessoa já está passando por um momento especial aí vem uma pessoa grosseiramente fazer isso? É uma violência que não tem tamanho, tanto quando é com a mãe e pior ainda quando é com o bebê que é uma pessoa inocente, que acabou de chegar ao mundo e sofre com uma agressividade, uma violência. [...] Porque a pessoa está ali sensível, passando por um momento especial e a pessoa vem com grosseria, com violência” (E11).
Por fim, as entrevistadas elencaram que a agressão verbal sofrida no processo de parturição é uma forma de violência obstétrica.
“Violência obstétrica é o médico, enfermeira, tipo debochar da cara da pessoa: Na hora de fazer foi bom! [...]” (E16).
“Sei que é quando a pessoa é maltratada não é? Assim, no hospital [...]. Xingamento, essas coisas assim um pouco chata [...]” (E20).
Vivência de violência obstétrica sob a ótica das parturientes
Observou-se que, embora muitas entrevistadas tenham negado conhecer a expressão violência obstétrica, durante o relato de como ocorreu o trabalho de parto e no parto foi possível a identificação de várias situações que caracterizam este tipo de violência. Estas ocorrências se personificam através de violência verbal e não verbal consolidadas desde a triagem até o período do pós-parto, por parte de profissionais de diversas formações acadêmicas.
“O médico me falou aqui [...] porque não tinha me operado [ligadura de trompas], porque eu já tenho 28 anos aí eu disse que não, porque eu não tinha conversado com o doutor [médico obstetra] [...]. Aí ele falou: _ É, porque agora filho está dando dinheiro!. Eu acho que o povo daqui, tem uns médicos que são muito ignorantes, que acham que porque a gente precisa deles, eles têm que tratar a gente mal e não pode, não é? [...] eu não vou parir para vender, para poder dar dinheiro” (E08).
“A única coisa que eu não gostei aqui foi que eu entrei, imagina com oito centímetros de dilatação eu estava sentindo muita dor, muita dor mesmo! Eu achei que fui muito reprimida sabe? Eu cheguei lá e a enfermeira: _ Ah, você tem que ficar quieta! Deita aí!. E eu não estava conseguindo deitar e aí eu pedi: _ Deixa só passar essa contração! [...], porque na contração não dá para deitar e ela fez tipo, sabe? Eu não achei que teve trato [...]” (E14).
Além disso, as entrevistadas relataram também não ter tido a atenção adequada dos profissionais, ficando desassistidas durante o trabalho de parto, gerando uma série de preocupações, principalmente em relação ao estado de saúde do filho.
“Eu queria bastante atenção para fazer a coisa certa, para não fazer nada errado e que prejudicasse meu filho [...] eu não estava fazendo força antes porque, uma me dizia: _ Faz força! E a outra me dizia: _ Não faz! e aí eu não sabia se eu fazia força ou não fazia. Toda hora eu chamava a enfermeira [...]” (E06).
“Eu falava aqui que estava passando mal, teve uma hora que eu ia desmaiar e minha irmã falou para eles, eles disseram: _ Ah, é normal, manda ela respirar!, eu caí aqui e eles nem aqui veio. Eu não tive cuidado nenhum, só mesmo na hora que estava para ganhar, que estava saindo já [...] fez só uma avaliação no coraçãozinho do bebê quando eu cheguei e não fez mais [...], minha irmã chamava, chamava, eles diziam: _ Ah, tem que ser assim mesmo, porque ela está com cinco centímetros de dilatação, tem que ter mais cinco. Eu passando mal aqui, minha irmã chamando eles e eles fizeram o que? Ficaram a madrugada toda dormindo. Eles falavam: _ Espera aí que eu já vou, espera aí que eu já vou. E nesse espera aí eles não vinham, saíam, iam comer [...]” (E03).
A realização da amniotomia sem indicação clínica e sem o consentimento da mulher foi um dos procedimentos mais citados.
“Foi ele mesmo que rompeu eu nem vi a hora, foi com um pauzinho amarelo. Ele não me perguntou não, só disse que ia me ajudar para o bebê nascer rápido” (E12).
“Ele não perguntou se eu queria não, ele já veio já fazendo [...] pensei que era uma coisa normal, aí eu fui e deixei. Ele só chegou assim e falou assim: _Você está sentindo muita dor? Aí eu falei que sim, aí ele falou: _ Então o neném vai nascer agora! [...]” (E02).
Além da amniotomia não consentida destacam-se os relatos de outros procedimentos dolorosos para a mulher como a agressividade na realização do exame de toque vaginal, dor no momento da sutura de cirurgia cesariana e o uso de medicamentos para induzir e/ou acelerar o trabalho de parto.
“Só que na hora que foi costurar eu senti muita dor, eu acho que a anestesia foi embora” (E09).
“Eu não gostei do jeito que ela [médica] me tocou, foi de certa forma um pouco violento, grosseiro. Foram duas vezes que eu reclamei até e ela foi violenta nas duas vezes, foi grosseira e violenta [...], eu senti dor e ela me mandando colocar força” (E11).
“O parto é assim: quando a gente começa a sentir aquelas dores, aí as dores cada vez mais vêm mais forte, porque bota a gente no soro” (E01).
Outra situação relatada foi o excesso de exames de toque vaginal, principalmente na triagem, por serem realizados pelas enfermeiras e repetidos pelos médicos que avaliaram as mulheres.
“Na triagem eu fiz com a enfermeira o toque e depois fiz com o doutor” (E12).
“Eu acho que foram uns 10 toques que eu recebi” (E08).
Além disso, foi relatada a realização de episiotomia e episiorrafia sem consentimento, somado ao fato de a parturiente não ter sido informada sobre a realização destes procedimentos.
“Peguei [...] ponto. Eu não senti nada não, só fui saber depois que estava costurando. A dor é tanta que eu nem senti foi nada, na hora se ele me avisou eu não lembro, eu estava tão azuada de dor que eu nem sei se ele cortou ou costurou. Ele costurou por fora, mas eu não sei, sei que costurou. Mas eu acho que lascou na hora, porque eu não vi ele usando nenhum bisturi” (E05).
Reitera-se que as entrevistadas destacaram a ocorrência da violência obstétrica vivenciadas por outras mulheres durante a estadia em maternidades.
“Fui [violentada], fui e não é só eu. Muitas passam aqui também como eu [...]. Que nem aconteceu com minha irmã [...] eles chegaram lá [outra maternidade] e deixaram ela lá jogada e acabou acontecendo que ela perdeu o neném, o neném nasceu de cinco meses e o neném morreu. E a mesma coisa seria aqui, se tivesse de acontecer isso comigo aconteceria” (E03).
“Essas coisas a gente escuta muito o povo falar [...] Eu já passei por isso, o meu primeiro filho [...], o segundo [...] e agora aqui” (E08).
Uma das entrevistadas relatou que seu preposto acompanhante foi impedido de entrar na unidade, porque estava usando uma bermuda, traje considerado inapropriado. No entanto, não se sabe se este tipo de determinação faz parte do regimento interno da unidade.
“Não tive [acompanhante], porque só veio o meu marido e o pai do meu marido e aí como eu senti as dores, assim, foi bem rápido, foi só arrumar o carro e as coisas e ele veio com a roupa do corpo. Ele estava de bermuda e não pode entrar e eu fiquei sem acompanhante. Ele [sogro] também estava de bermuda e não pode entrar e também eu acho que não pode, que só pode o pai [...] ele [esposo] teria me apoiado também, não é? Me ajudado. Eu não me sentiria sozinha” (E06).
Discussão
Os resultados deste estudo promovem a reflexão sobre o desconhecimento das mulheres sobre seus direitos sexuais e reprodutivos, assim como, da violência obstétrica fatores que aumentam a vulnerabilidade destas ocorrências. Por outro lado, nota-se que as poucas entrevistadas que afirmaram ter conhecimento sobre a problemática o possui de forma superficial, com destaque para as ocorrências de violência física. Assim, situações a exemplo da amniotomia não consentida e impedimento de que a mulher adote a posição que desejar durante o parto parece não serem compreendidas como formas de violência obstétrica.
Estes achados se assemelham ao de outros estudos realizados com a finalidade de conhecer o entendimento de mulheres sobre seus direitos como parturientes, onde a maioria das mulheres também desconhece a temática. Esta situação guarda relação com o conhecimento sobre a violência obstétrica, visto que se as mulheres não detiverem conhecimento sobre seus direitos, não conseguem identificar as violências sofridas18.
Um estudo realizado com mulheres que já vivenciaram o parto e trabalhadores da rede hospitalar de dois municípios da República da Guiné apontou que as mulheres e os(as) profissionais consideram que a violência obstétrica parece ser aceitável em determinadas circunstâncias, posto que apesar dos maus tratos, as mulheres cooperaram com os(as) profissionais médicos(as) (19.
O contingente de entrevistadas que expressaram algum tipo de violência no processo de parturição pode ser justificado pela pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado” realizada pela Fundação Perseu Abramo, que estima que uma a cada quatro mulheres tenha vivenciado algum tipo de violência durante o atendimento ao parto no Brasil20.
Pesquisa mostrou a vivência de violência obstétrica por meio de comportamentos refletidos em palavras e expressões corporais que tinham a intenção de ridicularizar, humilhar e até mesmo ameaçar, causando danos psicológicos à mulher que podem ser irreparáveis18.
A assistência inadequada durante o trabalho de parto foi evidenciada em pesquisas realizadas nos estados do Piauí e Paraíba, contradizendo o direito de toda mulher receber informações sobre seu estado de saúde corretamente e sempre que solicitado com linguagem clara e respeitosa, além de assistência adequada durante o processo do parto, inclusive durante as intervenções a serem realizadas12,18.
Este tipo de assistência desqualificada reflete riscos para a saúde da mulher e do neonato tendo em vista que, não acompanhar o processo de parturição adequadamente pode aumentar drasticamente os riscos de complicações no parto e pós-parto12.
São inúmeros os procedimentos realizados sem serem informados ou esclarecidos à mulher, não oportunizando que a parturiente opine. A amniotomia, que quase sempre está adjunta à administração de ocitocina é realizada em cerca de 31% dos partos vaginais e está frequentemente associada à justificativa de aceleração do trabalho de parto4, assim como ocorreu com as entrevistadas.
O excesso de exame de toque vaginal é uma problemática muito comum no cenário da violência obstétrica e foi tanto percebido como violência quanto vivenciado por algumas entrevistadas.
Um estudo que retratou o olhar das parturientes acerca da violência obstétrica constatou que 20% das entrevistadas foram submetidas a exames de toque invasivos, constantes ou agressivos, causando dor e constrangimento às parturientes. Entretanto, o Ministério da Saúde recomenda um intervalo de quatro horas entre um exame de toque e outro, não havendo justificativa clínica para intervalos menores12, (21.
Desde o século passado, a episiotomia vem sendo empregada empiricamente como procedimento de rotina com a justificativa de reduzir os danos causados pela laceração de trajeto ocorrida naturalmente durante alguns partos, reduzir o risco de incontinência urinária e fecal e proteger o recém-nascido de traumas que podem ocorrer durante o parto. Entretanto, a episiotomia aumenta o risco de laceração perineal de terceiro e quarto grau, infecção e hemorragia, sem exercer efeitos positivos na diminuição da incontinência urinária e fecal9.
Uma pesquisa realizada no Brasil apontou que um quarto das mulheres não teve acompanhante em nenhuma etapa do processo de parturição, dados que condizem com o presente estudo. O descumprimento da Lei 11.108/2005 de modo geral, ocorre pelo desconhecimento da legislação pelas mulheres e é caracterizado pela relação de poder desigual existente entre profissionais e usuárias, pela estrutura tradicional das instituições e características da gestão. Impedir a presença do(a) acompanhante priva a mulher de receber suporte físico e emocional e proteção mediante situações de violência, visto que a mulher durante o processo de parturição encontra-se vulnerável e necessita do suporte de alguém de sua confiança5,10, (22.
Conclusão
A reformulação do cenário obstétrico nacional requer investimentos na atualização dos(as) profissionais dos serviços e na formação acadêmica, na perspectiva de assistir às mulheres de forma humanizada, com respeito, dignidade e qualidade.
Para que as mulheres compreendam a violência obstétrica, estas precisam de educação em saúde de qualidade no pré-natal, seja durante as consultas individuais, atividades educativas em sala de espera ou em atividades de grupo. O essencial é que as mulheres aprendam informações pertinentes sobre a violência durante a gestação, para adentrarem nas maternidades com conhecimento que lhes permitam serem de fato protagonistas do parto.
O estudo possibilita melhor compreensão do processo de parturição sob o olhar das mulheres, mostrando que ainda há um longo caminho a trilhar para o alcance de um cenário obstétrico ideal. Apresenta contribuições para a Enfermagem considerando a necessidade de suscitar reflexões sobre a necessidade de fortalecimento de suas práticas de cuidado com embasamento na humanização da assistência e no cuidado integral à mulher em processo de parturição, além da participação proativa nesse contexto.
Sobre as limitações do estudo, destaca-se que busca retratar a realidade local, podendo dificultar a generalização dos achados, indicando a necessidade de realização de outras pesquisas no intuito de explorar aspectos não abordados, a exemplo do conhecimento sobre violência obstétrica a partir da ótica de estudantes dos cursos das áreas de saúde e de profissionais de saúde.
Declaração de conflito de interesse
Todas as autoras certificam não possuírem quaisquer conflitos de interesse relacionados ao artigo